Um bispo católico, que foi até 2017 missionário entre as comunidades pobres da África do Sul, é, desde há dias, membro da tripulação de um navio humanitário que vai socorrer migrantes no Mediterrâneo. As fotos mostram-no com ar de marinheiro, a bordo do Sea Eye, no dia da largada.
A reportagem vinha há dias no diário italiano Avvenire. Michael Wüstenberg, assim se chama o prelado, pediu a resignação ao Papa Francisco, invocando problemas de saúde, quando estava ainda longe dos 75 anos previstos nas regras da Igreja e regressou à diocese de Hildesheim, na Alemanha, o seu país de origem, onde tem continuado a desenvolver alguma atividade pastoral, em ritmo mais suave.
O Avvenire revela a “mola” que o fez despertar. Foi em 2013, quando Francisco, mal acabara de iniciar o seu pontificado, decidiu, para surpresa de toda a gente, ir a Lampedusa e fazer-se próximo da tragédia quotidiana que acontecia às portas do espaço europeu.
“A visita e aquela celebração sobre um altar construído a partir de um barco naufragado foram um raio de esperança”, disse o bispo aos voluntários do Sea Eye. Aí, Michael Wüstenberg sentiu que era chamado a fazer qualquer coisa.
Mas havia mais: “Como bispo em África, a abordagem europeia da emigração africana através do Mediterrâneo há muito tempo que me causava tristeza”, afirmou, pouco antes de partir.
Apesar das “boas intenções de alguns políticos, a economia colonial e pós-colonial está muito orientada para o benefício do Ocidente. Algo tem que mudar”, observa o bispo, para lançar o repto: “É importante assumir a responsabilidade, da qual os poderosos Estados ocidentais gostam de fugir. Parte da responsabilidade passa por emendar a lei de imigração.”
Formar líderes a partir da base
Ainda que já nos tenhamos habituado a que alguns hierarcas se sintam mais livres e até mais loquazes depois de passarem a eméritos, não é todos os dias que vemos um gesto arrojado como o deste bispo.
Já sabemos como se desencadeou nele a vontade de agir. Mas de onde vem essa disponibilidade para mudar de vida e testemunhar com gestos a mensagem do Evangelho e entrar no “hospital de campanha”, como faz o Papa?
Michael nasceu em 1954. Depois de frequentar, em Hamburgo, a escola primária e secundária, estudou Filosofia e Teologia nas universidades de Frankfurt e Friburgo e foi ordenado presbítero em 1982, precisamente em Hildesheim, onde voltou e se encontra atualmente. Na Alemanha, exerceu o ministério como capelão até 1987 e como pároco até 1992, ano em que se sentiu chamado a ir para África como missionário Fidei Donum.
O que significa ser padre Fidei Donum? Teremos de recuar a 1957, ano em que o Papa Pio XII tinha publicado uma encíclica com esse nome, cujo objetivo era conseguir a cooperação do clero diocesano dos países desenvolvidos a enviarem padres, diáconos e leigos para “terras de missão”, em especial para África.
Muitos países viviam, então – ou acabavam de viver – a descolonização e de conseguir a independência; era necessário contrariar a ideia de que as necessidades missionárias e de desenvolvimento desapareciam, com o desligamento das ex-metrópoles coloniais. Tratava-se, pois, de ajudar as igrejas autóctones nascentes a crescer.
O então padre Michael vai nesse movimento de solidariedade, em que a Igreja, neste caso, a da Alemanha, se tinha empenhado. Quando soube que o seu destino era a África do Sul, não ficou especialmente contente, porque temeu que o pusessem em algum subúrbio dominado por brancos. Não era isso que buscava, mas partiu. Enquanto trabalhava pastoralmente numa localidade no sudoeste da fronteira com o Lesoto, dedicou-se a estudar a problemática da missiologia na UNISA (Universidade da África do Sul), onde fez o doutoramento, em 2001. Nesse mesmo ano, foi nomeado vigário-geral da diocese de Aliwal.
