Qual o fascínio de enfrentar o mar sozinho? Será uma espécie de vertigem como aquela que se experimenta quando estamos num ponto muito alto e olhamos cá para baixo? Ou apenas uma vontade de virar costas a terra e ter pela frente o azul, só o azul do céu e o azul, às vezes verde, às vezes cinzento, quando não negro luzidio, do mar. Talvez seja só por à prova quem somos, talvez seja um desejo de ficarmos sozinhos. Talvez seja tudo isso, em doses diferentes, concluímos ao ouvir Miguel Sá, que se tornou uma dessas pessoas que pode dizer que já atravessou o grande mar, sozinho. No caso dele, madeirense dos cinco costados, o mar sempre foi - e continua a ser - tudo
Desde miúdo que se lembra da paixão pela vela e pela navegação. “O meu pai tinha um barco, a interação com o mar é desde sempre”, conta. Mas a sério começou aos 15 anos, ainda que por sua vontade tivesse sido mais cedo. “Eu queria começar antes, mas não tinha a idade que exigiam e, entretanto, a escola esteve uma temporada fechada, portanto ...”.
Portanto assim foi. Fez um curso de um mês e quando acabou foi convidado para ser monitor. Durante uns meses, foi a sua vida. Até que passou a integrar tripulações – a sério – mas “apenas” aos 23 anos teve o primeiro barco comprado depois de uma viagem até à Sicília como empregado numa embarcação. “Era um barco pequeno e apaixonei-me por ele”. relembra.
Perguntamos se é como comprar o primeiro carro. Não quer desmerecer, mas há qualquer coisa na forma como sorri que contradiz as palavras que lhe saem. “Eu não ligo a carros, mas é diferente, para quem tem paixão por carros será o mesmo”.
O que é que é isso de se “apaixonar por ele”? “As linhas do barco, e depois a parte emocional”, tenta explicar. Nem sequer era um barco novo, mas, para um miúdo de 23 anos da Madeira, era uma “bomba”. Comprou-o a um médico italiano, que tinha um segundo barco. “Quando vi o barco que o italiano tinha usado para uma regata fiquei apaixonado”, diz. E, dois ou três meses depois, comprou-o mesmo e foi com ele que fez a primeira navegação em solitário. “Quando disse ao ex-proprietário que ia fazer a navegação, já não me queria vender o barco, por causa da segurança e assim. Isto foi há 26 ou 27 anos, não havia GPS, não havia as ajudas que temos hoje em dia”.
Estávamos fartos de ver passar navios solitários de um lado para o outro e eu pensava ‘se outros fazem, porque é que eu não faço?'
Porque é que quis vir em solitário? “É um desafio a mim mesmo, ainda hoje faço isso. Na Madeira ainda ninguém tinha feito semelhante coisa, estávamos fartos de ver passar navios solitários de um lado para o outro e eu pensava ‘se outros fazem, porque é que eu não faço?’”.
Bem lhe disseram que era perigoso, bem o ex-proprietário hesitou. Mas Miguel Sá manteve a ideia. “Diziam-me que era perigoso, mas sair de casa pode ser perigoso. Sou casmurro por natureza e por isso fui”.
Correu bem. Não teve sustos, mas estava farto.” Houve alturas em que estava farto de estar na água. Estamos a falar de travessias de dois ou três dias e o Mediterrâneo para navegar é mais chato que o Atlântico”. Qual a diferença? “ O vento voa com mais facilidade, e pode mudar da noite para o dia, é muito difícil de navegar. A onda curta está sempre a martelar no barco. No Atlântico as ondas são grandes, mas são largas, o barco sobre e desce e não anda ali a bater. No Mediterrâneo as tempestades são piores”.
Foram 32 dias, com escalas. Sicília, Sardenha, Baleares, Maiorca, costa sul de Espanha, Gibraltar e, depois, “a grande travessia” de seis dias para Porto Santo. Quando chegou à Madeira tinha uma verdadeira comitiva à sua espera. “O chefe da marinha mandou um barco sair para me escoltar à chegada, e quando cheguei eram amigos, família, e tudo isto com cobertura jornalística. Tenho um amigo que é o diretor da RTP Madeira e ia telefonando a perguntar como estava a ser”. Uma festa.
Depois disso começou a trabalhar nas embarcações de turistas. Aí começou também a ganhar dinheiro e a poder ir trocando de barco. Era empregado mas comprou o barco onde trabalhava. Fazia percursos de três horas e meia, do Funchal até ao Cabo Girão, levava turistas a ver os golfinhos, duas a três vezes ao dia, todos os dias, durante o verão e o inverno. “Depois fui-me fartando e a concorrência foi apertando. Vendi tudo e agora tenho a minha pré-reforma”.
