Das ciclovias aos espaços verdes, do reaproveitamento da água aos painéis fotovoltaicos. Foi fazendo mudanças paulatinas que Lisboa, passo e passo, procurou tornar-se mais ecológica. O esforço compensou: a cidade foi agraciada com o prémio Capital Verde Europeia para 2020. Mas o esforço está longe de chegar ao fim.
Na apresentação da programação do Lisboa Capital Verde Europeia 2020, José Sá Fernandes, vereador das áreas da Estrutura Verde e Energia do município, realçou que a capital não foi distinguida com este selo por ser “a cidade mais sustentável”, mas sim porque “foi a cidade que evoluiu em todos os parâmetros ambientais – energia, água, mobilidade, resíduos e infraestrutura verde e biodiversidade”.
Ao SAPO24, o autarca reforçou essa ideia. “Ganhámos apesar de não sermos os melhores, basta ouvirmos o barulho deste avião para percebermos isso”, admite José Sá Fernandes enquanto sobrevoa uma aeronave, uma de muitas a ser uma presença indesejada nesta conversa. A atribuição do selo aconteceu “porque evoluímos muito em muitas matérias”, sendo este “um reconhecimento do trabalho que foi feito e do compromisso para o futuro”.
A conversa decorre no morro que se avoluma em frente à Reitoria da Universidade de Lisboa. Ajardinado e dotado de equipamentos de exercício ao ar livre, o espaço é, para José Sá Fernandes, uma conquista simbólica, não só porque oferece uma vista privilegiada para o Corredor Verde de Monsanto — uma das bandeiras ambientais deste executivo — mas porque neste espaço natural “eram previstos prédios, o que não fazia sentido nenhum porque perdíamos esta ligação e respiração”, defende.
Lisboa já tinha concorrido anteriormente por duas ocasiões, figurando no lote de finalistas na edição de 2019, mas aí a vitória foi para Oslo. No ano seguinte, porém, a capital portuguesa voltou a concorrer, sendo vitoriosa ao bater a concorrência de Gante (Bélgica) e Lahti (Finlândia), cidade que venceria a edição de 2021.
Para concorrer ao selo Capital Verde Europeia, o único requisito base é que seja uma cidade com mais de 100 mil habitantes, sendo o concurso aberto não só aos estados membros da União Europeia, como também aos países candidatos à adesão à UE, à Islândia, ao Liechtenstein, ao Noruega e à Suíça.
As cidades a concurso no Capital Verde Europeia são avaliadas por um painel internacional de 12 especialistas, tendo um conta um conjunto de critérios. Este inclui o trabalho feito pelos municípios quanto à atenuação das alterações climáticas, a forma como gerem resíduos, a sustentabilidade dos seus modelos de transporte ou os seus esforços em prol da ecoinovação e emprego sustentável.
Após essa primeira filtragem, as cidades concorrentes escolhidas para a fase final são submetidas a um júri internacional, encabeçado pela Comissão Europeia, tendo de apresentar um plano de estratégia e ação quanto ao que vão fazer se ganharem a competição e de que forma vão constituir-se enquanto modelos.
Mobilidade foi o trunfo de Lisboa
Segundo o comunicado da organização, o júri optou por Lisboa dada a “visão para a mobilidade sustentada” do executivo, ressalvando o “uso de medidas restritivas para a utilização de carros e a priorização de caminhadas, ciclismo e transporte público”, assim como a criação de “uma das maiores redes de carregamento de carros elétricos do mundo”. Para além disso, os especialistas não só referiram esta foi a primeira capital na Europa a assinar o Novo Pacto de Autarcas para Mudanças Climáticas e Energia em 2016, como também ficaram impressionados com o “foco em proteger e conectar as suas áreas naturais, providenciando ao mesmo tempo espaços recreativos ao ar livre de qualidade para os seus cidadãos”, citando o futuro projeto do Corredor Verde do Vale de Alcântara.
O tiro de partida para o Lisboa Capital Verde Europeia 2020 teve lugar ontem à noite com um jantar oficial na Estufa Fria, contando com a presença do secretário-geral da ONU, António Guterres, do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, do primeiro-ministro, António Costa, do comissário europeu para o Ambiente, Assuntos Marítimos e Pescas, Karmenu Vella, assim como do presidente da câmara, Fernando Medina.
