'O Futuro Me Absolve', deu Rita Lee como título a uma canção de “Babilônia”, álbum que editou em 1978. Corremos as redes sociais meros minutos após o anúncio da sua morte, esta terça-feira, e rapidamente chegamos à conclusão que não só esse futuro, agora presente, a absolveu como endeusou. Não foram apenas as gerações mais velhas, as que dançaram ao som da sua música em discotecas, a lamentar o falecimento da artista. Os mais novos, que não eram sequer pensados quando Rita Lee surgiu na música como um furacão, também deixaram várias notas de pesar. “Rainha do rock brasileiro”, escreveu-se por toda a parte, em ambos os lados do Atlântico. “Ícone”, “imortal”, “ídola”, acrescentou-se.
Para que Rita Lee chegasse a quem não ouviu 'Lança Perfume' no dia de lançamento, contribuiu, e muito, a sua personalidade. Nomeadamente o facto de não deixar nenhuma palavra por dizer, e sobretudo por não ter vergonha alguma de as pronunciar, com o humor, muitas vezes auto-depreciativo, que lhe era característico. O portal brasileiro “Metrópoles” lembrou a omnipresença de Rita no Twitter, onde foi dona de pérolas como “gosto de mim mas não é muito confortável ser eu”, “a vida é curta, e eu grossa” ou “eu não estou drogada, eu sou a droga”, frases que, para uma geração terminalmente online e com problemas de auto-estima, eram quase mantras. Não era confortável ser Rita Lee, mas toda a gente queria ser Rita Lee. O conforto, na vida, é para quem não a quer viver realmente.
E ela viveu-a, plena, todos os seus altos e baixos. Nascida Rita Lee Jones de Carvalho a 31 de dezembro de 1947, filha mais nova de um pai com sangue norte-americano e de uma mãe com descendência italiana, a artista brasileira procurou fazer da sua existência um réveillon constante.
A infância podia ter sido como a de qualquer outra família paulista de classe média, não fosse o ter sido violada aos seis anos por um homem armado com uma chave de fendas. “Não lembro de ter sentido dor, nem do que aconteceu em seguida, certamente deletei esse capítulo. Só sei que desse dia em diante as mulheres olhavam para mim como a pequena órfã. A dor delas certamente foi muito, mas muito maior do que a minha”, escreveu, na autobiografia que editou em 2016.
Em certa medida, Rita foi a primeira grande feminista do rock. (...) Foi censurada – é a artista que mais sofreu com a censura brasileira –, foi presa durante a gravidez do seu primeiro filho, só não foi expulsa do país porque não calhou
Esse episódio trágico serviria, mais tarde, para que os olhares alheios justificassem a vida rock n' roll que levou, algo que Rita Lee nunca pretendeu; justificar-se era assumir o erro e não havia, naquele mundo de ácido e sexo, nada de errado. Em certa medida, Rita foi a primeira grande feminista do rock. Janis Joplin e Grace Slick eram mulheres fortes num mundo de homens iguais. Rita Lee era mulher., ponto final, mais que orgulhosa de o ser. E isso, num Brasil onde as regras eram duramente ditadas, a sua existência, e os seus versos, têm o elã de um ato revolucionário. Foi censurada – é a artista que mais sofreu com a censura brasileira –, foi presa durante a gravidez do seu primeiro filho, só não foi expulsa do país porque não calhou. E por todos esses momentos passou de cabeça erguida, como quem ergue o dedo do meio.
A música chegou-lhe ainda criança, pelas vozes de Elvis Presley, Paul Anka, Beatles ou Rolling Stones, mas também João Gilberto, Maysa ou Cauby Peixoto. No liceu, formou uma banda só de raparigas, as Teenage Singers, onde era baterista. “Cantávamos bonitinho, tocando éramos um desastre”, admitiu na sua autobiografia. Após um caso agudo de apendicite, trocou a bateria por uma guitarra e fundiu as Teenage Singers com um trio masculino, os Wooden Faces, que dariam origem a Os Seis e, mais tarde, a Os Mutantes, a banda mais importante do rock brasileiro aos olhos de um estrangeiro.
