“Provavelmente, [a saída da ANMP] fragiliza mais a Câmara Municipal do Porto, que deixa de ter uma entidade com legitimidade própria para negociar com o Governo e fica isolada”, afirmou Luísa Salgueiro, em entrevista à agência Lusa.

A autarca, que também lidera a Câmara Municipal de Matosinhos, sublinhou que o processo de descentralização tem problemas e dificuldades para ultrapassar que resultam do processo em si e não de uma ou outra saída da ANMP.

Em 30 de maio, a Assembleia Municipal do Porto aprovou a saída do Porto da ANMP, depois de a proposta ter sido votada pelo executivo liderado pelo independente Rui Moreira.

A vontade de o Porto abandonar a ANMP foi anunciada pelo presidente do município em 12 de abril, altura em que disse que não se sentia em “condições” para passar “um cheque em branco” à associação para negociar com o Governo a transferência de competências no âmbito do processo de descentralização.

A saída da Câmara do Porto da ANMP é uma “decisão individual” que não prejudica o todo, considerou Luísa Salgueiro. Contudo, para a autarca, a Câmara do Porto deveria ter aguardado pelas conclusões do processo de descentralização.

Questionada sobre se a saída foi precoce, a socialista preferiu não responder. “É claro que eu preferia que estivessem os 308 municípios, mas não estando, nós continuamos e temos idêntica força, legitimidade e não vejo que belisque a vontade negocial”, frisou. Pelo contrário, acrescentou, a ANMP está “num momento particularmente intenso da negociação” e a saída do Porto é uma questão lateral à negociação em curso.

Rui Moreira acusou a ANMP, que assumiu o papel de interlocutora nas negociações com o Governo, de estar a ser cúmplice do Estado central.

Outros municípios, como Trofa (PSD-CDS/PP), Póvoa de Varzim (PSD), Vale de Cambra (CDS-PP), Pinhel (PSD) e Coimbra (coligação liderada pelo PSD), também já manifestaram intenção de abandonar ou discutir a saída da ANMP, invocando os mesmos motivos.

“Conjunto de imprevistos”

A presidente da Associação Nacional de Municípios Portugueses afirma que o processo de descentralização foi “dificultado” por um “conjunto de circunstâncias improváveis” e não “por culpa” de alguém ou de alguma entidade.

“Houve uma ou duas dificuldades imprevistas que prejudicaram o bom andamento do processo e que, agora, estamos a resolver no tempo certo”, disse Luísa Salgueiro, em jeito de balanço dos seis meses à frente dos destinos da ANMP.

Entre os imprevistos, a autarca enumerou a pandemia de covid-19, as eleições legislativas antecipadas e, agora, a guerra na Ucrânia.

Este conjunto de circunstâncias imprevisíveis tornou a transferência de competências “mais difícil”, salientou.

“Não diria que há um responsável, nem considero que tenha havido um adormecimento, mas um conjunto de dificuldades que não eram previsíveis”, defendeu, lembrando que o processo de descentralização é uma reforma e, portanto, uma mudança “profunda e difícil” de implementar como são todas as mudanças.

A título de exemplo, a autarca adiantou que a descentralização na área da Saúde, onde apenas cerca de 50 municípios assinaram os autos de transferência, não teve o “ritmo que podia ter tido” devido à pandemia de covid-19.

Dizendo não querer, nem ter de fazer, a defesa do Ministério da Saúde, a presidente da ANMP recordou que esteve, nos últimos dois anos, no centro da gestão da pandemia de covid-19 e, portanto, menos focado na descentralização.

“O Ministério da Saúde foi o que esteve no centro da gestão da pandemia e, portanto, outra prioridade se impôs para além da gestão do processo de descentralização”, insistiu, considerando que a missão da tutela foi “salvar o país” do impacto da pandemia.

A esta questão acresce, segundo Luísa Salgueiro, a vertente formal, visto que, há um conjunto de formalidades para cumprir que durante muitos anos não foram tratadas e que, agora, a propósito da descentralização, estão a ser resolvidos como são os cadastros dos edifícios, por exemplo.

As negociações entre o Governo e a ANMP atrasaram-se em áreas como a Educação, a Saúde e a Ação Social, que envolviam a transferência de funcionários, equipamentos e, em consequência, montantes financeiros.

As verbas a transferir têm sido o ponto central das dificuldades, uma vez que são consideradas insuficientes pelos municípios para o desempenho que é pretendido na Educação e na Saúde.

O atraso da publicação dos diplomas levou à prorrogação do prazo para que os municípios assumissem definitivamente estas competências, de 01 de janeiro de 2021 para 31 de março de 2022. No caso da Ação Social, como o diploma setorial foi publicado já este ano, o prazo foi prorrogado até ao final deste ano.

