O frio do início da noite não afastou o grupo que com cartazes, faixas e lágrimas lembrou a "cidadã, mãe, ativista e excecional" mulher de 38 anos que, defenderam, foi vítima de um assassinato político no Rio de Janeiro com quatro balas na cabeça, num "ataque à democracia" que matou também o motorista da vereadora e deixou ferida uma outra mulher.

"Nove, foram nove tiros. Atingiram a mulher, a democracia, os direitos humanos e o sonho de um país livre", explicou à Lusa Márcio Sales, ativista brasileiro a tirar o mestrado em Portugal.

"Foram nove tiros. Era a concretização do desejo de matar todas as dimensões e possibilidades daquele ser. O primeiro foi na negra, que ousou ocupar o lugar feito para as elites, o parlamento", apontou.

"O segundo tiro foi na mulher feminista que incomodava. O terceiro tiro estraçalhou a lésbica que afrontava a heteronimação. O quarto tiro atingiu a mãe, que deixa órfã mais uma jovem brasileira. O quinto tiro atingiu a favelada, que povo abusado", continuou.

"E ainda era pouco para os fascistas", disse, já de voz embargada: "Veio o sexto tiro que atingiu a todos que militam pelos direitos humanos. O sétimo tiro foi na democracia e emudeceu o Estado de direito. O oitavo tiro atingiu-me também. Fiquei tonto, cai no chão, ofegante, espantado. Atingiu Anderson [o motorista de Mariella], ele era nós no volante daquele carro", salientou

E continuou. "Veio o nono tiro, dado por aquele que fazem comentários estúpidos diante do corpo inerte e do sangue vertendo", finalizou a contagem, deixando um apelo.

"Não vamos esperar o décimo", rogou.

E seguiu-se o silêncio de quem contou tiro a tiro, disparo a disparo. A evocação do nome de Mariella Franco rompeu com o silêncio do grupo, acordou-lhes o espírito de luta.

"Fascismo nunca mais. Que não seja mais uma morte em vão", ouviu-se.

O regresso do fascismo, da ditadura é um dos medos do estudante brasileiro: "Foi um assassinato político. Isso é óbvio. Mais significativo ainda porque ocorreu um dia após ela ter denunciado os assassinatos no morro e fazendo ela parte de uma parte da câmara que investigava a intervenção militar no Rio de janeiro", afirmou.

Para Márcio, "quando se mata alguém dos direitos humanos, que no dia anterior denunciou os abusos da polícia militar é muito mais do que isso, é querer calar toda uma sociedade".

Deste lado do oceano, o estudante, que se assumiu como "ativista, democrata, sonhador e lutador", vê no Brasil um país à deriva. "Vejo terrivelmente péssimo, não consigo ver luz no fundo do túnel após o golpe, existiu um golpe [referindo-se à destituição de Dilma Rousseff], há o regresso da escravidão, a Central de leis trabalhistas está a ser mudada e desde esse momento, em que se tiram direitos aos trabalhadores, volta a escravidão", lamentou.

Márcio descreve um país "no qual 80% da pobreza ainda é com os negros e está também a escravidão a voltar e a voltar o fascismo, é um país está entregue a senadores corruptos, traficantes, com escravos, com candidatos à presidência que mandam matar tudo pela frente, um Presidente como Temer, golpista, envolvido em diversos casos de corrupção, cresce o fascismo".

Ainda assim, "apesar do medo", Márcio quer voltar à Pátria.

"Volto em junho, tenho lá trabalhos sociais com moradores de rua e reabilitação de viciados. Volto correndo em junho porque acredito que fugir não é a solução", disse.

Braga, mas também ao pé do consulado do Brasil no Porto 

Cerca de 300 pessoas concentraram-se hoje diante do Consulado do Brasil no Porto para evocar a ativista política brasileira Marielle Franco.

Organizada pela União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR) e pelo artista plástico brasileiro radicado em Portugal, Sama, a iniciativa pretendeu ser mais do que uma "manifestação de solidariedade", sublinhando o caráter "icónico de Marielle", destacou o também autor de banda desenhada.

"Marielle foi morta numa execução" lembrou Sama, para quem a política brasileira foi a "primeira vítima assumida do golpe de estado que destituiu Dilma [Roussef] da presidência do Brasil".

Destacando que em Marielle "é possível encontrar várias lutas numa pessoa só", Sama lembrou que ela "nasceu pobre e que por causa das políticas de integração venceu na vida, formou-se em Sociologia e em Ciência Política, sem nunca esquecer as suas origens".

Sama perguntou depois "para quem serve a polícia no Brasil", numa alusão à acusação levantada no país de que o assassínio terá sido perpetrado pela Polícia Militar, contra uma "política que fazia a coisa certa, que prestava as contas ao público que a elegeu".

Da parte da UMAR, a presidente Maria José Magalhães referiu-se à homenageada como sendo uma "mulher negra, feminista, lésbica, uma lutadora dos movimentos sociais, um ícone do movimento feminista que foi executada".

"Estamos aqui para expressar a nossa indignação, para exigir ao governo do Brasil uma investigação, que condene os culpados e que pare com os assassinatos", acrescentou.

E prosseguiu: "eles pensavam que tinham matado a Marielle, mas o que conseguiram foi que ela se tornasse num ícone".

Na sua maioria mulheres e brasileiras, as manifestantes surgiram com várias frases em faixas, onde se lia "Marielle, presente", sendo possível ver outras com rosas brancas, numa manifestação que resistiu ao frio que se fazia sentir no Porto.


Última atualização às 20:46. Acrescenta no título e no corpo de texto a manifestação que teve lugar no Porto.

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