Em maio escrevi aqui um artigo de opinião em que — em parte como provocação, em parte por perplexidade com a situação portuguesa — perguntava se a Carbonária, uma organização terrorista da passagem do século XIX para o XX, não seria uma forma radical de resolver a permanente ineficiência da Justiça. Por acaso, pouco depois dei com um romance do autor e historiador Mário Silva Carvalho, “Diário de um Carbonário”, (Saída de Emergência, Lisboa, 2019) que ficciona, com muito talento, sobre as atividades desse grupo na altura da queda da Monarquia, em 1910.
Você fez uma investigação muito grande para este livro... Não estou a falar dos acontecimentos históricos, que toda a gente sabe, mas dos pormenores do dia-a-dia, o que eles comiam, as tascas onde se encontravam, a que horas acordavam e iam dormir.
Tenho quase a certeza de que sou o único português vivo que leu o “Diário de Notícias”, “O Século”, “A Luta” e “O Mundo”, de 1907, 1908, 1909 e 1910, todos os dias. Dia após dia.
Foi na Hemeroteca de Lisboa?
Estive na Biblioteca da Universidade de Coimbra. Li esses jornais e tudo o que há sobre a Carbonária – o que é quase sempre o mesmo porque, de facto, a Carbonária, como era uma sociedade secreta, não tem atas nem documentos. A seguir ao 5 de Outubro há algumas afirmações, e é só. Os documentos são raros; existe uma credencial passada em nome do Cândido dos Reis e há um testemunho dum juramento. Não sei quem é o autor desse testemunho, mas será muito próximo do que seria a realidade. De resto, são acontecimentos que se aprende a descobrir com a leitura atenta dos jornais. Avançando pelo “Diário de Notícias”, por exemplo, a certa altura, nos casos de polícia, diz-se lá que ontem o primeiro cabo do Adamastor foi violentamente agredido, física e verbalmente, no Beco da Palha, por três embuçados que ameaçaram que se ele abrisse a goela lha arrancavam. É uma notícia de três linhas que relata claramente um ato carbonário.
O quotidiano é que é a História duma sociedade. Um grande especialista, cuja obra conheço bem, é o Miguel Real, que sabe pormenores doutros períodos com uma minúcia espantosa. No que diz respeito à literatura de época, este seu livro tem o mesmo nível de investigação. Porque isso é que é interessante: a vida mudou muito, não só no sentido das opiniões, mas também nos hábitos, na maneia de estar, o que se come...
E os horários. O que era Lisboa, uma terra de misteres...
O Constantino (“herói” do romance) não existiu?
O Constantino não existiu.
Mas aquelas personagens à volta dele, o alfaiate, todos esses...
De facto, o alfaiate, que é o mestre da loja e mestre do Canteiro, era mação. Esse nome, António Santos, existiu. Mação e com ligações à Carbonária, como o Machado dos Santos.
Mas a Carbonária, em relação à Maçonaria, talvez seja comparável com o IRA e o Sinn Fein, na Irlanda. Ou seja, os maçons que tinham físico e coragem podiam ser carbonários, e os maçons burgueses não se metiam nisso.
Trata-se duma estratificação social. Há uma descrição dessa época que penso que é lapidar e que define claramente a diferença entre uma e outra. A certa altura o narrador diz assim: “a diferença entre a Carbonária e a Maçonaria é que os maçãos usam chapéu alto e os carbonários usam boina”.
Tanto que você vê que no 5 de Outubro os próceres republicanos, que eram maçons, claro, se esconderam num balneário público...
Nos banhos de São Paulo...
Exatamente. Enquanto os carbonários foram para a rua.
O 5 de Outubro é um movimento cheio de contradições. Chegaram a atuar cerca de 400 ditos combatentes, mas na tarde do dia 4 só lá estavam 200. Há uma debandada, sobretudo de oficiais do exército.
Eu penso, não sei se você concorda, que a Monarquia caiu de podre. Tal como o Estado Novo.