Em 01 de abril, quando era esperado que os municípios assumissem definitivamente competências na Saúde e na Educação, menos de metade das autarquias elegíveis (201 na Saúde e 278 na Educação) tinham assumido as competências voluntariamente.

Quanto às restantes 17 competências, o Governo considerou-as transferidas em 01 de janeiro de 2021, nas áreas da Cultura, Habitação, Justiça, Atendimento ao Cidadão, Gestão do Património Imobiliário Público, Vias de Comunicação, Praias, Áreas Portuárias, Transporte em Vias Navegáveis Interiores, Cogestão de Áreas Protegidas, Proteção Civil, Policiamento de Proximidade, Segurança Contra Incêndios, Estacionamento Público, Jogos de Fortuna e de Azar, Arborização e Rearborização e Associações de Bombeiros.

Um acordo “equilibrado e sustentável financeiramente”

Luísa Salgueiro considera que o acordo com o Governo no âmbito do processo de descentralização vai ser equilibrado, garantir a sustentabilidade financeira e acautelar as “legítimas reivindicações” dos municípios.

Também a nível financeiro, acrescentou, irá garantir a sustentabilidade das partes envolvidas.

No acordo, que segundo Luísa Salgueiro deverá estará pronto muito brevemente dado estar em fase final de negociação com o Governo, “tudo indica” que se não todas, a maioria das pretensões dos municípios será tida em conta.

“Aquilo que nesta semana foi transmitido é que, do ponto de vista geral, não há nenhuma recusa do Governo de considerar todas as pretensões que estão a ser apresentadas”, sustentou.

Apesar das boas expectativas, Luísa Salgueiro advertiu que há decisões que poderão não ser integralmente satisfatórias, sendo por isso natural que existam pontos não totalmente coincidentes entre a ANMP e o Governo, tal como tem vindo a acontecer.

A ANMP e os seus autarcas, que sempre reivindicaram mais competências próprias, aprovaram genericamente as áreas propostas pelo Governo para a descentralização, mas avaliaram desde o início como insuficientes as verbas que as acompanhavam.

Apesar do envelope financeiro, que os autarcas dizem ser manifestamente reduzido, ser o principal motivo de contestação, a presidente da ANMP revelou que há também questões operacionais, formais e jurídicas a resolver.

A título de exemplo, Luísa Salgueiro explicou que a gestão dos edifícios e da frota automóvel ao passar para as autarquias faz com que os profissionais do Ministério da Saúde que até então podiam conduzir essas viaturas, agora deixem de o poder fazer. “É preciso um diploma legal que os habilite a conduzir”, realçou.

São problemas que se vão detetando e que têm de ser ultrapassados, através da revisão de decretos-lei, considerou.

Rumo à regionalização

A presidente da Associação Nacional de Municípios Portugueses defende que é necessário que o processo de descentralização seja bem-sucedido para servir “de rampa” para a regionalização.

“Importa que este processo de descentralização sirva também para mostrar às pessoas que quando áreas como a Educação, a Ação social, a Saúde ou outras que estamos [os municípios] a receber, são geridas localmente traz vantagens e será, obviamente, um bom contributo para que a regionalização avance”, afirmou Luísa Salgueiro, em entrevista à agência Lusa, a propósito dos primeiros seis meses à frente da ANMP.

A socialista, que também preside à Câmara Municipal de Matosinhos, considerou que é importante que os portugueses percebam que o objetivo da descentralização é dar melhor resposta às suas necessidades e que é sempre possível fazer melhor a nível local.

Contudo, acrescentou, para que as pessoas entendam isso é necessário que o processo de descentralização em curso seja bem-sucedido, uma vez que o país deverá passar por um referendo à regionalização dentro de dois anos.

O Governo mantém a intenção de concretizar a regionalização, pelo que prevê iniciar um debate sobre a criação de regiões e a realização de um referendo em 2024, segundo o programa do XXIII Governo Constitucional entregue em 01 de abril, no parlamento.

No documento, o executivo sublinha que “considera que é essencial aprofundar o processo de reforma do Estado, estabelecendo uma governação de proximidade baseada no princípio da subsidiariedade”.

Nesse sentido, após o “maior processo de descentralização de competências das últimas décadas” e depois de “ter sido concretizada a democratização das CCDR” (Comissão de Coordenação de Desenvolvimento Regional), com a eleição dos seus dirigentes por autarcas, o executivo pretende abrir, “de forma serena e responsável, o debate em torno do processo de regionalização nos próximos anos, com o objetivo de realizar um novo referendo sobre o tema em 2024”.