Há três anos que o “Baile Delas” sobe ao palco só com elas, como o nome indica. Ao todo são 20 mulheres de idades e profissões muito distintas, que durante quatro dias se transformam em intérpretes musicais e atrizes.

Em jeito de brincadeira decidiram separar-se do grupo que integravam há vários anos, deixando os homens para trás, e hoje, dizem, os ensaios até correm melhor.

“Quando é a altura do Carnaval, eles ficam muito impacientes, porque não querem esperar muito tempo. As mulheres têm sempre mais um pormenor ou outro”, conta à Lusa Graça Borges.

Durante quatro dias, entre o sábado e a terça-feira de Entrudo, centenas de atores, cantores e músicos amadores percorrem mais de 30 palcos à volta da ilha Terceira, atuando de forma gratuita, pela madrugada dentro, com danças, bailinhos e comédias (espetáculos de teatro popular, em rima, muitas vezes com crítica social, intercalados com coreografias e música).

Este ano, estima-se que percorram a ilha 82 danças, bailinhos e comédias de Carnaval, incluindo 17 de grupos de idosos que atuaram nos fins de semana que antecederam o Entrudo.

De acordo com uma recolha feita pelo fotógrafo João Costa, as manifestações deverão envolver quase 2.000 participantes, 1.066 homens e 874 mulheres.

No entanto, há não muitos anos, a participação nestas manifestações era restrita aos homens, que representavam até as personagens femininas, mesmo quando o teatro era de cariz dramático.

Antes ficava atrás do pano “a segurar o casaco” do marido. Há 12 anos ganhou voz

Graça Borges sempre ouviu falar do avô como um dos pioneiros das danças no formato que é hoje conhecido. “Eu fui crescendo e vivendo sempre com o Carnaval, mas nunca pensando que algum dia iria participar”, confessa.

Subiu várias vezes ao palco, mas ficou sempre atrás do pano “a segurar o casaco” do marido, até que há 12 anos saiu da sombra e ganhou voz pela primeira vez.

“Uma coisa é nós gostarmos e vermos, outra coisa é estarmos no palco a atuar. São duas coisas totalmente diferentes. É um bichinho. Quando se começa é difícil de parar”, admite.

Graça Borges defende que o Carnaval deu “uma volta” com a entrada das mulheres, que permitiu descobrir “grandes talentos que estavam escondidos”, porque a maior parte das pessoas que participam nestas manifestações só pisa um palco pelo Carnaval.

Este ano, começaram ensaiar em dezembro, para se poderem apresentar junto das comunidades emigrantes nos Estados Unidos, semanas antes do Carnaval.

Durante dois meses, Graça saiu muitas vezes do salão de cabeleireira de que é proprietária para o ensaio, sem jantar, depois de ter passado 12 horas de pé a trabalhar.

“Saía dos ensaios à meia-noite para me levantar no outro dia às 06:30/07:00. Foi um bocado difícil, mas é o bichinho”, desabafa.

A atriz amadora e coordenadora do bailinho de Carnaval "Baile Delas”, Graça Borges, durante as danças e bailinhos de Carnaval da ilha Terceira, nos Açores, 22 de fevereiro de 2020. créditos: ANTÓNIO ARAÚJO/LUSA

“A primeira vez que saímos foi a falar mal dos homens e as pessoas acharam muita graça”

É na garagem de Catarina Simões que o grupo ensaia quando não há espaço vago no quartel dos bombeiros da Praia da Vitória ou numa sociedade recreativa por perto.

Catarina cresceu rodeada de danças de Carnaval e peças de teatro, onde os pais participavam, por isso, foi com naturalidade que integrou o primeiro bailinho aos 16 anos.

“O Carnaval é um teatro popular único no mundo, que reúne jovens, adultos, idosos, que se divertem e fazem divertir os outros em quatro noites. Eram três [noites] e teve de se alargar para quatro, porque não dava, tantos eram os bailinhos”, salienta.

No "Baile Delas", os homens não entram, mas Catarina garante que as mulheres não lhes ficam atrás no jeito para fazer rir, mesmo que às vezes sejam eles os visados, porque afinal é Carnaval e ninguém leva a mal.

“A primeira vez que saímos foi a falar mal dos homens e as pessoas acharam muita graça”, recorda.

Renata Almeida passou a infância a assistir a danças de Carnaval, mas o sonho de passar para o outro lado da festa levou-a a entrar para o conservatório para aprender a tocar violão.

“Lembro-me de estar a ver uma dança, adormecer, acordar e bater palmas. Aquilo era até ao último”, recorda, salientando que o Carnaval da Terceira é “único” e “multifacetado”.

Diz que a ilha é “rica em artistas”, que se dão a conhecer pelo Carnaval, e que hoje não é difícil encontrar jovens que saibam tocar instrumentos.

“O nosso grupo é muito fácil de trabalhar. A maior parte de nós teve aulas de música ou no conservatório ou na filarmónica, o que facilita imenso”, frisa.