Exatamente. Caiu por dentro. É um paradoxo. Tanto que a guarnição de Lisboa, com a Guarda Municipal, a Polícia Civil e a PIC (Polícia de Investigação Judiciária e Preventiva, antecessora da atual Polícia Judiciária) tinha para cima de 8.500 elementos – de prontos, porque havia também os recrutas. Essa força, com um poder de fogo significativo, com artilharia e tal, acabou por se render a 300 homens mal armados, com dois canhões. É obvia a inércia das forças monárquicas. Os oficiais encolheram os ombros.
Pois, não queriam chatices. E a República foi implantada em Lisboa. O resto do país só soube por telegrama.
De resto, eles gabavam-se disso. Não sei se foi o Afonso Costa, ou o Magalhães Lima, que referenciou: “faz-se o golpe em Lisboa e o resto do país segue.” Claro que estamos a falar num país manietado politicamente, em que os dois grandes partidos monárquicos, o Regerador e o Progressista, controlavam completamente a estrutura social.
Que o João Franco vem quebrar, ao aceitar a nomeação de Dom Carlos para governar em ditadura.
Vem quebrar, sim. O João Franco é um grande aliado da República, na minha opinião, porque extremou as coisas. Levou ao regicídio. Li muito sobre o regicídio, li tudo o que está disponível, os jornais... também os jornais de Setúbal, que são importantes porque Setúbal já tinha uma tradição republicana.
Entre os mandantes do regicídio há monárquicos. Podem ter sido os carbonários a disparar, ou membros da Associação do Livre Pensamento. A verdade é que lá na praça foram mortos dois atiradores, mas não é certo se seriam carbonários. Não encontrei nada de concreto. O Buíça era um homem associado do Registo Civil, atirador de elite, e trabalhava no colégio da Rua das Pedras Negras.
Leu a carta dele ao filho, claro.
Li. E a feitura do testamento. Eles criaram uma frente, um comando, chamado “os Corujas”, que tinha como tarefa o assassinato do João Franco. Mas o João Franco era um homem muito esquivo, uma enguia, e eles não o conseguiam apanhar. Dizem – há duas versões – que um terá dito para o outro, já que não matamos o fulano, vamos matar o “cão grande”. Outros dizem que chamavam o “porco” ao Rei.
Essa é uma debilidade do sistema monárquico, depender duma sucessão familiar. Porque numa República, um Presidente assassinado é facilmente substituído por outro, sem quebra institucional.
Eles pensavam que, morto o Rei, seriam considerados como heróis.
Eles sabiam que iam morrer. Eu acho que sabiam. A carta do Buíça é clara quanto a isso.
Podiam ser imediatamente degradados para Timor, na melhor das hipóteses. Mas o que eu penso é que eles julgaram que o feito seria considerado histórico, com uma importância determinante. A verdade é que houve umas subscrições populares para a viúva do Buíça. O Alfredo Costa era solteiro.
Durante anos houve romarias aos túmulos deles.
Acho que ainda há. Mas nem todos eram maçãos ou carbonários. Não podemos minimizar a importância das forças anarquistas e dos socialistas revolucionários.
Que depois foram reprimidos pela República.
A República manteve muitas posições da Monarquia. Não deu o voto às mulheres, por exemplo.
Isso foi porque eles achavam que as mulheres eram muito influenciadas pelos padres.
A verdade é que a Igreja tinha um poder completamente discricionário. Esta é uma segunda versão do “Diário de um Carbonário”. O livro ganhou o Prémio João Gaspar Simões na Figueira da Foz em 2012. Essa primeira edição tem algumas coisas que não me satisfaziam e fiz alterações. Incluí capítulos novos. Um deles é uma história que envolve o padre Fiandeiro.
Mas as eleições não eram manipuladas?
