“Ao Vivo”, biografia editada esta semana e escrita a quatro mãos com a jornalista Ana Ventura, é uma história em três capítulos. A do Luís Costa, a do DJ Magazino e a da luta. Luta pela vida e não contra a leucemia, como faz questão de sublinhar. É sobretudo sobre este último capítulo que conversámos. “Sinto que os jornalistas têm mais dificuldade em falar sobre isto do que eu”, dizia em jeito de início de conversa, e com alguma razão. De fora da entrevista fica o crescer em Setúbal, o seu Vitória, onde chegou a jogar, a descoberta do cheiro dos vinis, outros perfumes, como o das mulheres, e uma carreira com mais de 25 anos que já o levou aos quatro cantos do mundo e a um esconderijo da ETA.
Acordámos que nos íamos tratar por tu, vícios dos anos vividos em Espanha. Sem o microfone ligado, falámos desse período e dos Açores, de onde é natural a sua família. “Estou a falar contigo, mas estou cheio de dores nas costas e nas pernas", disse a certa altura. Não em tom de lamento, mas de desabafo. Luís, como é tratado pela família e nos corredores do IPO de Lisboa, já não se queixa. Está feliz e fala rápido. Estávamos a poucas horas do lançamento no Lux, onde iria assinar os livros com uma caneta oferecida pelas suas médicas, e a dias do regresso à cabine, que acontece este sábado, numa festa da editora e promotora Bloop Recordings, da qual é sócio, na Piscina Olímpica do Restelo.
O diagnóstico de uma leucemia crónica, que se agravou para aguda, chegou no final de 2019. Esteve quase um mês em coma, na sequência de ter ficado infetado com o novo coronavírus, já perdeu a conta aos ciclos de quimioterapia, "14 ou 15 ciclos", e aos dias internado. "Sei que no total, em 2020, estive perto de nove meses internado. Já conheço todos tão bem que pelo passo já sei quem é a auxiliar que vem no corredor", partilha.
Fala sem rodriguinhos de todo o processo, o relato no livro é cru, quase oral. O que a memória não registou é preenchido pelo testemunho de uma enfermeira. Ficamos-lhe a saber o nome dos amigos, das namoradas, mas também dos médicos e de todos os que se cruzaram nos quartos dos hospitais por onde já passou — e já foram oito. Um deles, o IPO, destaca-se.
"Em todos os hospitais tratam a doença, e tratam bem, mas não tratam a pessoa. No IPO tratam a doença e tratam a pessoa, que é a grande diferença", conta. Pede o regresso dos voluntários da Liga e denuncia a falta de enfermeiros. "Uma das salas de quimioterapia foi fechada por falta de enfermeiros", alerta, sem deixar de dizer que se não fosse o Sistema Nacional de Saúde (SNS) já tinha morrido.
Dizes que não lutas contra contra o cancro, lutas pela vida.
Exatamente, eu luto pela vida. "Lutar contra" já pressupõe algo negativo. E lutar pela vida implica passar por momentos muito difíceis, e eu já passei por alguns. Além do coma [devido à Covid-19], já tive momentos em que não conseguia andar ou só conseguia mexer um braço. Isso obrigava a que fossem as auxiliares a dar-me banho todos os dias, a mudarem-me as fraldas, a limparem-me o rabo...
Apesar de ter um pensamento positivo, houve momentos em que pensei que nunca mais iria conseguir levantar-me da cama. Como quando acordei do coma. Estava deitado e não conseguia sequer levantar a cabeça de forma a ver o corpo. Quando o consegui, chorei, chorei, chorei. Eram só ossos, não tinha músculo nenhum. Pensei que nem dali a seis meses conseguiria levantar-me da cama. E consegui. Dois meses depois, com muita fisioterapia, consegui. Fisioterapia e terapia ocupacional, que trabalha só a destreza manual. Quando acordei do coma não conseguia falar, porque estive ligado a um ventilador; não conseguia escrever, a mão não ia para a direita, escrevia as letras todas em cima uma das outras; não conseguia levar a mão à boca, porque acertava no nariz; não conseguia beber alguma coisa, porque engasgava-me logo. Quando percebi que não conseguia abrir uma garrafa de água... Voltei a chorar. Pensava: 'como é que vou conseguir dar a volta a isto?'.
"Em todos os hospitais tratam a doença, e tratam bem, mas não tratam a pessoa. No IPO tratam a doença e tratam a pessoa, que é a grande diferença"
Tinhas começado um ciclo de quimioterapia e estavas internado no IPO de Lisboa quando recebeste a notícia do teste positivo à Covid-19. Como é que reagiste a isso?
