A testar o equipamento já se encontra Lídia Saramago, que com o Tiago tem a responsabilidade de ocupar o horário entre as 10:00 e as 12:00, a cada quinta-feira, naquela rádio com transmissão, para já, apenas no Youtube.
Isto não seria notícia, não fosse o palco da rádio o Centro de Apoio a Deficientes João Paulo II, em Fátima, e Tiago Saraiva um dos 192 utentes da instituição, onde reside desde os três anos de idade, há 32 anos, devido à paralisia cerebral com que nasceu e que lhe confere elevado grau de incapacidade.
Na cadeira de rodas elétrica, Tiago entra no estúdio a rir, solta um sonoro “Bom dia, Lídia!” e dirige-se ao seu lugar frente ao microfone.
A três metros de distância, um grande quadro branco tem o alinhamento da emissão. No dia 17 de novembro, por exemplo, falou-se de várias datas comemorativas, como os dias do não fumador, da filosofia ou dos estudantes.
Ao lado de Lídia Saramago, técnica superior de Educação Especial e Reabilitação, que há 25 anos trabalha na instituição, Tiago, que desde sempre teve fascínio pela rádio, começou com a audição, ainda criança, da então Rádio Cidade, conta que este foi um projeto que foi ao seu encontro.
“Era o que eu queria fazer da minha vida”, afirma, acrescentando que a ideia foi proposta à direção do Centro “e a Lídia tratou do resto”.
Com a aquisição do equipamento, desde 2018 que existe o programa semanal da Rádio João Paulo II, de duas horas, que visa, essencialmente, dar a conhecer o que se faz no Centro de Apoio a Deficientes, mas também interagir com os ouvintes, que, durante as emissões vão dialogando com Tiago e Lídia através do ‘chat’.
Com um corpo de ouvintes não muito grande, mas fiel — são pouco mais de 200 subscritores do programa no Youtube e poucas dezenas os que acompanham as emissões em direto -, Tiago mostra-se satisfeito e admite que as manhãs de quinta-feira “são o melhor momento da semana”.
A preparação de cada programa é feita “com muita pesquisa”.
“Eu mando-lhe [a Lídia] gravações, às vezes. É muito trabalho. Não é só chegar aqui e falar”, diz Tiago, acrescentando que o processo de alinhamento do programa é feito “à terça-feira”, e ocupa várias horas.
“Eu faço tudo com gosto. Tudo o que faço na rádio é com gosto”, assegura com um grande sorriso o utente, sublinhando: “quando venho para aqui, transformo-me. Pareço o ‘bicho da rádio'”.
Quanto a programas favoritos, e embora admita que é difícil escolher, refere os de Natal e de Carnaval. “É uma alegria!”, afirma.
Apesar de satisfeito, gostava de ter mais ouvintes a comentar as emissões. “Algumas [pessoas] fazem [comentários], não tanto como eu gostaria, mas algumas fazem”, diz Tiago, para quem os projetos são feitos à cadência de “um dia de cada vez”.
“O meu grande objetivo é aqui a rádio, mas tenho também o boccia, a terapia da fala, muita coisa. E com a Lídia, espero estar aqui muitos anos”, expressa Tiago, admitindo: “a Lídia tem outros apoios [a outros utentes] para dar, eu gostava [de mais tempo na rádio], mas os recursos humanos às vezes não dão [para] tanto. Mas eu gostava. A Lídia sabe disso. Eu já falei disso com ela”.
Enquanto a emissão está no seu “momento pimbérico”, como lhe chamam os dois autores do programa aos minutos em que passam a chamada música “pimba”, Lídia Saramago explica que “este projeto representa a concretização de sonhos”.
“É muito gratificante sentir que um projeto que aparentemente parece simples é tão gratificante para um residente. Isto é um motivo de alegria e de orgulho”, diz a coordenadora do Serviço de Reabilitação do Centro, acrescentando que “todos os utentes aqui têm planos de intervenção em termos objetivos”.
“O objetivo para o Tiago hoje é fazer rádio, mas o objetivo por detrás desta rádio, e aquilo que é o meu objetivo enquanto profissional, tem a ver com promover a sua autoestima, promover a valorização pessoal, trabalhar as competências pessoais e sociais. Através deste projeto ele vai trabalhando questões funcionais na fala, mas tudo aquilo que é ele sentir-se feliz — e hoje em dia parece que é tão difícil sentirmo-nos felizes –, para mim é o mais importante”, sublinha Lídia Saramago.
“É importante ele falar bem, não é? Mas isso não é uma limitação. Agora ele está a falar bem e sente-se feliz. Tanto o sentir-se feliz, o sentir-se realizado e o facto de ter pessoas a elogiarem (…), todas essas questões mais viradas para a parte da autoestima, da valorização pessoal, para mim, são extremamente importantes”, acrescenta.
E exemplifica com uma situação que também se aplica a Tiago: “dizerem que estão felizes e que vestem a melhor roupa para vir para aqui, quando, à partida, ninguém os está a ver, para mim, isso é fundamental”.
No futuro, Lídia gostaria que o Tiago tivesse autonomia para “fazer a gestão da rádio” sozinho, “este mecanismo de pôr música, tirar a música, que ele fizesse de forma autónoma”, mas o atual sistema instalado não está preparado para isso.
“Se fosse possível ele poder vir para aqui, sem estar à espera que a Lídia venha, isso seria o topo da satisfação e da concretização dos objetivos ao nível da satisfação pessoal. Ele gosta muito de vir. Ele adora vir. Mas se ele pudesse vir, ligar, falar, produzir, construir de forma mais autónoma, isso também seria excelente. Teríamos uma rádio 24 horas por dia. Ele não ia aguentar, de certeza, mesmo com a motivação toda e com a alegria…”, diz Lídia, acompanhada de uma enorme gargalhada de Tiago, que, com os olhos a brilhar, talvez pense que essa seria mesmo “a cereja em cima do bolo”.
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