Em causa está "a própria natureza democrática" dos museus, que trouxeram a arte para o espaço público, na sequência da Revolução Francesa, e a tornaram "propriedade coletiva dos cidadãos", como sublinharam à agência Lusa.

Desde julho deste ano, vários grupos ambientalistas escolheram como palco de protestos museus do Reino Unido, Alemanha, Itália e Países Baixos, nomeadamente o grupo britânico 'Just Stop Oil’, criado por membros do ‘Extinction Rebellion’, e o alemão ´Letzte Generation´.

Os alvos escolhidos foram, por exemplo, o quadro “Girassóis”, do pintor neerlandês Vincent Van Gogh (1853-1890), em exposição na National Gallery, em Londres, ao qual foi lançada sopa de tomate, ficando ligeiramente danificado, e um quadro do pintor francês Claude Monet (1840-1926), da série “Les Meules”, em exposição no Museu Barberini de Potsdam, em Berlim, alvo de puré de batata.

Esta última obra não chegou a ser danificada, por estar protegida por um vidro, segundo indicação do museu.

Para diretores de museus portugueses, contactos pela Lusa, como o Museu Nacional dos Coches e o Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, que guardam, restauram e exibem coleções únicas no mundo, estes casos são “preocupantes” para estes espaços culturais, porque “colocam em risco um património que é de todos” e “deve ser protegido para as atuais e futuras gerações”.

O diretor do Museu Nacional dos Coches, Mário Antas, um dos museus mais visitados do país, mostrou-se “obviamente preocupado com um fenómeno que está sobretudo a alastrar na realidade europeia”, e cuja associação à arte lhe suscita muitas dúvidas.

“Não está em causa o direito de protestar, mas o 'modus operandi' para com as obras de arte, que, afinal, são património da Humanidade para serem fruídas por todos”, declarou à Lusa.

O diretor do Museu Nacional dos Coches - que possui a mais importante coleção, a nível mundial, de coches e carruagens reais do século XVI ao século XIX - diz ter "alguma dificuldade em perceber o que os museus e as obras de arte têm a ver com este tipo" de protesto ambientalista.

"Está relacionado com a questão do petróleo e da poluição, mas as obras de arte não têm culpa nenhuma. São ações mediáticas, mas é difícil de perceber porque têm as obras de arte de pagar por isto", questionou.

Relativamente à segurança, a direção do museu “está em concertação com as orientações de segurança da Direção-geral do Património Cultural [DGPC]”, organismo do Ministério da Cultura que tutela museus, monumentos, palácios e sítios arqueológicos nacionais.

Nesse sentido, têm sido promovidas reuniões para reforçar o alerta da equipa de vigilância do museu, que possui um “excelente sistema de segurança interna”, salientou.

Também chamou a atenção para a necessidade de uma “educação patrimonial” da sociedade, numa “via profilática e pedagógica que se pode fazer todos os dias, a começar nas escolas, com a consciencialização da importância do património único existente em Portugal”.

Os mesmos receios são partilhados pelo diretor do Museu Nacional de Arte Antiga, Joaquim Caetano, instituição onde se encontram obras de relevo, nomeadamente da pintura antiga portuguesa, como os Painéis de São Vicente, ou, de Heronymus Bosch (1450-1516), “Tentações de Santo Antão”.

Além destes tesouros patrimoniais, atualmente, por empréstimo do Museu do Louvre, em Paris, está também em exibição no museu uma pintura do artista Nicolas Poussin (1594-1665), “Retrato de Artista".

“É óbvio que a situação é preocupante para todos os museus, e estamos a tomar medidas para tentar que não aconteça nada”, indicou, em declarações à Lusa, especificando que o reforço tem sido feito “com empresas de vigilância, em princípio, mais preparadas para responder a casos destes”.

Disse ainda que “é precisamente a DGPC que está a fazer o controlo e a tomar essas medidas”, porque “a preocupação é partilhada por diretores de museus e pela tutela”.

“Estamos neste momento a fazer todos os esforços para acentuar a prevenção quanto a um possível aumento do fenómeno, que passa muito pelas redes sociais e pela mobilização com efeito cumulativo”, acrescentou à Lusa.

O historiador de arte recordou que "uma das razões pelas quais os museus nacionais foram criados a seguir à Revolução Francesa foi precisamente para responder à iconoclastia [movimento radical que se opunha ao culto das imagens e que chegava a destruí-las] revolucionária, que, na altura, atingiu um grande peso sobretudo pela ligação da arte à riqueza do antigo regime e à propaganda real".

O retirar dessas peças dos espaços reais e nobres para a criação dos grandes museus nacionais "foi uma resposta no sentido de retirar a carga propagandística que grande parte da riqueza artística tinha, e transformá-la numa propriedade coletiva dos cidadãos", lembrou.

"Houve uma descontextualização do caráter de propaganda da arte, e a sua transformação num mecanismo de identidade da própria democracia nascente. É nesse sentido que as obras de arte estão nos museus. Quando essa iconoclastia [agora] entra nos museus, quer dizer que se está a pôr em causa a própria natureza democrática destas instituições, e isso parece-me um pouco despropositado como 'modus operandi'”, sustentou Joaquim Caetano.

Outra obra alvo de ataque, esta por sopa de tomate lançada pela 'Just Stop Oil’, foi "Rapariga com Brinco de Pérola" (1665), uma das mais célebres do pintor neerlandês Johannes Vermeer, no Museu Mauritshuis, em Haia, e, mesmo não tendo sofrido danos, acabou por ter sido fechada a sala onde se encontra exposta ao público, para investigação.