Fui apanhado no meio de um surto de Covid-19 no IPO. Foi no início do ciclo e estava a sentir-me bem. Eram três da manhã quando uma enfermeira foi dizer-me que tinha de ser isolado num quarto, porque tinha testado positivo, e que estavam à procura de um hospital para me transferirem, porque o IPO é covid-free. Liguei a um amigo, ao Cruz, e ele levou as mãos à cabeça, "não te podia acontecer mais nada...", mas eu sentia-me bem. Depois, ligou-me a minha médica a dizer que tinham lugar para mim no Hospital São Bernardo, em Setúbal. "Não sei se conheces", disse-me. "Doutora, eu nasci nesse hospital, não quero ir morrer lá", respondi-lhe. Com muita insistência, arranjaram-me então uma vaga em Santa Maria, onde estive em coma cerca de um mês e passei pelos cuidados intensivos. Mas quando soube, o que é que eu pensei? Bem, eu tenho leucemia, isso é que interessa. Qual Covid... O Covid vai passar. Mal sabia eu o que viria depois.
Ficaste com alguma sequela que tenha agravado a leucemia?
Estive dois meses e meio sem fazer quimioterapia e a doença galopou. Essa foi a primeira e a grande sequela. Hoje em dia sinto muito cansaço, que pode ser atribuído à leucemia mas também à Covid-19.
A leucemia foi diagnosticada em dezembro de 2019. Esta pode ser uma pergunta muito ingrata, mas no livro contas que há alguns meses que o teu corpo dizia que algo não estava bem. Porque é que não procuraste logo saber o que se passava?
Era um robot, à quinta-feira metia a mala dos discos às costas e voltava na segunda-feira. Que era aquilo que sempre gostei de fazer. Como estava a viajar todos os fins de semana e a tocar por esse mundo fora, mascarava a dor. Se tinha uma diarreia, imodium; se tinha dor de cabeça, tomava algo; o mesmo para a febre. Estava sempre a mascarar a dor. O que me começou mesmo a preocupar foi que suava muito na cama. Muito mesmo, quase todas as noites. Quando, a 30 de novembro, toquei na Áustria, já estava muito mal. Já toquei cheio de febres e dores, no limite. Ao regressar a Lisboa fui ao hospital. Dizem-me que tenho uma doença muito grave, leucemia, mas eu percebo que tenho pneumonia. Para tu veres...
Se tivesse sido diagnosticado antes, provavelmente a leucemia nunca passaria a crónica. Poderia viver a tomar um ou dois comprimidos até ao final da minha vida. E estaria a fazer uma vida praticamente normal. Essa é uma mensagem que procuro sempre passar.
Começas a ser acompanhado no Hospital dos Capuchos mas, contas no livro, “se soubesse o que sei hoje, tinha ido logo para o IPO. Só que o IPO tem um estigma muito pesado, é pesadíssimo, e eu estava completamente em negação”. Agora, com a devida distância, pensas se teria sido diferente se a decisão fosse outra?
Essas foram as duas opções que me deram, ir para o Hospital dos Capuchos ou ser acompanhado no IPO de Lisboa. E não me arrependo de ter ido para os Capuchos, porque quem não conhece o IPO faz dele um monstro de sete cabeças. Tem um estigma pesadíssimo. Mal ouvi falar em IPO pensei logo que iria ver crianças carecas, sem sobrancelhas, sem expressão. Fui para os Capuchos, que não tem a expertise que o IPO tem no meu tipo de cancro. Mas, problema maior, o Hospital dos Capuchos está completamente obsoleto. Muito estragado, os tetos todos pretos, as camas são terríveis, os quartos são demasiado exíguos para ter quatro pessoas... O mesmo não posso dizer dos recursos humanos, tem uma equipa fantástica de profissionais. Mas apanhei logo uma pneumonia nos primeiros dias que lá estive internado. Ia tomar banho, quando conseguia, e as janelas não vedavam bem. Tomava banho e sentia o vento a entrar pela janela. Um frio do caraças em dezembro...
Desculpa bater nessa tecla, mas de onde vem esse estigma em relação ao IPO? É por ser um hospital oncológico?