Com Os Mutantes, ajudou a dar corpo à Tropicália, movimento artístico dos anos 60 que procurou juntar a cultura popular à vanguarda, o ritmo brasileiro ao psicadelismo norte-americano. A ordem era para experimentar, despejar no mundo o resultado de uma particular antropofagia, que comia e regurgitava todas as influências que tivesse à sua frente. O manifesto desse movimento, “Tropicália: Ou Panis Et Circences”, foi editado em 1968, com Os Mutantes – Rita Lee, Arnaldo Baptista e Sérgio Baptista – a figurar ao lado de Gilberto Gil, Caetano Veloso ou Tom Zé. Um mês antes, Os Mutantes lançavam o seu primeiro disco, homónimo, onde a versão definitiva de 'A Minha Menina', de Jorge Ben, se junta à deliciosamente trippy 'Baby' e à fritaria rock, misturada com poesia e música concreta, ritmos africanos e cultura pop, de 'Bat Macumba'.
Os Mutantes” foi considerado pela “Rolling Stone” como o 9º melhor álbum brasileiro de sempre, o 9º melhor álbum de rock latino de sempre e, melhor ainda, como o 39º álbum mais drogado de sempre
A banda mais importante do rock brasileiro aos olhos de um estrangeiro, repetimos: “Os Mutantes” foi considerado, anos mais tarde, pela “Rolling Stone” como o 9º melhor álbum brasileiro de sempre, o 9º melhor álbum de rock latino de sempre e, melhor ainda, como o 39º álbum mais drogado de sempre. Porém, isso não foi verdade, àquela altura, no Brasil, com boa parte da população e dos seus colegas de profissão a olhar de lado para aquela mélange de música pátria e imperialismo americano (e isto dos dois lados da barricada política). Durante uma atuação na edição de 1968 do Festival Internacional da Canção Popular, no Rio de Janeiro, ao lado de Caetano Veloso, Os Mutantes foram constantemente vaiados, insultados e agredidos com fruta e ovos pelo público presente, que via na Tropicália uma afronta.
Esse género de reações não impediu, ainda assim, o grupo de continuar o seu percurso. Em 1969 lançaram um outro álbum praticamente homónimo (apenas “Mutantes”, sem o “Os”), e em 1970 editaram “A Divina Comédia Ou Ando Meio Desligado”, onde a influência do rock norte-americano é mais notória, até porque Gilberto Gil e Caetano, seus mentores, estavam então exilados. É o álbum da fabulosa 'Meu Refrigerador Não Funciona', onde a neurose da vida moderna – alguém que entra em desespero ao constatar que uma das suas comodidades deu o berro – é precedido pela maior e melhor imitação que Rita Lee alguma vez fez de Joplin.
A artista era então casada com Arnaldo, de quem se separaria em 1972, finalizando o divórcio cinco anos depois. Com os elementos d'Os Mutantes, de quem se começava a distanciar (eles queriam entrar sem medo no chamado rock progressivo, Rita não era a mais habilidosa das instrumentistas), gravou os seus primeiros dois álbuns a solo, “Build Up” e “Hoje É O Primeiro Dia Do Resto Da Sua Vida”, antes da cisão definitiva – que terá deixado marcas profundas em Rita Lee, que ao longo das décadas subsequentes não deixou muitas palavras simpáticas ao grupo, o que a levou a escrever na sua autobiografia: “Alguns podem achar que deprecio a fatia que cabe aos Mutantes dentro da cena musical daquela época […] Eu aqui apenas conto o lado da minha moeda com o distanciamento inverso ao dos críticos-viúvos que teimam interpretar a história como se soubessem mais do que quem, como eu, fez parte dela”.