A paixão pelo Carnaval é tão grande que Fabiana Mendonça quase trocou os exames na universidade pelo bailinho, no último ano da licenciatura.

“Acho que nunca estudei tanto na minha vida, porque eu queria mesmo vir para o Carnaval. Matei-me a estudar, passei no exame e no dia a seguir apanhei o avião para vir para cá”, conta, acrescentando que chegou à ilha a apenas uma semana da primeira atuação.

No ano passado, trocou o saxofone alto pelo acordeão, que aprendeu a tocar de propósito, porque não encontravam um elemento feminino que o fizesse.

“Pedi um acordeão emprestado. Fui para o ‘youtube’, comecei a ver editoriais. Fizemos o nosso primeiro ensaio e eu já sabia os acordes base, mas foi pelo computador, não tive uma aula”, adianta.

Fabiana já sublinhou que para o ano quer voltar ao saxofone, mas, independentemente dos instrumentos utilizados ou do tema escolhido, o "Baile Delas" promete regressar aos palcos da ilha Terceira.

Mulheres entraram tarde por razões culturais, sociais e políticas

As mulheres começaram a participar “tardiamente” nas danças e nos bailinhos de Carnaval da ilha Terceira, nos Açores, mas a sua presença veio “abrilhantar” estas manifestações tradicionais, defende a investigadora Assunção Melo.

“A entrada das mulheres dá-se, de facto, tardiamente. Há registos de uma dança no Ramo Grande, na década de 1940-50, em que as mulheres começam a entrar, e a partir de então tem sido um fenómeno crescente”, adiantou, em declarações à Lusa.

Na ilha Terceira, o Carnaval é celebrado com danças, bailinhos e comédias, espetáculos de teatro popular, com caráter cómico ou trágico, com textos em rima, muitas vezes com crítica social, intercalados com coreografias e música.

Ainda que existam alguns registos de danças de espada (com tema dramático) com a inclusão de mulheres no século XIX, as manifestações estiveram restritas aos homens, praticamente até aos anos 50 do século XX.

"Mesmo quando se exigia uma presença feminina no elenco, esta era interpretada por um homem travestido"

“Quer as danças, quer os bailinhos eram exclusivamente compostos por homens, mesmo quando se exigia uma presença feminina no elenco, esta era interpretada por um homem travestido. O caso ganhava graça no caso dos bailinhos, no caso das danças de espada, nem tanto”, lê-se no livro “Carnaval da Ilha Terceira : emoção e catarse”, de que Assunção Melo é co-autora.

A inclusão da mulher nas danças e nos bailinhos de Carnaval “tardia e tímida” é explicada por questões “culturais, sociais e políticas”.

“As mulheres não entravam como não entravam em muitas outras coisas, em termos da participação ativa na sociedade”, apontou a investigadora, formada em história de arte e natural da ilha Terceira.

Assunção Melo lembra que a utilização de homens vestidos de mulheres nas danças de pandeiro (cómicas), nos bailinhos e nas comédias ainda perdura até aos dias de hoje, mas a participação das mulheres já é bem aceite e veio “abrilhantar a festa e elevar a fasquia”.

“O aparecimento em força de mulheres nos bailinhos e danças de Carnaval não poderá ser descurado. Este fenómeno está, normalmente, associado a um incremento qualitativo da manifestação, sobretudo em termos de espetáculo visual”, escreve Assunção Melo no livro publicado em 2018.

Segundo a investigadora, foram as mulheres que introduziram no Carnaval um maior cuidado com a imagem dos grupos, tanto na escolha da indumentária e dos adereços, como na “inclusão de coreografias mais ousadas, mais bem conseguidas, com um nível de execução superior”.

O traje histórico resumia-se a uma “simples calça preta ou branca”, com “camisa branca enfeitada com faixas coloridas ou galões brilhantes e chapéus de mitra”.

“A elas se devem a abordagem de temáticas relacionadas com o seu quotidiano, com as suas preocupações. Penteados elaborados, maquilhagem e vestidos criativos têm dado um ‘upgrade’ à festa, sendo esta uma questão consensual, para já não falar das lindas vozes e primorosa execução instrumental”, acrescenta o livro.

Estima-se que a primeira dança de Carnaval com a entrada de mulheres no século XX tenha ocorrido “entre 1940 e 1950”, na vila das Lajes, na Praia da Vitória.

“Eram mulheres muito jovens, no transitório entre crianças e adolescentes. As mulheres estavam confinadas a outras tarefas do lar”, salientou Assunção Melo.

Só nos anos de 1990 “passou a ser comum a presença de mulheres com o papel de mestras ou de dançarinas”, tanto em danças de espada como em danças de pandeiro ou bailinhos.

“Foi uma coisa muito gradual. Eu lembro-me de ser criança e de facto as mulheres apareciam mais nas danças de espada”, afirmou a investigadora.

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