Sim, e hoje combato esse estigma. Sempre que falo... Ainda há pouco tempo a Joana Cruz, a radialista, foi diagnosticada com cancro da mama e começou a ser acompanhada num hospital privado. E sempre lhe disse: "Joana, se tu sentires alguma falta de cuidado, ou o que quer que seja, vem para o IPO. O IPO é um hospital onde vais ser muito bem seguida".
Neste processo todo, já passei por oito hospitais. Em todos os hospitais tratam a doença, e tratam bem, mas não tratam a pessoa. No IPO tratam a doença e tratam a pessoa, que é a grande diferença. Sabem que somos doentes de longa duração e o acompanhamento é diferente. Auxiliares, enfermeiros, médicos criam uma ligação com os pacientes diferente de outros hospitais.
Não sei se a Covid-19 o permitiu, mas ainda chegaste a ter o apoio dos voluntários da Liga Portuguesa Contra o Cancro?
Tenho uma tia que há nove anos que é voluntária no IPO, vai lá todas as sextas-feiras. Quando fui para o IPO, os voluntários, que são cerca de seiscentos, já tinham deixado de ir devido à pandemia. Mas fazem uma falta incrível... Já dividi quarto com pessoas mais velhotas que, por exemplo, não conseguem comer sozinhas e têm de esperar. Os voluntários, além de conversarem e fazerem companhia aos pacientes, também tinham essa função importante. Todos se queixam da falta que fazem. Já há alguns voluntários, mas estão todos fora dos edifícios e nas tendas. Só a orientar e a oferecer bolachas — até nisso o IPO é diferente. Essa é uma grande falha neste momento...
Toda a gente me diz que o IPO atravessa uma das piores fases de sempre. Faltam enfermeiros. Uma das salas de quimioterapia foi fechada por falta de enfermeiros. Hoje é quinta-feira e amanhã tenho uma sessão de quimioterapia, e ainda não tenho nada marcado porque estão a tentar encaixá-la de alguma forma. Estou à espera que me liguem.
"O cancro é uma doença que as pessoas escondem, é tabu, não se fala"
Com uma tia voluntária no IPO, ainda assim havia esse estigma?
Quando tomei a decisão, foi uma decisão tomada na hora. E eu e a minha tia nunca tínhamos falado sobre o seu trabalho de voluntariado. Hoje já é diferente e agora estou sempre a dizer-lhe da falta que lá faz. Também nunca tinha tido nenhum amigo que tivesse sido lá tratado. E se tive, nunca se falou. O cancro é uma doença que as pessoas escondem, é tabu, não se fala. À exceção, talvez, com um núcleo familiar reduzido.
Quantos ciclos de quimioterapia já fizeste?
Os ciclos são de 28 dias... Já perdi a conta. Comecei em julho do ano passado, mas interrompi devido ao Covid-19 e voltei em setembro. De setembro até agora já fiz 14 ou 15 ciclos. Tive de assinar um termo de responsabilidade, porque podia morrer, para poder receber o fármaco que estou a fazer neste momento. Era para fazer no máximo quatro ciclos e já passei dos dez. O meu corpo está completamente intoxicado. De três em três meses faço exames ao coração, pulmões e rins, os três órgãos principais para a quimio avançar. Incrivelmente, ainda tenho o coração pronto a apaixonar-me, os pulmões deixam-me fumar um charuto, ainda que nunca tenha fumado, e os rins, aí, bem, é que está mais complicado.
O que é que acontece quando terminares este ciclo?
Comecei-o esta segunda-feira e se não melhorar vou ter de iniciar outro ainda mais arrasador, que provavelmente me obrigará a ficar internado e a voltar a perder o cabelo. Mas estou feliz. Tenho o lançamento do meu livro, o regresso à cabine... Vivo o presente. O passado traz-me dor e sofrimento, o futuro receio, porque a qualquer momento posso ir embora, por isso tenho de viver o presente.
"Tenho comprimidos que custam ao Estado 600 euros por dia"
E quantas vezes já estiveste internado?
Já perdi a conta, também. Sei que no total, em 2020, estive perto de nove meses internado. Já conheço todos tão bem que pelo passo já sei quem é a auxiliar que vem no corredor.
E comprimidos por dia, são quantos?
Ora bem [faz as contas]. 2-6-7-8-9-10-11-12-13-14... Agora são 14. Já estive a fazer 37 por dia. E no mês de julho, contei, tomei mil e tal no total. [Risos] Mas habituei-me fácil, durante muitos anos tomei ecstasy, é só levar à boca.
Alguns destes também batem, pelos relatos do livro.
