E este livro... Gostei muito de lê-lo, porque é um livro de aventuras e ao mesmo tempo é uma biografia – de uma vida que existiu – mas está escrito como uma qualidade literária como se fosse um romance. Além disso, trata de um tipo de personagem que não é muito usado em literatura, que é aquele herói que não ficou famoso.

Anónimo.

Isso mesmo. Isto passa-se numa região que mesmo quem estudou geografia não se lembra que existe, a Patagónia... Porque é que resolveste meter-te neste empreendimento? Tiveste de ir à Patagónia, com certeza.

Fui à Patagónia duas vezes, a segunda já para pesquisar para o livro. A primeira vez, fui em trabalho para a revista “Grande Reportagem” e nessa altura tropecei neste português, o José Nogueira, que nem teve descendentes. Durante esse trabalho passamos por Punta Arenas e lá há uma avenida que passa pela praça de armas com o nome dele, e um hotel, num antigo palacete, que só depois soube que foi construído pela viuva dele, e que é o Hotel José Nogueira. O nome pareceu-me que só podia ser português.

Quanto tempo decorreu entre as duas viagens?

Bem, demorou muito tempo. O José Nogueira esteve em banho-maria durante anos. A primeira viagem foi em 1995.

Na segunda terás ido a Montevideo, não?

Não, nunca fui a Montevideo. Só fui a Punta Arenas, e à região em volta, que uma parte é argentina e outra chilena. Fui à primeira estância de criação de ovelhas que ele teve, andei ali pelo Estreito (de Magalhães). Na verdade, o que conheço é Punta Arenas e arredores. Depois, os arquivos relativos a ele e ao cunhado, a quem mandava escrever muitas cartas, e arquivos dos negócios. Toda essa documentação existe em Punta Arenas.

Então, vamos localizar o José Nogueira no tempo e no espaço.

Passou-se tudo no século XIX. Ele saiu de Gaia com 12 ou 13 anos, não se tem a certeza, como grumete, ou moço-marinheiro, a bordo de um navio de que não se sabe também a nacionalidade. Passei meses a investigar os registos de nascimento das freguesias de Gaia e não encontrei nada.

Isso acontecia muito, as pessoas não deixarem rastro, não é?

Acontecia muito. Aliás, não no século XIX, mas muito antes. Tentei descobrir qual seria o navio em que ele embarcou, porque no Arquivo Geral da Marinha tem alguns registos de marinha mercante e ele terá ido num navio comercial e não da Marinha Portuguesa. Nos navios mercantes tinham fardas e era tudo feito como deve de ser; não era um barco pirata que aportou ali e depois seguiu viagem.

Porque é que ele terá embarcado? Para sair da miséria, provavelmente...

Para sair da miséria, como foram milhares doutros. Aliás nessa altura já havia um grande movimento de migração para o Brasil e ele também vai lá parar, mas como grumete, ou seja, não fica em terra. Passa por Malta, isso sabemos, e no ano seguinte chega ao Rio de Janeiro. Faz-se fotografar em Malta, por isso é que sabemos que aportou lá. Quanto ao Rio, nunca lá fui, mas isso não tem importância, porque no século XIX era muito diferente do que é agora.

Devia ser muito bonito.

Atraente, sim. Nessa época já não havia comércio transatlântico de escravos, mas ainda havia escravatura. O Rio era uma cidade cheia de movimento.

Isso é na segunda metade do século XIX?

1858. Depois anda seis anos não sabemos por onde.

E sabemos porque ficou na Patagónia?

Oportunidade, provavelmente.

Tu escreves que a Patagónia era “uma esquina abandonada do planeta”.

Citei essa expressão, não é minha. Aquilo é mesmo o fim do mundo e muito agreste. Muito ventoso, frio, chuvoso. Varia um pouco conforme as regiões, mas, sobretudo no Estreito, na parte ocidental, na saída para o Pacífico, é chuva, granizo...

Mas qual era o interesse económico?

No início da presença dos imigrantes, o único interesse económico, para os que acabaram por se fixar lá, era as peles dos lobos marinhos. Foi um grande negócio, durante algumas décadas era a principal exportação da Patagónia chilena.