Eram, e não deixaram de ser. Morto o rei e demitido o João Franco, volta-se ao sistema rotativo. Há eleições em abril de 1908 e o Partido Republicano só elege sete deputados, em Lisboa e em Setúbal. Em mais lado nenhum. Em Lisboa havia dois círculos eleitorais e eram organizados segundo os interesses da força instalada. Na província o rotativismo ainda era mais completo. Numa dada povoação havia dois regedores. Um deles passava a pasta ao parceiro quando havia uma mudança do partido que ganhava as eleições. Mais: em 1910, já com a República em ebulição, a possibilidade de um golpe... Em 14 de julho de 1910 a maçonaria faz uma reunião magna em Lisboa e determina que “isto só lá” vai pela força das armas. O congresso do Partido Republicano no Porto, em 1910, também define que a violência poderá ser o veículo de queda do regime.
Contudo, ser republicano, ser maçon e ser carbonário são coisas concomitantes, mas diferentes.
Mais do que isso, havia uma corrente, tanto na maçonaria como no Partido Republicano, que temia profundamente a Carbonária.
Ora bem, a Carbonária faz lembrar a situação das SA na Alemanha: foram muito úteis para provocar agitação civil e atazanar os judeus, mas assim que o Hitler chegou ao poder tornaram-se um incómodo. Porque quem está no poder quer que haja ordem na rua. E a Carbonária também se tornou uma força inconveniente. Mas o Luz de Almeida [fundador e principal dirigente e dinamizador de organizações secretas e clandestinas] era maçon e carbonário.
A Alta Venda da Carbonária era toda maçónica.
Pois, mas a Carbonária deixou de ser necessária e passou a ser um perigo.
Foi uma situação horrível. Posso dizer-lhe: os carbonários tinham uma pureza de sentimentos. Defendiam acerrimamente a Liberdade, Igualdade e a Fraternidade. E tinham a força duma coisa que hoje não existe: a miséria pungente. A fome: um prato de sopa por dia, os filhos descalços... Temos muitos problemas na sociedade de hoje, mas não são comparáveis. Nunca se conheceram objetivos de poder à Carbonária. Eles tinham uma meta, um desígnio: a extinção da Monarquia e a implantação da República. Implantada a República, logo a seguir o Partido Republicano e a Maçonaria entram em choque, com dissidências graves e começam a surgir novas correntes, novas associações e novos partidos. Em 1911 e 1912, a Carbonária ainda tem um papel ativo nas incursões do Paiva Couceiro no Norte. A partir dessa altura deixou de ter razão de existir.
Em termos práticos, ficou sobre a tutela do Afonso Costa, não foi?
Passou a ser um problema complexo, o que fazer com eles. Alguns, arranjaram-lhes emprego, outros foram para a polícia, pensou-se mesmo em criar uma força própria. O Partido Republicano tem imensas discussões sobre essa matéria. Em termos práticos, o que acontece é que a Carbonária acompanha a fragmentação do Partido Republicano. Criam-se várias carbonárias. E continuam a aparecer documentos sobre outras carbonárias que tiveram papéis mais passivos. A verdade é que, sobretudo a Formiga Branca, ligada ao Partido Democrático do Afonso Costa, vai ter um papel mais importante.
As dissidências tornam-se mais violentas a partir de 1914. Machado dos Santos tem uma deriva direitista, vai ser ministro do Sidónio Pais e depois pagará com a vida, em 1921. Mas em 1915 sobe ao poder um homem, o Pimenta de Castro, meio-republicano e meio-monárquico, que aceita um retorno das figuras monárquicas e católicas. Passa a haver um reconhecimento da Igreja, os jornais católicos voltam a publicar-se. Ele seria um moderado, mas a Igreja não era muito moderada, porque tinha sido seriamente ferida. O facto é que a Igreja se reinstala. Muito diferente do período anterior: lembro-me de ler jornais de 1911-12 em que se declara que a comissão de festas de não sei onde não fez a procissão porque não foi autorizada.
Os padres eram nomeados pelo Governo. As leis eram extremamente anti-clericais.
Os padres só podiam exercer dentro do templo. A profissão de freira ou monge não tinha sentido. Passaram a ter que andar à civil. Os jesuítas foram proibidos e expulsos.
