“É preciso que o Governo empregue o seu esforço, [que faça] tudo para prevenir que isto volte a acontecer” e não bastam reforços por “um dia, nem dois meses, tem que levar até anos” de presença de várias autoridades e instituições, refere Amade Suleimane Juma.
Mocímboa ficou sitiada, sob tiroteio durante dois dias, 05 e 06 de outubro: dois polícias morreram, outros quatro agentes da autoridade terão perdido a vida numa emboscada, na semana seguinte, enquanto mais de 20 agressores de inspiração radical islâmica, parte dos quais da vila, já são dados como mortos.
Todo um cenário nunca visto fora dos tempos de guerra.
O quartel das forças de defesa e segurança da vila tem que ter gente, exemplifica, homens e recursos que tranquilizem a população que diz ainda haver malfeitores à solta, nas matas dos arredores.
Até hoje continua por se saber tudo o que o mato esconde, numa terra rica em rubis e gás natural, mas o reforço de meios tornou-se visível com soldados e viaturas nas semanas seguintes ao primeiro ataque e o Governo tem prometido mantê-lo — tanto assim é que o Presidente da República pediu às novas chefias militares do país, empossadas na segunda-feira, que saibam prevenir ataques à soberania.
O que é este grupo armado? Dezenas de homens que disseram querer atacar a polícia, não os residentes, numa ameaça que já estava a crescer, no seio da população, desde há, pelo menos dois anos, disseram várias fontes à Lusa.
“Eu era o primeiro a ser morto”, acredita Amade: bateram-lhe à porta antes de começar o ataque, não por ser polícia, mas porque “desmentia-os, falava na rádio [comunitária] e aconselhava todo o povo” para que “não aceitasse isso”, a doutrina islâmica radical que os membros do grupo divulgavam numa mesquita do bairro de Nanduadue.
A crença de Amade de que tinha um alvo às costas reflete as crispações locais.
As armas só saíram à rua na madrugada de 05 de outubro, mas na vila maioritariamente muçulmana já havia divergências que tinham a ver com a pretensão de o grupo querer impor a sua ‘sharia’, lei islâmica, em que ninguém segue a autoridade do Estado, nem nas escolas, nem nos tribunais — até a estátua de Samora Machel e a bandeira moçambicana eram desprezados.
Intrometiam-se na vida social, “confiscavam as filhas [de famílias] e depois faziam casamentos sem permissão dos seus pais”, conta Amade.
As pessoas já tinham medo de passar perto da mesquita, mas ninguém os expulsava, “porque a base dos protagonistas são nativos, são nossos filhos, nossos irmãos, parentes, são nossos vizinhos e usaram a religião muçulmana como cobertura. Automaticamente, a nossa força foi um pouco menor”, responde Tuaha Hassane, outro dirigente islâmico da vila.
Felisberto Morais lembra-se de o grupo Al- Shabaab de Mocímboa — como se autointitula, mas sem ligação à organização terrorista da Somália — passar a ser tema das reuniões regulares de muçulmanos nos últimos dois anos.
Os líderes alertavam “para uma seita”, como “uma cobra que estava a nascer. Já cresceu e agora está a morder-nos”, acrescenta.
“São jovens sem dinâmica e alguém tentou incentivá-los. Creio que isto é muito simples: quem tem emprego não vai aliar-se a esta situação”, refere.
A insurreição armada terá na base uma massa de jovens locais radicalizados por supostos mentores islâmicos estrangeiros que tiraram partido da porosidade das fronteiras, por terra e por mar.
A praia de Mocímboa é o local de chegada e partida de dezenas de barcos à vela, de onde entra e sai qualquer pessoa ou mercadoria, sem controlo, no meio da confusão do mercado do peixe.
Tuhaha Hassane recorda de memória o “estranho” caso de um jovem do bairro de Pamunda que viajou para a Somália, foi dado como morto, reapareceu na vila e voltou a sair, sem que se tivesse averiguado “o que andou a fazer”.
Noutro caso, mentores islâmicos tanzanianos dirigiram reuniões em mesquitas e desapareceram quando se percebeu que estavam em situação ilegal no país.
A presença de tutores que instigam à insurgência é relatada em várias mesquitas de Cabo Delgado e Rodrigo Puruque, administrador do distrito de Mocímboa da Praia, associa-a à passagem pela região de refugiados de países a norte, como a Somália e Etiópia, entre 2010 e 2011, alguns dos quais terão ficado.
Puruque pediu a toda a população para deixar de enviar os filhos para escolas corânicas no estrangeiro, por haver relatos de jovens que regressam com uma visão radical do Islão.
Pediu ainda o fim da burca integral, ao mesmo tempo que foi lançado um novo recenseamento da população — que deverá estar concluído até final do ano –, para se perceberem melhor vários detalhes, tais como, quem vai à escola oficial, esclareceu Fernando Neves, presidente do município.
“Nós não estamos a proibir que o filho faça outras atividades”, como frequentar “a madraça [de ensino do Corão]: pode fazer, mas que tenha também espaço para ir aprender a ciência”, refere o autarca.
“Porque a ciência faz com que possamos crescer e nos desenvolver” e será sempre mais difícil alguém “coagir” uma mente esclarecida, conclui.
Amade Juma pensa que “muitas crianças e muitos jovens foram apanhados por causa da sua ignorância” e Saide Bacar, dirigente islâmico em Montepuez, diz que há cabecilhas que “estão a aproveitar-se” daqueles que “não estudaram, são pobres e esfomeados”.
A última conferência de imprensa da Polícia da República de Moçambique (PRM) sobre o assunto foi no dia 10 — Inácio Dina, porta-voz da PRM limitou-se a referir na última semana à Lusa que não tem havido novos ataques, contrariando um manancial de relatos que circulam nas redes sociais.
Se há referências a confrontos, acrescentou, devem estar relacionados com as perseguições cirúrgicas a alguns dos agressores, com base nas denúncias da população — muita da qual vive em aldeias no meio do mato.
As detenções não param, anunciam as autoridades, e o número de pessoas interrogadas pela Procuradoria de Cabo Delgado já ascende a 107, dos quais 50 com prisão confirmada, segundo fonte citada pelos media estatais.
Mocímboa da Praia está à beira do Índico, numa região de tradição islâmica e de grandes riquezas naturais, umas já a serem exploradas, como é o caso de um dos maiores depósitos de rubis do mundo — extraídos em minas, mas também através de garimpo ilegal — e das reservas de gás natural que vão dar origem a megaprojetos de investimento dentro de cinco anos, o primeiro liderado pela petrolífera italiana Eni, outro pela norte-americana Anadarko.
Durante os confrontos de outubro, por prevenção, houve pessoal ligado aos projetos de recursos naturais retirados da zona, por helicóptero, ao mesmo que empresas de consultoria e análise de risco que acompanham a movimentação de grandes capitais especulam sobre o que se passa.
O tempo o dirá se ainda algo se esconde nas matas de Cabo Delgado e se em Mocímboa da Praia vai ser possível voltar a dormir sempre em paz.
[Reportagem de Luís Fonseca/Lusa]
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