O escritor nascido em Lisboa em 1944, e várias vezes premiado desde o início da carreira literária em 1981, é um dos últimos 50 sobreviventes antifascistas que estiveram presos na cadeia política da Fortaleza de Peniche.
Sujeito a 11 dias de tortura do sono durante o interrogatório pelas ligações ao PCP e pela luta antifascista, o autor de “Um deus passeando pela brisa da tarde” acabou condenado a dois anos de prisão, tendo sido transferido em maio de 1973 para a cadeia de Peniche, onde esteve seis meses, contou em entrevista à agência Lusa.
“Em Caxias queríamos ir para Peniche, porque nessa altura os presos em Peniche já não estavam fechados nas celas, já podiam circular, conversar uns com os outros e não havia um sistema tão claustrofóbico como em Caxias, onde os presos de uma sala não tinham contacto com os de outras salas”, justificou.
Já em Peniche, numa ocasião, recordou, os presos, ele incluído, junto à grade, “juntaram-se todos e decidiram gritar ao mesmo tempo, porque havia a convicção de que esses gritos se iriam ouvir na vila de Peniche e isso incomodava os carcereiros”.
O tempo aí era passado a jogar xadrez, conversar uns com os outros e a ler muito, numa altura em que podiam ter uma pequena biblioteca.
Face ao tempo livre, escolhia sobretudo “livros com vários volumes”, como as obras completas de Eça de Queirós, “Um dia na vida de Ivan Denisovich”, a história de um preso soviético de Solzhenitsin, ou “A Montanha Mágica", de Thomas Mann.
O gosto pela literatura ainda não o fazia pender para a escrita, que só viria a acontecer já depois da Revolução do 25 de Abril, que acompanhou a partir da Suécia, para onde se exilou depois de ter ficado em liberdade condicional e ter aproveitado para fugir - a pena terminaria em julho de 1974.
“Dava impressão de que ninguém dormia, estávamos num estado de permanente agitação e eu sentia que precisava de um espaço meu e o escrever foi, de certa forma, para angariar um espaço para mim, ter o meu canto”, explicou.
Com uma literatura pouco autobiográfica, porque prefere o “pacto de um mundo inventado” ao “sujeitar o leitor às agruras que passou”, Mário de Carvalho nunca escreveu sobre em Peniche ou Caxias.
Contudo, numa das crónicas do seu último livro, “O que eu ouvi na barrica das maçãs”, refere que “não gostaria de reviver a estadia em Peniche precedida de 11 dias de privação do sono”, mas homenageia os vários companheiros que aí conheceu e que tornaram essa sua passagem numa “experiência enriquecedora”, disse à Lusa.
“Apuros de um pessimista em fuga” é o conto que disse mais se assemelhar à sua vida de antifascista, ao contar a história verosímil de um seu amigo que, na véspera da ‘Revolução dos Cravos’, andava fugido e viu passar carros militares que o viriam a libertar no dia seguinte.
A vida de resistência ao regime inspirou os realizadores José Barahona, no filme “Quem é Ricardo?”, um dos pseudónimos que usava nas reuniões e contactos clandestinos, e Júlio Alves, em "A arte de morrer longe", cujas filmagens estão a decorrer.
Mais do que na ficção, Mário de Carvalho espera que com o futuro Museu Nacional da Resistência e da Liberdade na Fortaleza de Peniche “não se apague a memória de tempos terríveis em que uma pessoa era presa por se encontrar, por se manifestar ou passar papéis, coisas que hoje parecem banais e correntes”.
“É bom que não se esqueça”, advertiu, defendendo que “a democracia nunca está garantida”.
[Por Flávia Calçada (texto), António Cotrim (fotos) e Hugo Fragata (vídeo), da agência Lusa]
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