Há dois números a reter hoje, ambos diametralmente opostos no que toca aos nossos destinos nesta era de pandemia: se, por um lado, esta foi a data em que oficialmente se registaram mais de mil milhões de vacinas administradas em todo o mundo, por outro, foi também o dia em que se bateu o número de casos diários de infeção: 893 mil.

O que explica esta dualidade? Excluindo casos raros como o de Israel — onde seis em cada 10 pessoas já terão sido integralmente inoculadas —, a maioria da população mundial não só ainda não foi vacinada como não está previsto que tal vá acontecer tão cedo.

E se esse é um problema com que se deparam os ditos países ricos, nos restantes estados é ainda pior. A OMS denunciava no início do mês que 87% das vacinas foram desviadas para um conjunto seleto de países com dinheiro para pagá-las, enquanto o resto do globo desespera pela sua vez.

Mas, perante um esforço de vacinação acelerado, seria de prever que, pelo menos, não fosse possível atingir um novo recorde mundial de casos. É aqui que entra a Índia.

Depois do impacto inicial na China, foram vários os países a assumir a triste honra de lhes ser concedido o título de “pior do mundo” a dada altura no que diz respeito à sua situação pandémica. Na Europa, a Itália e a Espanha foram apanhadas de surpresa, o Reino Unido viu-se a braços perante a sua estratégia falhada de “imunidade de grupo” adotada numa fase inicial, a França também foi duramente atacada e será difícil esquecer a situação que Portugal viveu no início deste ano.

Fora do Velho Continente, os EUA de Donald Trump foram tão devastados que se crê que foi a abordagem à pandemia do ex-presidente uma das mais fortes razões para hipotecar a sua reeleição; Joe Biden, apesar da mudança de estratégia, ainda não foi capaz de reverter a subida de casos, apesar de abrandá-la.

Mais a sul, o México e, principalmente, o Brasil são outros dois exemplos de países dotados de enormes massas humanas e sem meios para conter a pandemia, que se espalhou descontroladamente pelos seus territórios. No caso do Brasil, porém, é sabida a postura de desvalorização da covid-19 por parte de Jair Bolsonaro, pressionando população e governantes a ignorar o seu perigo.

Na Índia, todavia, atingiu-se um novo patamar. O país asiático está consecutivamente a bater recordes de novos casos diários e hoje atingiu também o maior número de mortes relacionadas com a doença num só dia: 346.786 casos e 2.624 mortes. Só com os números de hoje, a Índia é responsável por perto de um terço dos tais 893 mil casos acima mencionados. 

A falta de infraestruturas para combater a pandemia, uma nova variante do vírus e os eventos de massas que se deram nas últimas semanas — como o feriado religioso hindu ‘Khumb Mela’, que reuniu milhões de peregrinos — criaram um cocktail explosivo no país. O país asiático até é o terceiro a ter administrado mais vacinas no mundo — 138,4 milhões — mas esse número empalidece rapidamente quando temos em conta a sua população de quase 1.4 mil milhões de habitantes.

O resultado foi previsivelmente catastrófico. As filas de doentes com a covid-19 e os seus familiares preocupados estendem-se em frente aos hospitais das principais cidades do país, tendo estes falta de oxigénio para tratar os poucos pacientes que conseguem albergar. Em resposta, e sob duras críticas, o Governo estatal criou comboios especiais para transportar reservas de oxigénio para as cidades mais afetadas, enquanto pediu aos industriais para acelerarem a produção de oxigénio e medicamentos que estão em falta.

O mais trágico é que os valores acima mencionados são uma mera estimativa, acreditando-se que o número verdadeiro de casos e mortes seja muito mais elevado. Uma reportagem do The New York Times pinta um cenário dantesco: há milhões de pessoas a recusar-se a sair de suas casas por medo dos vírus e muitas não reportam casos e os crematórios ao ar livre não têm parado. São registadas mortes de pessoas à entradas dos hospitais sem conseguir respirar, mas lá dentro a situação não é muito melhor: um hospital de Nova Déli teve 20 doentes nos cuidados intensivos a morrer por falta de oxigénio.

Além de todo o drama humano, há uma nova questão que se impõe perante esta situação: se o Brasil, pela forma como a pandemia ainda grassa descontroladamente, se arrisca a tornar num laboratório de variantes para o resto do mundo, a Índia pode ter igual destino, gerando-se formas mais resistentes do vírus que podem colocar o esforço de vacinação em causa. Além disso, há outras consequências imprevisíveis a ter em conta: a maioria das vacinas destinadas ao continente africano são produzidas na Índia e esta vaga pode atrasar ainda mais aquele que tem sido um esforço de vacinação demorado.

Por estas razões e por mais vacinas que estejam a ser administradas, ninguém pode respirar de alívio enquanto na Índia se morre na rua sem conseguir respirar.