Das mil e uma infeções que já tive, houve uma que me obrigou a tomar um antifúngico específico. Tomei um, à hora do jantar, e passei a noite a alucinar. A segunda noite igual, ou ainda pior, até ambulâncias via. Quando fui à consulta bastou dizer "doutora, não sei o que se passa" para ela perguntar se tinha alucinado. Aquilo pelo qual passei, já muita gente tinha passado com aquele comprimido. Mas uma coisa é alucinar com LSD, e ter experiências, como tive no meio do mato, outra é estar em casa, querer dormir, e ver tudo a passar-me pelos olhos. Foi horrível.
Contas os últimos meses de forma crua, não romanceando todo o processo. Podia esperar-se algum azedume ou mesmo ressentimento, mas também não há. Há gratidão e carinho.
O que escrevi foi genuíno e factual. É a realidade, mas encaro-a sempre de uma forma positiva. É o que eu tenho? É o que há? Mas tenho de o superar.
Por exemplo, a comida do IPO é muito má. Eu percebo. O Estado só dá 2,12 euros por cada refeição para cada doente. Um sumo ou água, uma sopa, prato principal, sobremesa ou fruta. Com 2,12 euros como é que posso ter algo melhor? Só que se não fosse o SNS... Tenho comprimidos que custam ao Estado 600 euros por dia. Se já os estou a tomar há mais de um ano e meio, faz as contas. Já gastei ao Estado milhares de euros só em medicação. Fora os internamentos e as transfusões de sangue, que, disseram-me outro dia, já levei mais de 170. Num hospital privado custam 375 euros cada saco. Agora multiplica. Sou muito grato. Grato ao Estado e a todos os profissionais. Se não fosse o Estado já tinha ido embora. Era impossível. Tinha um seguro de saúde que cobre tratamentos oncológicos até 60 mil euros. Isso não chega a um mês num hospital privado. Critica-se muito, mas se não fosse o SNS eu já tinha morrido.
Grato ao Estado e às tuas médicas.
Eu adoro as minhas médicas e a minha terapeuta holística, a Patrícia Domingues, da Heal Me, que me limpou completamente alguns recalcamentos que tinha do passado e que me dá ferramentas diárias para autocurar-me. Ela tem o tom de me fazer acordar bem disposto. Todos os dias, em vez de pensar que tenho uma sentença de morte, que vou morrer... Se eu conseguir levantar-me e andar a pé, hoje é o dia. Sou-lhe verdadeiramente grato. E também aos meus amigos, à minha família. Porque ao fim de alguns meses sem trabalhar tive de falar com o meu pai, com os meus primos, e eles apoiaram-me. Agora, quando decidi doar as minhas receitas do livro - um ato um bocado louco, visto não ter rendimentos - eles apoiaram-me, e disseram-me para avançar.
Isto é como a oração de São Pedro de Assis. Não que eu seja católico, é dar para receber. Sei que vou ajudar muitas pessoas, pelo conteúdo do livro - mas também ao doar esse valor à Associação Portuguesa Contra a Leucemia, que apoia doentes e familiares de doentes, e à Heal Me, uma clínica de terapias alternativas. Quando percebi que não tinha muitos mais meses de vida tive de me virar para algum lado. Ao início foi impactante. Onze meses passados, percebo que foi importante. Antes queixava-me, agora não. Se tiver uma dor muito intensa queixo-me, claro. Mas sou um privilegiado, vivi e fiz aquilo que mais gosto, e viajei pelo mundo a fazer aquilo que mais gosto.
Referes-te à leucemia de alguma forma especial?
Não, nem gosto de falar... Procuro levar o meu dia a dia na forma mais normal possível. Se chego um bocado mais triste do IPO, o dia seguinte é outro dia. Não dá para baixar os braços. O maior desafio que se coloca a uma pessoa é o de lutar pela própria vida.
"Se eu não me aguentar, tu segues em frente, nem olhes para trás"
As amizades que se constroem em hospitais como o IPO são quase comparáveis às dos ex-combatentes. Sentes isso?
Completamente, é uma irmandade. Mesmo que os nossos caminhos se cruzem só um ou dois dias, vamos mantendo o contacto. Como acontece com o Sérgio Estrela, que já fez o transplante. Motivamo-nos mutuamente.
No livro mencionas outros nomes, alguns deles perderam a luta pela vida.