No entanto, para o público a cerimónia de abertura acontece hoje à tarde, incluindo a passagem de testemunho de Oslo para Lisboa, um ‘flash mob’ e outros espetáculos. O evento — que tem lugar no Jardim Amália Rodrigues, no Parque Eduardo VII e no Pavilhão Carlos Lopes — contará também com a presença das figuras acima mencionadas, assim como do vice-presidente da Comissão Europeia, Franz Timmermans, do comissário europeu para o Ambiente, Oceanos e Pescas, Virginijus Sinkevičius, e do presidente-governador da Câmara de Oslo, Raymond Johansen.
Outro evento que marca o início da programação é a nova exposição imersiva do Oceanário de Lisboa “ONE o Mar como nunca o sentiu”, tratando-se de “uma instalação da autoria da artista portuguesa Maya, que apresenta imagens filmadas exclusivamente no mar de Portugal”. Inaugurada hoje, abre o público amanhã, que é quando também decorre outra ação pela cidade.
Anunciada como a “maior plantação de árvores de sempre” em Lisboa, cerca de 20 mil espécimes vão ser espalhados por quatro pontos específicos da capital. Os destinos são o Corredor Verde do Monsanto, o Parque Urbano do Rio Seco, o Parque do Vale da Montanha e o Parque do Vale da Ameixoeira, sendo que Fernando Medina comparecerá neste último para plantar também uma semente. O objetivo é o de somar mais 100 mil árvores até ao fim do ano às 800 mil já existentes, pelo que estas ações vão continuar a decorrer nos próximos meses.
Depois destas iniciativas iniciais, o resto do ano terá várias atividades, cuja consulta é possível no website oficial do Lisboa Capital Verde Europeia. Um dos vértices de maior importância da programação são as exposições que vão decorrer nos vários equipamentos culturais da cidade. De todas as programadas, José Sá Fernandes destaca “uma excelente exposição que para o fim de março estará pronta no Museu Nacional de História Natural, sobre parques e reservas naturais” do país.
Lisboa vai ter um Museu da Reciclagem (ReMuseu) e “um grande labirinto, sobre alterações climáticas"
No entanto, muitas outras vão ocorrer na capital. O tema da água vai ser abordado no Pavilhão do Conhecimento – Centro Ciência Viva, o da energia no MAAT, o Museu de Lisboa vai dar a conhecer as suas hortas e a Biblioteca Nacional os jardins históricos e botânicos de Portugal. Para além destes exemplos, no mês de abril está prevista a inauguração do Museu da Reciclagem (ReMuseu), em Alcântara e vai ainda haver “um grande labirinto, sobre alterações climáticas, que é onde vamos perceber as escolhas que podemos fazer”, adianta José Sá Fernandes, acrescentando que o destino provável deste projeto é o Panorâmico de Monsanto.
Para além de exposições, José Sá Fernandes realça também a programação de várias conferências que versarão sobre temas tão variados como “transporte colectivo, alimentação saudável e até roupa”.
Aquela que tem mais destaque é a Conferência dos Oceanos das Nações Unidas, a decorrer entre 2 e 6 de junho, mas outras também ocorrerão na cidade. De 1 a 3 de abril vai ter lugar o Urban Future Global Conference 2020, evento dedicado à sustentabilidade urbana, sendo que entre os dias 23 e 25 do mesmo mês, a Altice Arena recebe o Planetiers World Gathering, descrito como o “maior evento de inovação sustentável do mundo”, onde participam mais de 100 oradores — entre os quais o Nobel da Paz Mohan Munasinghe.
Nos dias 18 e 20 de maio, o ITS2020 — Congresso Europeu dedicado a sistemas de transporte inteligentes — vai ocupar o Centro de Congressos de Lisboa, e no 1 de junho, a Fundação Calouste Gulbenkian acolhe a abertura da conferência “Green Week 2020”, uma iniciativa da Comissão Europeia. De mencionar ainda o ciclo de conferências de âmbito nacional organizado ao longo do ano pela Academia das Ciências de Lisboa.
José Sá Fernandes refere-se a estas iniciativas como “âncoras” para a cidade, mas algumas delas foram mesmo pensadas para ficar “para sempre”. Pelo final de 2020, o executivo conta ter concluído algumas das obras públicas já em curso, como o projeto de requalificação da Praça de Espanha, a conclusão do Corredor Verde do Vale de Alcântara e as instalações da Central Fotovoltaica de Carnide e da ponte que vai atravessar a Calçada de Carriche.