Esta semana, no Palácio Bonaparte, em Roma, “O Semeador”, de Van Gogh, foi alvo escolhido para o puré de legumes de três ambientalistas da ‘Letzte Generation’. A obra, protegida por um vidro, não sofreu danos.

As organizações ambientais responsáveis reclamam – com estas ações - medidas efetivas para limitar as alterações climáticas, sendo que o movimento ‘Just Stop Oil’ pretende concretamente que o Governo britânico decrete o fim imediato de qualquer novo projeto de petróleo ou gás.

A historiadora de arte Rita Lougares, diretora do Museu Coleção Berardo, em Lisboa, que reúne algumas obras icónicas de arte moderna e contemporânea, classifica estas ações como “terrorismo” contra a arte.

“Na minha opinião estão ser ultrapassados todos os limites. São ações de terrorismo, e a cultura não deveria ser o alvo. Vivemos numa era em que a violência que choca seduz e isso preocupa-me bastante”, manifestou, numa resposta por 'e-mail' à Lusa.

Considera que as pessoas “têm todo o direito de se manifestar e de lutar pelo que acreditam e, as causas ambientais são sem dúvida de enorme importância e deveriam estar na agenda das nossas prioridades, é uma luta pela sobrevivência da nossa espécie”.

“Mas será que vale tudo?”, pergunta Rita Lougares, duvidando que usar os museus e os seus bens culturais como forma de atrair a atenção do público tenha impacto, podendo ser usadas outras formas de luta.

Sobre medidas tomadas na sequência destas ações, a diretora do Museu Berardo indicou que os padrões de segurança estão a ser ajustados, “conscientes de que é impossível garantir 100% de segurança”.

“Para isso, teríamos de manter as obras nas reservas e as obras deixariam de estar em exposição”, apontou.

O reforço inclui maior controlo na entrada do museu, vigilância nas salas de exposição, e proteção das obras, com a aplicação de acrílicos/vidros.

Membros do 'Just Stop Oil' chegaram a colar-se à moldura do quadro “A Última Ceia”, do artista Leonardo da Vinci (1452-1519), na Royal Academy of Arts de Londres, e ao quadro “The Hay Wain”, de John Constable (1776-1837), na National Gallery.

A diretora do Museu Nacional de Arte Contemporânea, em Lisboa, Emília Ferreira, considera "absolutamente inaceitável e condenável" este tipo de ações de protesto, que visam obras de arte: "Os fins não justificam os meios e atacar património público para obter atenção revela inconsciência, irresponsabilidade e desrespeito absoluto por um património que é de todos, não resolvendo rigorosamente nada do que reclamam ser a sua preocupação".

"Penso que isto reflete um egocentrismo ignorante, e é uma confissão de inoperância, já que é, à partida, uma causa justa, mas transforma-se num ato hediondo. Isto demonstra, contudo, que estas pessoas não veem os museus como espaços de ADN democrático e acessível, nem a arte e a cultura como centrais à nossa vida, antes os tratam como se o património fosse pertença de uma elite e como se esse património fosse, de facto, dispensável", argumentou, num 'e-mail' em resposta à Lusa.

No Porto, o Museu Nacional Soares dos Reis, que se encontra em fase de produção da sua nova exposição de longa duração, a qual prevê inaugurar no início de 2023, segundo o diretor António Ponte, reitera as medidas de proteção.

“Nesse contexto, e face ao novo modelo expositivo, estão a ser equacionadas medidas de segurança necessárias para salvaguardar a coleção” e, “entretanto, continuarão a ser cumpridas as normas de segurança em vigor, nomeadamente a proibição da entrada de mochilas, sacos e outros objetos similares”, acrescentou o responsável numa resposta escrita.

Na mesma cidade, o Museu de Serralves respondeu à Lusa, por escrito, que “desde a sua abertura [em 1999], adotou sólidos protocolos de segurança que periodicamente e de forma sistemática são revistos e adaptados a circunstâncias antecipáveis”.

A Lusa também contactou a Direção-Geral do Património Cultural (DGPC), que, por 'e-mail' respondeu: “Demonstramos o nosso completo repúdio perante tais atos de vandalismo que têm surgido ultimamente contra importantes obras de arte”.

“Sendo assim, consideramos que nenhum museu está preparado para lidar com atos de vandalismo de tal natureza, pela surpresa que acarretam, pelas mais variadas e inesperadas formas que podem assumir e pelo mau princípio com que são acometidos, dado que atacam a arte para atingir outros fins”, acrescenta, na missiva.

Fonte oficial do Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, na capital, indicou, por seu turno, que não tomou medidas extra face a estes atos específicos, mas “tem, de forma permanente, equipas de segurança e vigilância de forma a minimizar eventuais percalços no espaço expositivo”.

“Estas equipas trabalham em conjunto com a produção das exposições para adaptarem estas medidas de segurança às especificidades de cada projeto expositivo”, acrescentou, indicando ainda que tem vindo a dar, na programação, “uma atenção constante às questões derivadas das urgentes questões climáticas e uma ação interventiva permanente na defesa do planeta através dos meios que a arte, os artistas e os projetos pedagógicos associados nos permitem desenvolver”.

Por seu lado, a Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, diz que está “atenta à situação, mas, por razões óbvias, nunca comenta nem divulga publicamente os seus protocolos de segurança interna”.