Mas o radicalismo conservador da Igreja é histórico. Já na Guerra Civil espanhola também foi. E posteriormente, com o Salazar, também.
Então, regressaram. O grande escritor – esquecido – Raul Brandão faz uma descrição dum jantar de bispos, antes da implantação da República, em que foi convidado, porque era militar, em que no fim os bispos abanavam as saias e fumavam charutos. Depois de terem comido um menu degustação de 14 pratos. Ele ficou profundamente chocado.
Considerando as três classes sociais tradicionais – que já não fazem sentido – o clero não só tinha os privilégios da posse de terras, como não obedecia diretamente à Coroa.
Havia uma grande conivência entre esses os dois poderes, a Coroa e Roma.
Mas tinham sempre esse recurso, de invocar a obediência direta a Roma, quando queriam pressionar a Coroa.
E também eram os confessionários da rainha.
Só a confissão já lhes dava um armamento – um poder total. Mas, voltando à Carbonária, acaba mesmo é com o Estado Novo.
Em 1915, houve uma revolta... Repare, no 5 de Outubro morrem 86 pessoas e desaparecem meia dúzia, devem ter sido atirados para poços, valas ou rios. Na noite de 14 de maio de 1915 o número de mortos, na melhor das hipóteses, foi mais de 200, assassinados em grande parte pela Formiga Branca, entre eles um número significativo de cadetes do Exército. Foi uma noite terrível. Em seguida há eleições, o Partido Democrático tem maioria absoluta, governa, e faz Portugal entrar na I Guerra Mundial.
Mas, voltando a 1910, para se ver que foi um movimento lisboeta, em 21 de agosto de 1910 há eleições e o Partido Republicano, a Maçonaria e a Carbonária debatem se o partido deverá concorrer. As correntes mais legalistas venceram e o Partido Republicano elege 13 deputados.
Era uma câmara de cento e tal?
Cento e quarenta e tal. No Parlamento, não estou a falar do Senado. A nível autárquico havia um poder republicano diferente. Por exemplo, Lisboa é gerida pelo Partido Republicano. O Partido Regenador e o Partido Progressista nem se apresentam às eleições. A totalidade dos vereadores lisboetas era republicana.
Mas também há limitações. Por exemplo, em abril de 1908, votou cerca de 10% da população. Mas essas eleições foram muito importantes para a implantação da República. Porque o regicídio consolidou a apreciação de Dom Manuel, que fazia morrer de paixão as meninas de Portugal. Nasceu um namoro entre o país e o Rei. Que se reforçou quando ele instalou um Governo de cariz democrático, conciliatório.
Sim, a chamada Acalmação, com Ferreira do Amaral como Primeiro Ministro.
Porque o João Franco também tinha muitos opositores na Monarquia. Ele foi passear pela Europa, desapareceu da cena. Mas as coisas não estavam calmas; nas eleições de abril são mortas 14 pessoas pela Guarda Municipal.
Foram umas eleições muito tumultuosas.
Muito. O Júlio Dantas, que é outro escritor maldito e esquecido, escrevia crónicas n’”A Capital” e conta uma história que envolve o tal padre Fiandeiro. Ele fez uma barbaridade nessas eleições: votava-se no adro das igrejas, que é outro paradoxo, e, por respeito, a contagem dos votos era pública, feita no próprio adro. Mas o padre levou a urna para dentro da Igreja, aqui em São Domingos, ou em São Julião. Houve tumultos violentíssimos e há um rapaz de 20 anos, caldeireiro, que é morto a tiro pela Guarda. A Municipal era a guarda pretoriana do regime – como depois a Guarda Republicana. Só lhes tiraram a coroa. Eu conto essa história no livro. Os populares desenharam uma forca com o sangue dele. Acaba assim o namoro do regime com o povo.
Bem, você, como historiador, tem muito cuidado com a verdade histórica, mas devo salientar que o livro é muito bem escrito, vale como um romance que se lê prazerosamente, independentemente da veracidade dos factos.