Estes porém, não são os únicos empreendimentos a surgir na cidade ao longo do ano, estando também projetado para novembro o Eco Centro e CIRE - Centro de Interpretação de Resíduos e Energia, a ser construído no Jardim do Cabeço das Rolas, no Parque das Nações, assim como a inauguração de novos jardins públicos todos os meses. José Sá Fernandes não levanta o véu quanto a estes novos parques, lembrando apenas que existe o compromisso de se plantarem mais 100 hectares de áreas verdes pela cidade. No entanto, uma novidade está confirmada: ainda em janeiro estará pronto o Parque Ribeirinho Oriente, uma “exigência” sua no âmbito do projeto urbanístico de Braço de Prata.
Ao todo, para levar a cabo todo o plano de atividades e das obras, a Câmara Municipal de Lisboa vai fazer uso de um orçamento de 60 milhões de euros, aos quais acrescem 350 mil de incentivo financeiro da Comissão Europeia por ter recebido o selo.
Para José Sá Fernandes, este “foi um processo que durou 12 anos” desde que integrou a Câmara Municipal de Lisboa com funções executivas. Foi ao fim deste tempo que a cidade começou finalmente a atingir metas significativas de sustentabilidade. Se os por um lado os espaços verdes chegaram aos 250 hectares, por outro as emissões carbónicas baixaram o nível de consumo para 42%.
Outra conquista deu-se na gestão da água, onde o consumo foi reduzido em 33% de 2004 para 2017. “Nós diminuímos muito o consumo da água. Apesar de termos mais áreas verdes, gastamos menos água. Temos um trabalho espetacular da EPAL na rede de distribuição, perdemos pouca água na distribuição”, indica José Sá Fernandes.
Com o selo Capital Verde Europeia, é possível que sejam dados passos ainda maiores. Em Oslo, por exemplo, cidade que vai passar o testemunho a Lisboa, a organização recorda como todas as suas escolas passaram a ter certificação ecológica e o setor de transportes foi dotado de um ferry de passageiros totalmente elétrico, assim como 115 novos autocarros. Durante o ano, a cidade nórdica teve pela primeira vez um estaleiro de construção sem emissões carbónicas e “centenas de organizações e bairros receberam fundos para criar os seus projetos verdes”. Já Copenhaga, capital verde de 2014, passou a ser uma referência na redução de emissões carbónicas, particularmente dado o seu trabalho de rede de reaproveitamento térmico.
Olhando para estes exemplos, José Sá Fernandes avisa que, atendendo às diferentes características das cidades já galardoadas com este prémio, não convém comparar o incomparável, mas que é necessário “ter essa humildade” de “aprender com os outros” “Há bons exemplos de participação, de envolvimento da população, são muito bons nisso”, comenta o autarca.
No entanto, se lá fora se pode aprender com exemplos, por cá pode se fazer o mesmo com os erros. “Se olharmos para Lisboa e para o passado, fizeram-se muitas asneiras. Construiu-se onde não se podia construir, fizeram-se auto-estradas onde não se devia, desuniram-se pessoas... Mas fizemos também coisas muito boas, acabámos com as barracas”, observa.
Esses erros, porém, não só podem ser corrigidos, como evitados, pois “se mostrarmos um bom exemplo, não teremos um mau”, defende o vereador. A sua estratégia vai passar não só pela valorização — não só de Lisboa, mas de outros espaços ecológicos do país, do parque do Montesinho, em Bragança, à Ria Formosa, em Faro — como também num apelo à participação.
“Se encontrarmos essa vontade das pessoas de quererem evoluir, é meio caminho andado para isto correr bem”, diz, recordando o slogan oficial da iniciativa, “Escolhe Evoluir”. Este lema, adianta, “não é moralista” mas sim “uma questão de escolhas”, pois é preciso “dizer quais são os caminhos para as pessoas escolherem”, tratando-se de um processo de “consciencialização”. “Podemos fazer conversas, debates e conferências, sem medo de discutir o que é que seja, mas seriamente, porque há muito má informação sobre muitas matérias”, completa.
Também por isso, o autarca diz que o município não só quer chegar a “todas as escolas, desde o primeiro ciclo até às universidades, para que se envolvam, participem, tenham prémios”, como até às empresas para que se “comprometam. “Eu não me importo nada de divulgar um bom exemplo de uma empresa, que pôs fotovoltaicos, tem uma frota elétrica ou que gasta menos água. Essa é uma outra maneira de participarmos”, indica.