Foi há sete anos e de então para cá não trabalha, mas navega. Há cinco anos comprou outro barco, o Marujo, e em fevereiro decidiu fazer uma viagem das grandes.
“Sempre quis fazer uma viagem grande, faltava era patrocínio para isso, mas veio-me a ideia de pedir apoio à Câmara Municipal do Funchal”. O fundamento surgiu com uma ação no âmbito das relações com Cabo Verde, que se tornou assim o primeiro ponto de paragem de uma viagem maior. “Juntei material escolar para entregar nas escolas e presentes das câmaras municipais”. Encontrou “miúdos curiosos”, deu uma palestra e, já na Cidade da Praia, decidiu que em vez de voltar iria continuar, que em vez das mil milhas iniciais, seriam sete mil.
“Decidi não voltar a fazer a viagem para sul, é uma viagem chata, seriam para aí sete dias contra o vento. Tomei a decisão de fazer esta volta a meio da viagem para Cabo Verde. Estive em Santa Luzia e daí segui para São Nicolau, apanhei muito vento e fui direito para Santiago. Entreguei lá um livro e a partir estava a minha missão concluída ao nível de Cabo Verde. Depois fui à Ilha do Fogo, à Brava, mas só estive um quarto de hora em terra”.
Daí até ao ponto seguinte de paragem, em Barbados, foram 2300 milhas, 13 dias e 16 horas no mar.
E a verdadeira aventura começou.
Nos primeiros dias, o que comi além de arroz e esparguete que era o que tinha comigo, eram os peixes-voadores que aterravam no convés
“Saí de Cabo Verde desfalcado, não havia nem peixe nem carne. Nos primeiros dias, o que comi além de arroz e esparguete que era o que tinha comigo, eram os peixes-voadores que aterravam no convés. E lulas. Ao fim do terceiro dia comecei a apanhar peixe e a partir daí foi peixe com arroz ou massa. Perdi peso, mas não passei fome”.
Mais do que as refeições, Miguel Sá estava preocupado com a água. “Estava receoso com a falta de água, então usava metade água salgada, metade água doce. As minhas mãos começaram a ficar secas pelo excesso de sal e apercebi-me que tinha de cortar no sal. Não há duches de água doce, o que levou a desidratação. Não usava cremes, ficava à sombra, passava-me pouco tempo ao sol, não gosto de pôr cremes”.
Chegou a Barbados, depois de quase duas semanas de mar, por volta das três da manhã. “Barbados só tem uma marina, mas não sabia o que era. Ao chegar lá, apareceram algumas pessoas e ao entrar vejo que era mais um condomínio fechado”. Caro como um condomínio, mas nem por isso, diz, com grande qualidade. Decidiu sair e ao amanhecer foi dar a uma doca para barcos de pesca, que não era o seu caso. Mas correu bem e, no plano, tinha o encontro com um primo que sabia que estava por lá.“Só que houve uma falha de comunicação e não nos vimos”. Foi-se embora para a Martinica, onde encontrou “ilhas bonitas, pessoas simpáticas”. Passou um mês e meio por lá.
A travessia de regresso pelo Atlântico demorou 18 dias. A primeira terra à vista seria açoreana. Mas antes foram “18 dias no mar sem ver nada”.
Como é que se lida com 18 dias no mar sem ninguém? “Ia recebendo mensagens e informações sobre a meteorologia, mas a travessia foi muito mais difícil. O regresso teve muita turbulência. Tive sete anticiclones na mira, para um barco à vela é terrível. Tive de gerir o gasóleo e cheguei às Flores com meio tanque”.
E o que é que se faz quando se está 18 dias sozinho no mar? “Pensa-se muito. A minha rotina não era nada de especial, tentava aproveitar o tempo, por o barco a funcionar, se tivesse sol descansava. Não gosto de ler, portanto nem isso. Ouvia música. Refleti muito sobre tudo”.
Não era a primeira vez que fazia uma travessia tão longa, até já tinha feito uma maior, que durou 34 dias com passagem pelos Açores, sem parar, rumo a Bilbau. Mas nunca tinha feito uma viagem assim sozinho.
Quando chegou aos Açores, demorou-se uns dias. Ainda aproveitou que havia uma regata do Faial para Terceira, e ficou “encalhado nas festas”. Entretanto, um amigo que estava na Madeira disse-lhe que queria levar um barco para Ibiza. E ele lá foi. “Vim de avião, fui a Ibiza, voltei depois para os Açores e fiz Terceira para São Miguel, onde estive quatro dias, depois Santa Maria, e voltei".
Ao todo, passou seis meses, 11 dias e 3 horas sozinho no mar. Ficou a apreciar muito o silêncio e a suportar menos o ruído. Diz que ficou “mais calmo”. “Antes de ir era mais pavio curto e acho que acalmei”. Mas, ainda que em terra, continua com os olhos postos no mar.
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