O escritor falava hoje na reitoria da Universidade de Lisboa, depois de ter recebido as insígnias de Doutor Honoris Causa em Letras, pela instituição. Dirigindo-se ao reitor, António Cruz Serra, afirmou: “Vivemos um período em que a única certeza é a incerteza”.
“O populismo é o novo fantasma que ameaça a Europa e o mundo. Nasceu da hegemonia cultural do poder financeiro globalizado. Ressuscitou de velhos preconceitos e novas capitulações”, discursou Alegre, para em seguida afirmar: “Creio que é num tempo assim que os poetas, escritores e filósofos são mais precisos. Para sacudir a anomia, como fez Antero de Quental. E escrever Sol, como Ramos Rosa. Para proclamar que os Estados não podem ser aprisionados pela mão invisível do mercado e por interesses que se sobrepõem ao interesse geral”.
O poeta recordou dois outros poetas, Natália Correia e Miguel Torga, que, “para chamar a atenção dos distraídos, vieram avisar que o Tratado de Maaschtricht significava a vitória do neoliberalismo sobre o modelo social europeu”.
Segundo o poeta e ex-candidato à Presidência da República, “há uma crise de convicções e é preciso reforçar na Europa e no mundo os valores da democracia e da coesão social, para combater o racismo, a xenofobia e o renascer da linguagem e dos tiques do fascismo que, em certos países, já contaminam o poder”.
“Por isso me congratulo com a exceção boa que Portugal é hoje, e aplaudo a posição e as palavras do Presidente da República nas Nações Unidas”, disse Alegre, considerando “a presença das mais altas figuras do Estado”, nesta cerimónia, como “um reconforto e um estímulo para quem acredita que as nossas principais forças são a Língua, a História e a Cultura”.
Segundo o autor de “Praça da Canção” e "Um Barco Para Ítaca", “a pequena ou grande revolução que a escrita pode fazer é reabilitar a força libertadora da palavra", pois "só por ela se pode reconquistar a perdida beleza da palavra do homem”. E advertiu: “É por isso que os clássicos não podem ser retirados do ensino público”.
Recordando quando esteve exilado, antes do 25 de Abril de 1974, Manuel Alegre revelou que “lia muitas vezes um pequeno texto de [Stéphane] Mallarmé”, que afirma: “Fechei o livro e os olhos, e procuro a pátria. Diante de mim ergue-se a aparição do poeta sábio que me a indica”.
Alegre afirmou: “Não sou capaz de otimismo beato. Procuro sempre a aparição do poeta sábio”, e afirmou que o seu otimismo “está na 'flor do verde pinho' do rei D. Diniz; no 'Sol é grande' de Sá de Miranda; no 'Auto das Barcas' de Gil Vicente, nas Crónicas de Fernão Lopes”, e prosseguiu citando obras e autores que o iluminam, como Camões e “Frei Luís de Sousa”, de Garrett.
“Dos sonetos de Antero, às virgens que passam ao sol poente de António Nobre, ao ‘Sentimento de um Ocidental’ de Cesáreo Verde, ao só, incessante, um som de flauta chora do incomparável Camilo Pessanha, a Fernando Pessoa, ele próprio e os heterónimos, ao nunca descrer do chão duro e ruim de Miguel Torga, ao 'não vou por aí' de José Régio, às palavras mordidas uma a uma de Eugénio de Andrade, à pequena luz bruxeleante de Jorge de Sena”, prosseguiu.
“Ao 'porque os outros se calam mas tu não' de Sophia, e ao 'entre nós e as palavras o nosso dever falar', de Mário Cesariny”, referiu ainda.
Reclamando ser da língua destes poetas, Alegre, Prémio Camões, acrescentou: “Sou desta língua que foi ao mar, descobriu outras línguas e, transformando-as, a si mesma se transformou. Una e diversa, dela nasceram a grande literatura brasileira e também a angolana, cabo-verdiana, moçambicana e de todos os países que falam e escrevem o português”.
E recordou que o Português “foi língua de múltiplas tiranias e várias resistências, língua de opressão e de libertação, e também aquela em que novas nações proclamaram a sua independência”.
Referindo-se à atualidade, Alegre disse: “Há dois revisionismos que é preciso ter a coragem cultural de combater: o primeiro é o que pretende negar a grandeza das navegações portuguesas que deram origem à primeira globalização da História; o outro é o que tenta redimir o colonialismo e branquear a ditadura e a guerra colonial”.
As afirmações do escritor conquistaram de imediato aplausos, os únicos que interromperam a sua intervenção.
No discurso de agradecimento, Manuel Alegre disse que esta distinção que o “honra”, o deixa também "em grande desassossego": "Porque me obriga a ser mais do que eu próprio. E é, ao mesmo tempo, um reconforto moral para quem, por circunstâncias históricas conhecidas, bem cedo na vida se viu privado de universidade e de país”.
O autor de “O Canto e as Armas” passou hoje em revista o seu percurso académico, literário e cívico, numa intervenção de agradecimento que demorou 19 minutos e que foi longamente aplaudida no final.
Ao longo de uma carreira literária de mais de 50 anos, Manuel Alegre recebeu os prémios das principais instituições, da Associação Internacional de Críticos Literários, ao Grande Prémio de Poesia e ao Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores, do Prémio D. Dinis da Casa Mateus, ao Grande Prémio de Literatura dst e ao Prémio de Consagração de Carreira da Sociedade Portuguesa de Autores.
Manuel Alegre recebeu o Prémio Pessoa em 1999 e o Prémio Camões em 2017.
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