Bem, os meus olhos podem ter cometido alguns lapsos; agora, os acontecimentos, as tentativas revolucionárias – que houve várias – a criação duma Choça Real, que é um documento que eu tenho, a criação do Tostão Preventivo, as choças socialistas, em 1908, tudo isso é verdade. Como é que descobri? Lendo os jornais da primeira à última página, os anúncios, tudo. Curiosamente, o Diário de Notícias, um dia, num grande paradoxo com o secretismo da Carbonária, publica como é que se faz um juramento carbonário. Identifica o cerimonial das reuniões e a classificação dos militantes.
Mas o secretismo dessas organizações não desse cariz. O cerimonial da Maçonaria está todo publicado em livros. O segredo não está nos procedimentos, está em saber quem é ou quem não é. E isso até é uma opção das pessoas. Um maçon pode dizer que é maçon quando quiser. Não pode é dizer quem são os outros.
Eu consultei na Fundação Mário Soares, que tem muita documentação. Mesmo online há atas de reuniões maçónicas. Mas no inventário dos documentos do Luz Almeida e do Machado Santos não foi encontrada nenhuma ata sobre a Alta Venda. E eles faziam reuniões quase todos os dias. Mas a Carbonária, essa sim, era uma sociedade secreta.
Sim, sem dúvida. Tinha mesmo esse modus operandi.
Porque as ações da Carbonária obrigavam a isso. Os carbonários eram perseguidos e presos. Levavam normalmente quatro meses de cadeia como primeira punição.
Fartavam-se de apanhar, com certeza.
Muita pancada. Também havia carbonários que eram descuidados. Por exemplo, há um caso famoso, que encheu páginas inteiras dos jornais, que é o caso do cartuxame, em que um rolo de cartuchos é encontrado na alfândega, em que há um fulano que é morto. E a Carbonária diz que ele não foi morto, teve azar. Apanhou um barco para o Brasil e caiu borda fora em Cascais, logo ali na Boca do Inferno. Mas eles prendem um fulano, um tal Agapito Vidraceiro, que foi apanhado porque tinha lá em casa a bengala com marcas, cabelo e sangue do Pedro que foi morto.
As pessoas não eram estúpidas; não havia a polícia científica, mas já havia polícia de investigação que se dedicava à Carbonária. Sabem-se os nomes de inspetores da PIC que perseguiam os carbonários. Mais: o Rei, quando vai para o Luso, em 1910, leva um inspetor da PIC que era especialista em Carbonária, porque eles temiam um atentado. Mal sonhavam que a Carbonária o foi defender ao Luso! Porque era muito perigoso para os republicanos a morte do D. Manuel. Houve uma embaixada do Partido Republicano que percorreu as capitais europeias, foi a Paris, a Bruxelas e a Londres – penso que não foi a Berlim, mas pelo menos estas três há a certeza de que foi. E em todas elas... A França era republicana, por isso aí teve simpatia. Mas em Inglaterra...
O Príncipe Consorte era amigo do Rei Dom Carlos e o depois o nosso embaixador, Marquês de Soveral, era amigo do Rei Eduardo VII.
O Dom Manuel, logo a seguir a ser entronado, vai ao funeral do Eduardo VII, em Inglaterra. Mas o que os ingleses dizem – existe um documento no Foreign Office que referencia isso, é muito claro - que são os povos que escolhem o seu regime. Eles, como monárquicos, ligados à família real portuguesa, ficaram profundamente chocados com o assassinato do jovem Luís, que era capaz de ter sido um bom rei, pois foi educado para isso, e do pai, Dom Carlos, que era um esbórnia, que deixou mais filhos e netos. Mas, de facto, as relações deles são com o povo português. A partir daí, a Maçonaria, o Partido Republicano e a Carbonária entendem o perigo de um comando anarquista qualquer largar uma bomba e matar o Dom Manuel. Um dia, o Dom Manuel vai ao Porto, onde é profusamente vitoriado – o país gostava dele. Era jovem, tinha perdido o pai e o irmão em condições tão dramáticas. Nós sempre tivemos este lado do fado.