Não é mentira que muitos sentiram e continuam a sentir a falta desses Mutantes bizarros e alienígenas, cujo tempo já passou e cuja música nele resiste. Mas não foi n'Os Mutantes que Rita Lee teve os seus maiores sucessos, e sim quando passou a fazer o que realmente queria, em vez de se preocupar com as pseudo-democracias inerentes a qualquer conjunto musical.
O seu primeiro assalto ao pináculo do sucesso deu-se em 1973 quando, ao lado da amiga Lúcia Turnbull, formou primeiro a dupla folk Cilibrinas do Éden e, pouco depois, os Tutti Frutti, que a acompanharam até 1978. Se o primeiro disco acaba por ser rejeitado pela editora Philips por ser “demasiado alternativo”, obrigando os Tutti Frutti a voltar ao estúdio, o segundo foi um marco na história do rock brasileiro: “Fruto Proibido”, a obra que deu a uma geração temas como 'Esse Tal de Roque Enrow', escrito a meias com Paulo Coelho, e o grande hino de Rita, 'Ovelha Negra', que passou a ser também o hino de todos os seres humanos desprezados pelas suas respetivas famílias.
Passou vários dias na cadeia, onde acabou a receber a visita de alguém que, até então, achava ser sua inimiga: Elis Regina, rainha-mor da MPB, intocável pela ditadura
Àquela que é tida por quase todos como a sua obra-prima seguiu-se “Entradas E Bandeiras”, de 1976, o ano em que conhece o músico Roberto de Carvalho, que até ao fim dos seus dias foi o seu companheiro, amoroso e musical. Grávida do seu primeiro filho com Roberto, foi presa pela ditadura por posse e uso de canábis, alegadamente para “servir de exemplo à juventude”. Rita negou ter consumido drogas enquanto estava grávida, esclareceu que as que foram encontradas em sua casa não eram suas, mas isso não demoveu as autoridades. Passou vários dias na cadeia, onde acabou a receber a visita de alguém que, até então, achava ser sua inimiga: Elis Regina, rainha-mor da MPB, intocável pela ditadura. Elis, que chegou a liderar uma marcha contra a guitarra elétrica, foi assegurar-se de que Rita Lee estava a ser bem tratada e impedir a artista de ter um aborto espontâneo. “Ainda mandou vir comidinha de um restaurante porque me achou magrela demais para uma grávida”, contou Rita.
A artista acabaria condenada a um ano de prisão domiciliária, necessitando de uma autorização especial por parte de um juiz para poder andar em digressão. Em 1978, depois de ter dado à luz Beto Lee, que também seguiu uma carreira musical, lançou então “Babilônia”, álbum onde começa a virar-se para a pop, deixando para trás esse tal de rock n' roll.
Com a ajuda de Roberto, editou a primeira de muitas colaborações musicais em 1979, o álbum que hoje é conhecido pelo seu tema de maior sucesso: 'Mania De Você'. Seguiu-se “Rita Lee” em 1980, “casa” para 'Lança Perfume', êxito que, diz-se, não deixou indiferente nem o agora Rei Carlos III – que só podemos imaginar a cantar, num fortíssimo sotaque inglês, me deixa de quatro no ato.
Esse verso foi censurado, claro, bem como Mulher é bicho esquisito / Todo o mês sangra, de 'Cor De Rosa Choque', do álbum seguinte. Entre sucessos discográficos e concertos para mais tarde recordar, entre eles a sua ida à primeira edição do Rock In Rio, em 1985, os anos 80 de Rita Lee ficam também marcados por uma estadia de duas semanas numa clínica de reabilitação, pela morte dos pais e pelo regresso da democracia ao Brasil, para o qual contribuiu através da sua paixão pelo Corinthians e pela sua ligação a jogadores como Sócrates, Wladimir ou Casagrande, líderes da Democracia Corinthiana, ao lado dos quais esteve em palco, em 1982.