José Sá Fernandes: “Gerir uma cidade é gerir conflitos"
Mas, apesar da procura por obter consenso, José Sá Fernandes sabe que nem todas as medidas são bem recebidas, especialmente quando chocam com os hábitos da população. “Gerir uma cidade é gerir conflitos. Há ruas onde algumas pessoas querem árvores e outras não querem nenhumas”, alerta o autarca, dizendo que “é preciso fazer escolhas” e “dar várias hipóteses e soluções”.
Nesse sentido, o vereador recorda como antes a mobilidade suave — que privilegia caminhadas a pé, andar de bicicleta ou de trotinete — não era levada a sério. “Eu comecei com as bicicletas aqui em Lisboa e diziam que era impossível andar de bicicleta”, observa, apontando para um homem a atravessar a ponte por cima da avenida Calouste Gulbenkian a duas rodas. “Agora, é evidente que para haver transporte coletivo e mobilidade suave, tem de haver vias para eles andarem, temos de gerir isso da melhor maneira possível”, refere.
Este é um dos vários desafios com os quais Lisboa ainda se depara, com José Sá Fernandes lamentando ainda existir um excesso de tráfego rodoviário na cidade. Outros são os materiais de construção atualmente utilizados no edificado, que “são muito poluentes”, assim como a crónica poluição sonora da cidade, muito por força da localização do Aeroporto de Lisboa. A este respeito, o vereador não só considera que deviam ser limitados os voos noturnos e diurnos, como critica o facto da situação aeroportuária da cidade se arrastar num limbo quanto às soluções futuras.
Estes problemas têm sido também denunciados pela Associação ZERO, assim como quanto à qualidade do ar e ao edificado com pobreza energética. Ao SAPO 24, o presidente da organização ambientalista, Francisco Ferreira, diz a atribuição do selo Capital Verde Europeia 2020 é “simultaneamente um reconhecimento” pelos esforços empreendidos por Lisboa e “uma oportunidade, porque há muita coisa ainda por resolver”.
A associação vai aproveitar a distinção de Lisboa para promover algumas atividades durante o ano, estando previstas conferências à escala europeia sobre a questão dos navios e dos cruzeiros, sobre gestão de resíduos e sobre contaminação química. Para além disso, a ZERO vai também ser um dos parceiros na plantação de árvores.
Mas mais do que um aparente intuito celebratório, Francisco Ferreira acredita que este prémio “é uma forma de ter argumentos para colocar mais pressão, não apenas o sobre executivo municipal, mas também nos agentes que trabalham na cidade e que deverão dar uma resposta mais adequada de consciencialização e de ação relativamente às grandes questões ambientais”.
Lisboa, portanto, terá os holofotes sobre si, e, para o ambientalista, esta distinção será posta à prova mediante o que a cidade fizer ao longo de 2020. “É fundamental que as ações tornem a cidade mais sustentável e durante este ano será fácil avaliar a vontade política do executivo junto do Governo, junto dos seus residentes, junto das empresas que estão em Lisboa. Será fácil perceber se queremos realmente mudar, ou não, a direção que a cidade tem vindo a prosseguir, acelerando os esforços”, argumenta Francisco Ferreira.
Francisco Ferreira: “É mais fácil traçar objetivos dessa natureza do que depois concretizá-los na prática"
Essas dúvidas ainda subsistem, apesar do executivo ter um conjunto de metas ambicioso. “É mais fácil traçar objetivos dessa natureza do que depois concretizá-los na prática. Portanto, o que nós queremos é ver essas medidas”, conclui o presidente da ZERO.
Entre os objetivos para 2030, o município quer descer as emissões carbónicas para 60%, dobrar a instalação de painéis fotovoltaicos na cidade (atingindo os 100 MW de potência instalada), chegar aos 200 km de ciclovias, reduzir as viagens em automóvel de 57% para 33% à medida que garante que sete em cada dez viagens são feitas em transporte público e modos ativos. Antes, para 2025, a Câmara quer ter implementado um sistema de reaproveitamento de água potável que garanta poupanças até 75% e minimizar o risco de inundação com um plano geral de drenagem e bacias de retenção de base natural.
“Estamos melhor, não haja dúvidas, nos últimos 12 anos demos um grande salto em muitas áreas”, retoma José Sá Fernandes, acrescentando, porém, de que é necessário continuar o trabalho. “Não podemos parar, depois destas conquistas, destes vales e destes espaços verdes”, assegura, até porque, com a atribuição do selo Capital Verde Europeia, a obrigação é de “evoluir mais. A responsabilidade de ser capital verde é para sempre”.
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