À exceção do Sérgio, todos eles morreram. Não houve um que sobrevivesse. Recordo-me da Conceição, uma professora da Figueira da Foz, que conheci no primeiro dia de internamento no IPO. Ficámos muito amigos e deu-me imensa força, até mesmo depois de ela saber que tinha pouco tempo de vida. Quando fui transferido para o Santa Maria ela mandou-me uma mensagem a dizer que me tinha visto na televisão, que estava com bom aspeto. Só li essa mensagem depois de acordar do coma. Quando regressei ao IPO perguntei por ela e disseram-me tinha morrido.
Que impacto tem receber essa notícia ao longo do processo de recuperação e de tratamentos?
O primeiro impacto é terrível. Chorei muito a morte do Bruno e do Djaló, que eram muito meus amigos e morreram os dois no mesmo dia. Essa semana foi terrível, chorei tanto, tanto, tanto. Mas depois uma das minhas médicas, a Dra. Joana Desterro [a outra, e que também menciona várias vezes no livro, é a Dra. Francesca Pierdomenico], disse-me, e com razão: sabe-se sempre das más notícias e quando alguém morre, mas há muita gente que sobrevive, tens é que te agarrar a isso. Sempre que estou pior, lembro-me deles. Brincávamos muito e dizíamos uns aos outros: "Se eu não me aguentar, tu segues em frente, nem olhes para trás". E é isso que levo a rigor.
Dizias antes que o livro irá ter um impacto monetário, ao reverter para as duas instituições que mencionaste, mas ao longo deste processo já ajudaste de outra forma. A campanha de recolha de sangue e inscrição para dadores de medula óssea, organizada pelos teus amigos, teve um resultado extremamente positivo.
É verdade. Em 2020, o único país, de toda a União Europeia, onde a base de dadores cresceu foi Portugal. E foi derivado a essa campanha, disse-me uma amiga que trabalha no Ministério da Saúde. O mais incrível é que uma das pessoas que se inscreveu como dador, o Diego, de Aveiro e muito meu amigo, ligou-me na semana passada a dizer que estava super nervoso porque foi contactado pelo Instituto Português do Sangue e soube que tinham encontrado alguém compatível. Até chorei quando soube.
É preciso que as pessoas também saibam o compromisso que se assume ao dar o nome para ser dador. Estamos a falar de esperanças que se criam em quem precisa de receber.
É preciso que os potenciais dadores saibam que receber a notícia de que há alguém compatível é como ganhar o Euromilhões.
Quando é que soubeste que tinhas um dador?
Essa é outra coisa incrível, foi quando estava em coma. Os médicos contam que esbocei um ligeiro sorriso sem abrir os olhos. Foi a única reação que tive quando estava em coma.
"Tenho poucos meses de vida se não fizer o transplante. Entre arriscar e saber que vou morrer, prefiro arriscar"
Isso já foi há mais de um ano e continuas sem poder receber.
Foi em julho do ano passado. Para receber tenho de ter um máximo de 5% de células cancerígenas e neste momento estou com 40%, o que é um exagero mesmo com quimioterapia.
Já alguma vez estiveste próximo desse número?
Estive nos 7%, e na altura não quiseram arriscar porque achavam que no mês seguinte iria estar melhor. Depois subiu para 19%, 24%, ainda baixou para 10%... Agora sabem que nunca chegarei aos 5%, mas vou arriscar fazer o transplante quando se chegar aos 15%. Os médicos são sinceros, tenho poucos meses de vida se não fizer o transplante. Entre arriscar e saber que vou morrer, prefiro arriscar.
No livro mencionas também duas das várias publicações nas redes sociais que fizeste ao longo destes meses. Seleciono duas, uma logo nos Capuchos, outra já no Santa Maria. A primeira sobre a falta de médicos, que não caiu bem no hospital; a segunda sobre a falta de casas de banho nos Cuidados Intensivos Covid-19, que levou ao melhoramento das condições. Em algum momento sentiste que te tratavam de forma diferente por não seres um doente anónimo?
Quero acreditar que não. Não acho que seja privilegiado a não ser em todo o carinho que recebo. Batalhei para ser transplantado, mesmo com 10% de células cancerígenas, e não fui, não passei à frente de ninguém.
Se não tivesses motivos para escrever o capítulo da luta, os outros dois, o do Luís e o do Magazino, seriam contados da mesma forma?
Não, porque a luta é que me despiu a alma, atirou-me o ego ao lixo. Tornei-me um gajo mais genuíno, sem filtro. Escrevi coisas no livro de que não me orgulho mesmo nada.
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