A Conferência Episcopal da África do Sul reconheceu o seu valor teológico e pastoral e chamou-o, em 2003, para trabalhar no Instituto Lumko em Joanesburgo, um centro marcado pelo espírito do Vaticano II, onde se procurava ler os sinais dos tempos e promover uma “igreja participativa” e formar lideranças, a partir das experiências do terreno. Três anos depois, vai lecionar Teologia num seminário maior em Pretória e é aí que, nas vésperas de Natal de 2006, o Papa Bento XVI o vai buscar para bispo de Ailwal.
Pequenas comunidades participativas
Não são abundantes as informações sobre o modo como exerceu o múnus episcopal, mas o ponto forte e recorrente que encontramos foi a sua ideia de procurar capacitar pessoas das comunidades com as quais trabalhou, para que pudessem ser líderes locais, desenvolvendo aquilo a que chamou “comunidade de comunidades”, inspirado nas comunidades eclesiais de base do Brasil.
Numa deslocação que fez à Irlanda, em 2014, resumiu desta forma a linha orientadora e o método do seu trabalho pastoral: “A diocese tem trabalhado no sentido de desenvolver a paróquia como uma comunidade de comunidades e de capacitar os leigos a serem sujeitos em vez de objetos da ação pastoral, mudando de uma igreja que ‘provê’ ou que ‘ajuda’ para uma comunidade ativa onde todos participam”.
Na sua tese de doutoramento, é também aquela visão pastoral que aprofunda e desenvolve. O título é já todo um programa: O ministério comunitário dos líderes dos funerais católicos num contexto rural sul-africano. Procura explorar uma inculturação da fé e dos rituais próprios da morte, tendo em conta o contexto e as tradições locais, numa perspetiva de valorização da vida pessoal e comunitária. É nesta tese que, do ponto de vista substantivo e metodológico, sublinha não apenas a necessidade de uma “opção pelos pobres”, mas de “opção com os pobres”.
Estes vários elementos permitem compreender melhor o percurso que subjaz à sua opção de ir, nestes dias, ao encontro dos mais abandonados de todas as periferias, aqueles migrantes fugitivos da África ou do Médio Oriente – mulheres, homens, crianças, algumas destas sozinhas – que se lançam em busca de uma vida com dignidade e que são, em grande parte, apanhados nas redes da exploração e lançados quase por sua conta e risco na travessia do Mediterrâneo e, em muitos casos, vão ao encontro da morte por afogamento.
O motivo da sua renúncia à diocese de Ailwal depois de 13 anos de atividade foi, explicou, um problema de diabetes que estava a agravar-se. Vários médicos aconselharam-no a renunciar para, pelo menos, desacelerar ou interromper um processo que poderia pôr a vida em risco.
Na nova situação, a par dos tratamentos, anunciava, em 2017, na carta que dirigiu aos diocesanos, o desejo de encontrar “formas de contribuir ainda mais”, com a sua “experiência e conhecimento”. “Estou convencido que algo do que praticamos aqui, com as pequenas comunidades cristãs e lideranças, bem como com o ministério bíblico, pode inspirar desenvolvimentos na Igreja noutros lugares.”
Cada vez é mais difícil operar no Mediterrâneo para salvar vidas. A União Europeia e os governos mais diretamente envolvidos encontraram soluções para travar as viagens dos migrantes. Os navios de salvamento são com frequência arrestados — como aconteceu com o da Sea Watch, da capitã alemã Carloa Rackete — e os processos judiciais arrastam-se. A nova missão que está prestes a começar, e em que se encontra o bispo George, foi possível porque dadores particulares e várias igrejas, nomeadamente alemãs, se organizaram para juntar o dinheiro necessário à reparação e equipamento do barco.
Durante a semana, o Sea Eye percorreu os mares desde o Báltico até Espanha, onde estará a sua base de operações. Enquanto vencia a distância, só num dia, terão morrido perto de 130 migrantes, apesar de, durante horas, várias ONG terem alertado quer o lado líbio, quer os governos do sul da Europa, quer os navios que cruzavam a zona.
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