Os chilenos e os argentinos sempre disputaram aquela pontinha, não é?

Sim, só vinte anos depois dele lá chegar é que os dois países chegam a acordo sobre os limites fronteiriços. Punta Arenas era uma colónia penal, quando ele aportou.

Essas zonas remotas eram quase todas colónias penais. A Austrália também foi. A Nova Zelândia...

Os fins do mundo, na época. Na verdade, a colónia foi estabelecida só para afirmar a nacionalidade chilena. A posse do território.

Os portugueses também tinham colónias penais, não? Pelo menos havia condenados ao degredo.

Sim, em São Tomé e Cabo Verde, por exemplo.

Os portugueses têm uma capacidade de empreender noutras partes do mundo que infelizmente não têm em Portugal. Não sei se concordas. Quer dizer, eles vão para o estrangeiro e fazem coisas que aqui não fariam. Talvez seja porque aqui não têm oportunidades.

Não sei. É aquele velho ditado, a necessidade aguça o engenho. Acho que este é um caso. Aquilo era uma terra de imigrantes, espanhóis, franceses, alemães. Havia os indígenas, as tribos que já lá estavam e que acabam por ser expulsas e exterminadas pelo desenvolvimento económico da região – que é muito baseado na terra e acaba por eliminar os nómadas.

O José Nogueira era analfabeto e mesmo assim um bom negociante.

É verdade. Não sabia ler nem escrever, só aprendeu a assinar o nome. Isso porque tornou-se desconfiado nos contratos e escrituras que tinha de assinar. Assinavam por ele, com procurações, e depois às tantas ele adquiriu um estatuto social em Punta Arenas em que deve ter achado que já não podia assinar de cruz, ou pedir a alguém para assinar por ele.

Mas nunca quis aprender a escrever...

Não, não sei porquê. Quem escrevia as cartas era a segunda mulher, que tinha uma formação educada.

A primeira, não.

A primeira, não. Tinha quinze anos, era de Chiloé, uma ilha mais ou menos no centro do Chile, de pescadores e agricultores. Cultivava-se muita batata, na Patagónia, também. Aliás houve um inglês que passou lá e disse que pareciam irlandeses!

Os ingleses tinham esse desprezo pelos irlandeses, embora também comessem batatas...

Exatamente. Eu acho que ela talvez soubesse algumas letras, mas não saberia ler nem escrever.

créditos: Diogo Gomes | MadreMedia

Há muita política na história dele, porque no fundo era aquele formato universal, que é preciso conhecer alguém no governo para conseguir favores.

Isso é extraordinário, ele soube rodear-se... era uma pessoa simpática. Apesar de nos últimos anos se ter tornado um pouco azedo, por causa da tuberculose e porque percebeu que já não tinha muito tempo de vida. Mas soube rodear-se de pessoas influentes, de fazer a sua rede de contactos até Santiago, até aos corredores do poder. Encontrou-se com o Presidente da República da altura... Até conseguir que lhe dessem um milhão de hectares em concessão.

Há uma relação de que falas, que é com o Menendez, um asturiano; eu pensaria que eles eram inimigos de morte, porque o outro estava nos mesmos negócios.

Eles não se gramavam, digamos assim.

Mas tu dás ideia de que havia uma certa cordialidade entre eles. Ou percebi mal?

Não, não. Eu acho que o José Nogueira, o nosso português, fazia por não agitar muito as águas, esforçava-se para manter a paz social e comercial. Realmente eles tinham armazéns frente a frente, esquina com esquina, eram os mesmos negócios de facto, a caça de lobos marinhos, o ouro, a criação de ovelhas para produção de lã, que era também uma das grandes exportações – para Inglaterra, sobretudo. Mas ele tentava manter a paz. Houve uma altura, já no fim da vida do José Nogueira, em que as relações ficaram mais tensas, e que ele, que está em Santiago nessa altura, nas juntas médicas por causa da tuberculose, até manda escrever umas cartas a tentar tudo por tudo para fazer mal aos seus concorrentes, inclusive o Menendez. Contudo, meses depois escreve outra carta a dizer que finalmente a paz voltou, vamos tentar que permaneça assim.