Claro, claro. De nos comovermos com a desgraça.
Ele volta para Lisboa, faz o trajeto num landau aberto entre o Rossio e o Palácio das Necessidades – uma certa irresponsabilidade... – e a Carbonária faz um corpo de defesa. Porque havia uns restos duma organização que se chamava a Carbonária Lusitana, que entendia que tudo se resolveria se matássemos os padres todos e deitássemos as igrejas abaixo.
Eram anarquistas, realmente.
E de facto houve várias tentativas, uma dela em Mafra. Aí a Carbonária não tem nenhum papel, a polícia consegue detetar. Mas no caso do Luso, eles eram de Alcântara, a Carbonária conhecia-os, vai lá e diz que se fizessem tal coisa lhes limpava o sebo.
Há um movimento em França que não tem nada a ver, mas que é contemporâneo; são os nihilistas – achavam que tinham de destruir tudo para reconstruir a sociedade. Faziam atentados à bomba e os franceses tiveram grandes problemas com eles.
E em Espanha havia a Mão Negra, que tem uma história que não está contada. A Mão Negra era uma força violenta, mas depois as correntes conservadoras dos grandes agrários da Andaluzia aproveitaram o nome da Mão Negra para fazer uma série de patifarias torpes. Mas houve tentativas de matar o rei, o Afonso XIII, da parte da Carbonária espanhola. E mais, as duas carbonárias, a portuguesa e a espanhola, tinham relações.
Gostava agora de falar um pouco da situação presente. Vivemos numa situação que tem semelhanças com aquele período – em Portugal é sempre a mesma coisa: existe uma classe dominante, que hoje tem uma certa permeabilidade, ou seja, é possível ascender a ela se se for suficientemente esperto, ou desonesto, ou se se encostar às pessoas certas. Não vivemos numa sociedade hermética como antigamente, mas essencialmente a situação é a mesma. Contudo, o clima não é tão crispado como nesse princípio do século XX e, embora as pessoas por vezes digam que lhes apetecia aplicar métodos violentos sobre os prevaricadores mais públicos, não é provável que isso ocorra. Então, a minha pergunta é: como é que nós desfazemos este nó? Ou seja, como é que conseguimos que uma República que se queria igualitária, mas que acabou por ter uma classe de possidentes que estão todos juntos para explorar o público.
Só um movimento revolucionário.
Mas você vê alguma condição para haver um movimento revolucionário?
Quer dizer, em relação ao papel que uma Carbonária pudesse ter hoje, está completamente fora de causa. A massa, o cimento da Carbonária, já não existe. Que é a miséria – miséria pungente. Há um documento que mostra a miséria da sociedade portuguesa naquele tempo. O ditador João Franco entendeu, no seguimento do que já se fazia na Europa, determinar o descanso semanal ao domingo. Em Portugal trabalhava-se sete dias por semana. Mais; o nosso amigo Constantino (o protagonista do livro), enquanto esteve em Lisboa, à exceção do período que passou na prisão, trabalhou sempre, sábados e domingos, todos os dias. Tinha vários empregos. Mas quando o João Franco determina o encerramento das atividades produtivas ao domingo a lei acaba por ser corrigida — porque foi levada a fio de espada nas primeiras semanas, mas depois percebeu-se que uma sociedade que fecha deixa de funcionar. E esta lei, que era justa, foi muito mal recebida pela Carbonária e pelo Partido Republicano. E foi. porquê? As pessoas trabalhavam para comer. Não trabalhavam, não comiam.
Então eles não recebiam pelo domingo de folga?
Pois, não recebiam. Isso correspondia a ganharem menos. Por exemplo, um trabalhador ganharia 300 reis por dia – um soldador, um caldeireiro, um alfaiate, barbeiro. Uma dúzia de ovos custava 300 reis. Um quilo daquele chouriço corrente, mais barato, custava 400 reis. Um quilo de queijo flamengo custava 600 reis.
Quer dizer, eles passavam fome.