O início dos anos 90 ficou marcado pela digressão “Bossa N' Roll”, onde interpretou, em formato acústico, canções suas e de artistas que a marcaram. O álbum é hoje considerado o precursor de todos os discos em formato acústico lançados desde então no Brasil: “Ser pioneiro tem um preço, mas também faz escola”, atirou na sua autobiografia. Ganhou um programa na MTV, o “Tvleezão”, abriu para os Rolling Stones e colocou 'Vítima' na banda-sonora da telenovela “A Próxima Vítima”, sucesso tanto no Brasil como em Portugal. E foi lançando discos atrás de discos, andando por palcos atrás de palcos, até anunciar o fim da sua carreira ao vivo, em 2012, devido à sua fragilidade física. O seu derradeiro álbum, “Reza”, saiu nesse mesmo ano, com o tema-título a conseguir a proeza de “destronar” 'Ai, Se Eu Te Pego' do primeiro lugar da tabela do iTunes Brasil.
Nessa altura, ainda não era o cancro no pulmão, que a acabaria por matar, o que lhe destruía a saúde. Esse diagnóstico só apareceu em maio de 2021, obrigando Rita Lee a recorrer a radioterapia. Um ano depois, foi noticiado que o tumor (que, num ato de genialidade diabólica, Rita baptizou de “Jair”) encontrado já não se encontrava presente no seu organismo, com os fãs a suspirar de alívio. Porém, o seu estado de saúde voltou a agravar-se em fevereiro deste ano, levando à sua hospitalização em São Paulo, a sua cidade de sempre. Acabou por melhorar e receber alta, mas não resistiu: faleceu na segunda-feira, a 8 de maio, no seu apartamento, rodeada pela família. E a poucos dias de lançar um novo livro: “Outra Biografia”, que tem data de edição marcada para o dia 22 de maio e que, estima-se, vá agora esgotar rapidamente.
“posso imaginar as palavras de carinho de quem me detesta. Algumas rádios tocarão minhas músicas sem cobrar jabá, colegas dirão que farei falta no mundo da música, quem sabe até deem meu nome para uma rua sem saída
A maior marca de sucesso de um artista passa pela forma como é recebida a notícia da sua morte. Nisso, Rita Lee foi algo profética. Na autobiografia, chegou a brincar com a forma como seria lembrada: “posso imaginar as palavras de carinho de quem me detesta. Algumas rádios tocarão minhas músicas sem cobrar jabá, colegas dirão que farei falta no mundo da música, quem sabe até deem meu nome para uma rua sem saída […] Enquanto isso, estarei eu de alma presente no céu tocando minha autoharp e cantando para Deus: 'Thank you Lord, finally sedated'”. O epitáfio que selecionou é também a melhor descrição possível para Rita Lee: “nunca foi bom exemplo, mas era gente boa”.
A vida porra-louca que levou pode não ser exemplo, mas não há como negar que Rita foi gente boa, na família, na música, em público. Talvez até por causa dessa mesma vida. Rita Lee era símbolo de transgressão, o género de personagens públicas que agem como o estandarte que, por pudor ou outra coisa, nunca ergueremos contra o que mais criticamos na sociedade. “Uma artista à frente do seu tempo”, afirmou o presidente Lula da Silva, antes de decretar três dias de luto nacional. “Cabrinha, caprichosa capricorniana, amiga”, escreveu Gilberto Gil. “O coração de Rita deixou de bater. Mas o do mundo não para de bater por ela”, apontou Caetano Veloso.
Na unicidade de Rita Lee tínhamos o máximo da mulher que não quer acabar com os homens ou acabar como os homens, mas sim ser ela própria – a maior qualidade que se pode ter num mundo onde todos querem ser os outros. “Terrivelmente feminina”, como disse Jorge Ben, como salienta Leonardo Lichote na “Piauí”: “ela desenhou um modo próprio de ser mulher, que tinha em si uma liberdade desafiadora (frente à ditadura, ao machismo, ao mercado, à imprensa) e uma contundência sem pose, reta no recado e poeticamente sinuosa na forma de lançá-lo”.
'Ovelha Negra', para muitos, pastora para muitos outros, Rita Lee foi passear, ser gauche num outro lugar. As canções ficam por cá, o amor também.
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