Na noite desta quinta-feira, 16 de abril, haverá leite e mel sobre a mesa do casal Mery e Joshua Ruah. E haverá também o peixe cozinhado com molho de colorau, alho e coentros, acompanhado de batata cozida. E ainda alcachofras e espargos, frutas, doces, pão, ovos cozidos, azeite e um prato com farinha. E um cordão de ouro.

Tudo remete para a ideia da esperança na abundância e da continuação da vida, com que se encerra a celebração de Pessah, a Páscoa judaica. Se na mesa de Mimona (assim se designa, sobretudo entre os judeus sefarditas, a saída de Pessah) também estivessem os cinco filhos, seis netos e o bisneto, o filho mais velho, José, ainda distribuiria uma folha de alface com mel, explica Mery Ruah ao 7MARGENS. Um gesto que exprime o voto de uma boa entrada na terra do mel, a terra da promessa – Israel, para os judeus.

Por causa da pandemia e do confinamento social a que estamos obrigados, Mery e Joshua terão os seus fisicamente longe da casa paterna, mas presentes através de videochamada. Incluindo o filho que vive em Nova Iorque e que celebrará com a família paterna e cinco horas depois com a sua própria, tendo em conta a diferença horária.

Antes de iniciar o jantar, o mais velho da família – neste caso, Joshua, médico urologista – lê sucessivamente a bênção tradicional do vinho, do olfato e da luz, dirigindo-se a Deus: “Adonai, nosso Deus, rei do universo, que criaste o fruto da videira”, as diversas variedades de especiarias e a luz do fogo, evoca.

Tudo, nas celebrações judaicas de Pessah, remete para a saída dos judeus do regime de escravidão a que estavam sujeitos no Egito e da ida para a “terra prometida”, de acordo com o relato bíblico do livro do Êxodo. Referido a acontecimentos que poderão ter sucedido antes do século VIII antes da Era Comum, a narrativa não tem evidências arqueológicas, mas é um dos relatos fundadores do judaísmo. Por isso Pessah remete para a ideia de libertação ou passagem, significado retomado pela Páscoa.

Perguntar aos rabis se é possível usar a tecnologia

Não se pense que a possibilidade da ceia virtual com a família é uma decisão pacífica. Joshua Ruah, cuja família é uma das mais destacadas da Comunidade Israelita de Lisboa (CIL), conta ao 7MARGENS que, tendo em conta a pandemia mundial, a opinião dos rabis judeus foi convocada: pode ou não usar-se a tecnologia para substituir as ceias de Páscoa? “A ideia de usar os meios de comunicação é aceite por correntes judaicas ortodoxas modernas”, diz. “Sem isso não seria possível a confraternização familiar.”

O mesmo confirma Isaac Assor, oficiante dos serviços religiosos da sinagoga Shaaré Tikva (Portas da Esperança), de Lisboa: houve rabis a ser consultados sobre a possibilidade de os familiares se fazerem presentes através da tecnologia. O próprio Assor fez uma consulta a um tribunal rabínico em Jerusalém, composto por 14 rabis, na sua maioria sefarditas e de origem marroquina. “Estiveram de acordo com a possibilidade de utilizar excecionalmente meios tecnológicos”. Já o rabinato de Israel não está de acordo com essa possibilidade, propondo que se fale com os familiares antes das celebrações.

No entanto, Isaac Assor diz que “a beleza do judaísmo é a liberdade de se fazerem determinadas coisas como cada um entende”, dentro de algumas regras básicas. Por isso, se na CIL não se fez nenhuma oração virtual a partir da sinagoga, já cada pessoa pôde decidir pessoalmente como fazer. Isaac foi um dos que optou por ligar para a mãe e a irmã de forma virtual.

Para muitos judeus, explica ainda Isaac Assor, esta foi a primeira vez em que não se reuniram à família alargada para a ceia de Pessah, na semana passada, ou no jantar de Mimona, para os sefarditas que a celebram. “Habitualmente, encontram-se pais, avós e netos, mas desta vez isso não é possível”. Este era mesmo, por causa dos rituais associados a Pessah, um dos períodos e festas mais importantes do calendário judaico, “a altura em que muitas pessoas afastadas” do rito judaico se reaproximavam da comunidade.

O ineditismo do facto pode avaliar-se por um outro elemento, recorda Assor: é a primeira vez na história de 300 anos da Shearith Israel, a sinagoga portuguesa de Nova Iorque e a primeira a ser fundada na então Nova Amesterdão, que aquele lugar de oração dos judeus foi obrigado a fechar.

A história da saída do Egito: “Verdadeiramente nunca saímos de lá…”

Neste quadro, a ceia de Pessah da semana passada iniciou-se sem que alguém tivesse saído de casa para ir à sinagoga e regressado depois para a mesa posta. Mas a refeição foi igualmente preparada, em casa, logo depois de anoitecer, com as travessas do Sêder (ceia de Pessah): matzot (pão ázimo), betsá (ovo bem cozido), maror (conjunto de ervas amargas), charosset (mistura de maçãs, nozes, peras e vinho), entre outras iguarias.

O ritual iniciou-se com a Hagadá, a leitura da narrativa da saída do Egito, seguida de várias bênçãos, pequenos gestos e recitações: “Bendito és tu, Adonai, nosso Deus (que) nos deste (…) dias festivos para alegria, festas e épocas de regozijo (e esta) época da nossa libertação”.

Esther Mucznikque também integra a Comunidade Israelita de Lisboa e foi já a sua vice-presidente, tem estado sozinha na sua casa, nestes dias de Pessah, como já antes. “Passei a Páscoa judaica sem poder estar com a minha família, sem poder abraçar os meus netos, sem poder ouvi-los perguntar ‘O que tem de diferente esta noite de todas as outras noites?’, pergunta que os mais novos fazem na ceia de Pessah”, conta ao 7MARGENS.

Nesta quinta-feira de Mimona, Esther nem sequer estará com os Ruah, com quem costuma celebrar a saída de Pessah. E a propósito desta situação, recorda a investigadora em temas judaicos um debate em que participou, dia 2 de março, na Fundação Serralves, sobre “Horror do Belo, Belo no horror”: “Hesitei bastante, antes de aceitar o convite porque duvidava que fosse mesmo possível encontrar alguma beleza no horror. Depois, lembrei-me do que senti a primeira vez que fui ao campo de extermínio de Treblinka ou às valas comuns dos países do Báltico. Nunca poderei esquecer o tremendo contraste entre a beleza das florestas que rodeiam o campo e as valas comuns, a beleza da natureza indiferente (ou talvez não) à existência do sofrimento e da crueldade, a beleza no mais profundo e irremediável horror.”

Uma tal memória e a participação no debate levam Esther Mucznik à comparação com o momento presente: não se trata de “comparar o incomparável” mas “refletir sobre o facto de que, mesmo na catástrofe humanitária que hoje vivemos e presenciamos, é possível também alguma beleza: na natureza que emerge pujante; na cultura que coexiste com a tragédia; na luz que ilumina a escuridão através de todos aqueles que arriscam a vida por nós”.

E em que se pensa, então, confinada a esta situação e quando se faz a memória de acontecimentos fundadores? “Tenho pensado no sentido da nossa vida, tão bela e tão precária. Porque na verdade nunca saímos verdadeiramente do Egito…”