Comia-se sopa. Sopa de legumes. Umas couves. Grão, que era a 80 reis o litro. Ou seja, essa sociedade acaba por ser uma semente de abolição do medo, porque o pessoal não tem nada a perder. Hoje, quando se fala das contradições da nossa sociedade, as dificuldades da nossa sociedade, no desemprego, na injustiça, haver várias justiças, estamos muito longe dessa miséria pungente. Ou seja, não será por um movimento revolucionário que se farão as alterações. Nós somos um país periférico. Se começarmos a comparar a década de 1930 com esta década e a fermentação de ideias fascizantes... Eu não sei o que vai acontecer à Europa.
A Europa é outra questão.
Mas se a Europa se desequilibrar, aqui também haverá desequilíbrio. Estas eleições para o Parlamento Europeu provaram que aqui em Portugal não há esses desequilíbrios. Os populistas foram derrotados vergonhosamente.
Eu tenho uma teoria, não científica, que nós estamos sempre 50 anos atrasados, mais ou menos. Para não ir mais atrás, começa com a Revolução de 1822, que ocorre 33 anos depois da Revolução Francesa de 1789. Começamos a ter uma esquerda institucional em 1974, 38 anos depois do Front Populaire em França e 46 anos após a primeira vitória do Labour, em 1929. Agora, temos ainda temos um Partido Comunista com 10% dos votos e representação parlamentar; quantos países europeus têm partidos comunistas com esse peso eleitoral? Que país é que tem um partido Socialista como o nosso, soarista, digamos assim, à antiga, que não tem nada a ver com os sociais democratas do norte da Europa, que seria a mesma família política?
Seria interessante falar sobre o funcionamento dos partidos do arco do poder. São clientelas.
Precisamente. Isso ainda vem da Monarquia, do Nouveau Regime liberal da década de 1820. Portanto, é evidente que o que acontece na Europa acaba por se refletir aqui. Mas reflete-se uns cinquenta anos depois. Nós, como país europeu, o nosso valor é zero. Em PIB, em cultura, em tudo.
Corremos o risco de ser absorvidos.
Pois corremos. A nossa população está a diminuir. Se mantemos o mesmo número de habitantes, é por causa dos imigrantes. E está a envelhecer.
Cada vez mais. O que é uma injustiça!
Pois é.
A cabeça envelhece muito menos do que o corpo. E ter cuidado não serve de nada. Tinha um amigo extremamente cuidadoso com a alimentação e estilo de vida que se foi aos 42 anos.
Então acha que o nosso sistema político depende da Europa. Serão as alterações de lá que poderão provocar uma alteração aqui?
Tenho muitas dúvidas sobre o amanhã de Portugal. Porque de facto nós estamos aqui acantonados num cantinho e é interessante que todas as forças se agarravam desesperadamente ao Império como se fosse a solução para a pátria – hoje o Império foi ultrapassado, temos uma riqueza nova, diz-se que vai ser o Portugal do século XXI, que é o lítio. Se isso for verdade, e se Portugal passar a ser uma Arábia Saudita do lítio, e se o dinheiro não for gasto como o ouro do Brasil, pode ser que Portugal tenha um futuro. Neste momento vejo o país numa corda bamba. O progresso dos últimos anos assentou numa coisa profundamente efémera, que é o turismo. Se acontecer, já não digo um atentado, mas por exemplo um tremor de terra em Lisboa, o turismo vai-se. Imagine-se um Portugal sem turismo. O desemprego passava para mais de 30%. As divisas que hoje inundam a nossa banca, desapareciam. Portanto, é um país com muitas dúvidas no amanhã. E não é com carbonárias que se vai resolver o problema.
Portanto a nossa esperança de romper com esta carapaça que colocamos sobre nós é através da Europa?
Através da Europa. E eu, que tenho netos pequeninos, às vezes penso, qual é o futuro? Eu não estarei cá, mas qual é o futuro que os espera? Gostava muito que os meus netos fossem felizes, tivessem saúde e uma vida bonita. Não tenho a certeza se será possível.
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