“A Rússia transformada em União das Repúblicas Socialistas Soviéticas era aquilo que se conhecia por imperial-comunismo – o comunismo era só um adjetivo, o que existia era o Império Russo, e o que existe hoje é o Império Russo sem se chamar Império Russo”, sustentou o professor do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), José Adelino Maltez, em declarações à Lusa.

“Estamos a falar de uma Rússia que foi uma superpotência e que, naturalmente, tem a sua zona de influência: não nos esqueçamos de que vai do Pacífico, de uma cidadezinha a que os russos chamam Vladivostok - o que, em português, significa ‘a dominadora do Oriente’ - ao coração da Europa central, e é uma entidade que quer manter-se - já não digo ser superpotência, não tem bases democráticas para isso, nem tecnológicas -, mas naquilo em que resiste quer manter-se”, frisou.

José Adelino Maltez chamou a atenção para o facto de que, “desde 1989/90, daquilo a que se chamou o fim do comunismo, se se olhar para os atuais membros da União Europeia, Roménia, Bulgária, Hungria, República Checa, Eslováquia, os países bálticos – Letónia, Lituânia e Estónia - e Polónia saíram da esfera de influência soviética e, portanto, a Rússia vai tentar influenciá-los, mas de outra maneira, há outras formas de influência”.

Inquirido pela Lusa sobre o caso de intervenção militar direta russa na península ucraniana da Crimeia e posterior anexação, em 2014, o académico respondeu que “o caso da Crimeia é um caso clássico de um arranjo político que foi feito em meados da década de 1950, numa zona que é maioritariamente de população russa, e não de população ucraniana, pelo que é diferente de outros casos”.

Por essa razão, “até pela fraqueza estrutural da própria Federação da Rússia”, não a vê como uma ameaça.

“Vê-se que tem um chefe de Estado bastante experiente (Vladimir Putin) e um ministro dos Negócios Estrangeiros (Sergei Lavrov) que sabem como hão de atuar e aproveitam a ocasião da falta de solidariedade na Europa, desta indefinição quanto à liderança do mundo ocidental, e portanto jogam, fazem um jogo de grande qualidade diplomática para defender os respetivos interesses”, referiu.

Para José Adelino Maltez, não existe “qualquer ameaça, até porque quem conhece o fenómeno do czarismo e do comunismo soviético, percebe que, desde 1990, a Rússia está a viver um período de liberdade de consciência, condicionado, é certo, mas que nunca teve na sua história”.

“Há uma evolução interna e essa coisa chamada liberdade por acaso existe, nós é que exageramos com o Putin: há uma modificação estrutural, portanto, há uma vivência completamente diferente, um espaço novo que se abriu em toda essa zona europeia e abriu-se também no interior da Rússia”, sublinhou.

“Muita gente fala como se ainda houvesse KGB e Gulag – não tem nada que ver com isso! Houve uma evolução, que é lenta, como são todas as evoluções numa estrutura destas; portanto, não sou daqueles que estão sempre a repetir a propaganda e a contrapropaganda do novo império. Pronto, tem o autoritarismo Putiniano, e o problema aqui não é bem ter o autoritarismo Putiniano, é ele ganhar as eleições, mas esse é um fenómeno muito específico, muito russo”, observou.

Para se entender a mentalidade russa, prosseguiu, “convinha também às vezes perceber quantos mortos teve a Rússia na Segunda Guerra Mundial, quem é que conquistou Berlim, libertando a cidade do domínio de Adolf Hitler”.

“Foram os russos - que, como compensação, tiveram uma série de bases no interior da Alemanha e, um dia, por questões de crise financeira, cederam isso por uns tostões, num jogo bem feito pelos defensores da unificação alemã”, resumiu.

“Isto, na alma de um russo, é muito complicado: a relação com esta falta de poder em nome dos mortos na Segunda Guerra Mundial é uma coisa que está muito viva na memória da população. Nós, no Ocidente, muitas vezes não entendemos isto… e eu, nesse aspeto, sou extremamente confiante, acho que houve uma grande evolução da Europa, há um certo equilíbrio e a Rússia mantém-se, e a Rússia foi quem libertou a Europa do Hitler, como já antes tinha sido o czar quem libertou a França de Napoleão”, vincou.

É, portanto, “tradicional, pelo que temos que saber jogar com este ator permanente da Europa – porque a Rússia é Europa – em nome de uma coisa chamada paz, que é fundamental”, insistiu, acrescentando que “não há qualquer sinal de guerra, qualquer ameaça de guerra, e o resto é manobras de propaganda, de um lado e de outro”.

“Quem vê isto friamente, como eu, encara esta situação com otimismo. A evolução é lenta, mas sou otimista”, concluiu.