Escrever uma história assim é um equilíbrio difícil. Normalmente as biografias são muito chatas, porque os biógrafos têm tendência para ser académicos e não romancistas. Já li biografias de escritores que eu admiro imenso e que são literariamente bastante pobres. Ora, tu consegues pegar numa biografia e romantizá-la onde é preciso. Tiveste que inventar, mas ainda bem.

Inventei algumas coisas nas relações e emoções pessoais, das quais não existe registo nenhum. Não há cartas de amor. Sabemos quem eram os grandes amigos dele, mas não como era a convivência no dia-a-dia – até o cunhado, que começa a trabalhar com ele muito cedo e depois se torna o seu braço direito, há as cartas entre eles, mas é muito negócio e pouco pessoal. Há algumas coisas pessoais. Por exemplo, quando ele morre, Punta Arenas vai ter um cemitério novo, e a viúva pede ao irmão para escolher um sítio bom onde enterrar o marido. E o Maurício, que é o cunhado, responde que escolheu a réstia de terra mais bonita que encontrou no cemitério. Há esses poucos sinais de que de facto havia uma relação emocional.

Quem foram os herdeiros dele?

Foi esta viúva, a Sara. Ela casou novamente, mas acabou por se divorciar sem ter filhos. Quando morreu, deixou muita coisa a funcionários que trabalhavam para ela e a uma sobrinha favorita que a acompanhou muito nos últimos anos de vida. A Sara só morreu em 1955, com noventa e tal anos.

Mas existe ainda aquele império que o José Nogueira construiu?

Não. Entretanto depois houve expropriações, nacionalizações, várias reformas agrárias – já antes do Allende, houve a do Eduardo Frei (Montalva).

Desfez-se-se tudo, então?

Desfez-se porque muitas das estâncias na Terra do Fogo que integravam o tal milhão de hectares agora estão nas mãos do Estado. Pertencem ao exército do Chile, ou pertencem à marinha. Algumas, mais pequenas, são particulares.

Não te apetece descobrir outra personalidade assim?

Apetece, mas eu acho que os arquivos, tanto em Portugal e fora de Portugal, estão cheios de personagens que nós desconhecemos. Por exemplo, quando escrevi esta história, não resisti a incluir alguns portugueses, ou porque passaram por lá na altura, ou porque passaram depois, que têm vidas fantásticas. Há um, que é o Conde de São Januário, que anos depois fez o trajecto de comboio de Calau até Arequipa. Era um caminho de ferro extraordinário, que depois daria azo ao caminho de ferro que atravessa toda aquela parte da América do Sul. São três mil e tal quilómetros de comboio. Esse Conde era diplomata, representante do Estado português. Esteve dois anos a explorar oportunidades comerciais. Voltou com peças de arqueologia, de artesanato, escreveu muitos relatórios sobre o assunto, como é que era o Peru, como é que era a Bolívia...

Então, esse é um bom candidato!

Há trabalhos feitos sobre ele, como há sobre uma série de personagens portuguesas. Mas tudo muito disperso. Agora, há com certeza pessoas muito interessantes que mereciam ser biografadas.

No “Moby Dick”, o Herman Mellvile inspirou-se para algumas personagens nos pescadores portugueses. Aliás, em Providence, no Estado de Rhode Island, há uma colónia portuguesa desde os tempos da pesca da baleia.

Sim, e caboverdianos até. Vinham da ilha Brava e são conhecidos como “os brava”, precisamente. Os baleeiros americanos metiam sal em Cabo Verde e levavam os que queriam sair dali.

Tu sabes muito sobre a “petite histoire” das coisas do mar. Tens algum projecto?

Assim para arrancar, não. Não sei se me apetece agora escrever. Porque do que gosto mais é da parte da investigação. No caso do José Nogueira, ele levou alguns documentos consigo, porque nos registos consulares não se encontra nada. Precisamente o do Rio de Janeiro da época, está em tão mau estado que não se pode consultar. Mas encontrei um documento de Calau, onde havia um consul português em 1874.