Ministro da Educação e Ciência entre 2011 e 2015, Nuno Crato alargou a escolaridade obrigatória até ao 12.º ano, introduziu o Inglês como disciplina obrigatória do 3.º ao 9.º ano e reduziu para metade o abandono escolar.

Em 2015, Portugal obtinha os melhores resultados internacionais de sempre e no TIMSS, que classifica o desempenho dos alunos em conhecimento e competência nos domínios de Matemática e Ciências, ficou à frente de países habitualmente bem colocados, como a Finlândia, em Matemática do 4.º ano.

Professor há mais de 40 anos, investigador nos Estados Unidos da América, onde trabalhou mais de uma década, e no Centro de Investigação Comunitário JRC, em Itália, é catedrático de Matemática e Estatística no ISEG e dirige a Iniciativa Educação, em conjunto com Inês Soares dos Santos Canas e Sara Miranda, uma herança de Alexandre Soares dos Santos e mulher.

Não se queria reformar porque acredita que enquanto tiver saúde uma pessoa deve trabalhar. Com 73 anos acabados de fazer, continua a ver bem sem óculos e corre perto de quatro quilómetros na praia "uma ou duas vezes por semana", "sem gosto nenhum", só por sentido de dever: "Apetecer nunca apetece, ir para o ginásio ainda menos".

Confessa que não consegue ler Kant a não ser para adormecer e prefere o mais prosaico Dr. Seuss ("The Cat in the Hat"), que leu muito nos EUA com os dois filhos. Só ainda não tem resposta para a pergunta filosófica "How did it get so late so soon?" [Como é que ficou tão tarde tão depressa?]

O livro "Aprender", recentemente publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, foi o pretexto para uma conversa sobre o estado da Educação em Portugal. Mas não ficou por aqui.

"Podia mudar a escola portuguesa", diz atrás de si o cartaz do livro "O 'eduquês' em discurso direto", que escreveu em 2006. Mudou?

[Ri] Isso é o anúncio do editor. Estou convencido de que algumas coisas que ali são discutidas podiam mudar a escola portuguesa e ajudaram a mudar um pouco. Naquele livro já se discutia a necessidade de ter um currículo estruturado, de ter avaliação, de ter apoio aos alunos com mais problemas. Enfim, o essencial daquilo que em políticas públicas pode fazer a educação melhorar, avançar.

Foi ministro da Educação depois disso, chegou ao governo cheio de ideias. Descobriu que havia uma pedra na engrenagem?

Há muitas pedras na engrenagem. Mas algumas coisas podem ser mudadas, não estou de acordo com a ideia de que tudo se desculpa a um ministro, seja de que pasta for, por causa das dificuldades ou da estrutura do ministério.

Claro que a estrutura do ministério é muito pesada, claro que há uma série de forças que apontam num sentido que pode não ser aquele que o ministro, e a política do governo que integra, quer seguir, mas a política e o ministro e o governo têm um papel muito importante, não se podem desculpar por essas dificuldades.

Uma coisa que fizemos, por exemplo, foi instituir provas de aferição com impacto no progresso dos alunos no 4.º e no 6.º ano de escolaridade. Muita gente no ministério não estava de acordo, mas fez-se. Porque o ministro e o governo são representantes do país, bem ou mal foram eleitos — indiretamente, claro —, são responsáveis por uma determinada política. O ministério é feito de funcionários públicos, muitos com muito boa vontade, outros talvez com menos, mas são todos funcionários do Estado.

"Um pacto na Educação é quase impossível, porque muitos partidos utilizam a Educação como arma de combate"

O governo caiu. A queda do governo tem consequências para a pasta da Educação?

Tem sempre, sem dúvida — e agora tudo depende do governo que vier a seguir. Se o governo que vier a seguir for o mesmo ou parecido com este, haverá alguma continuidade na política, mas há sempre um impacto, as pessoas ficam na dúvida sobre o que irá acontecer.

Em Portugal, é muito difundida esta ideia do pacto na Educação, de continuidade nas políticas. Há algum mérito nesta ideia, mas é preciso ter um pouco de cuidado, porque o que é importante é que sejam prosseguidas políticas positivas, não negativas. Se houver uma continuidade de políticas positivas, acho muito bem, agora, as coisas que estão mal deviam ser alteradas.

Créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Fiquei sem perceber se defende ou não um pacto na área da Educação.

Depende do pacto. Penso que é quase impossível, porque muitos partidos utilizam a Educação como arma de combate, dizem uma coisa num dia e no dia seguinte dizem outra. O exemplo mais absurdo: a prova de avaliação de conhecimentos e capacidades dos professores foi instituída pelo governo do Partido Socialista, pela ministra Maria João Rodrigues e depois reafirmada pela ministra Isabel Alçada.

Quando cheguei ao governo e tentei pô-la em prática, o Partido Socialista virou-se contra. Porquê? Porque o que estava na sua cabeça era uma luta política. É muito difícil estabelecer pactos quando os partidos não colocam o interesse da Educação acima de tudo. Mas enfim, se alguém conseguir estabelecer um bom pacto de regime a favor da educação dos jovens, será óptimo. Mas duvido que seja possível.

"O ministério são funcionários públicos, muitos com muito boa vontade, outros talvez com menos, mas são todos funcionários do Estado"

Muito do que fez como ministro foi desfeito no governo seguinte, exatamente porque PSD e PS têm visões e políticas diferentes.

Infelizmente, isso aconteceu. E os resultados foram muito claros, temos um exemplo muito claro do que são políticas acertadas e do que são políticas erróneas. Tivemos, desde 2002 até 2015, vários ministros, vários partidos, vários governos, mas políticas que caminhavam mais ou menos na mesma direção.

A mesma direção era: mais avaliação e um currículo mais bem estruturado. Assim, chegámos a 2015 e tivemos os nossos melhores resultados internacionais de sempre. A partir de 2016/17 até 2023 — vamos ver o que se vai passar agora —, tivemos a política contrária, que não tínhamos tido ainda em Portugal de maneira tão clara.

A política contrária foi acabar com quase toda a avaliação, flexibilizar o currículo num sentido negativo, ou seja, permitir que se subtraia, e substituir os apoios que existiam aos jovens, que eram apoios cognitivos, por apoios socioemocionais.

"Desde 2016 que os inquéritos internacionais têm vindo a mostrar que Portugal está sempre a baixar, sempre pior"

A que resultados conduziu essa política do PS?

Essa política, ao longo destes anos, veio a obter resultados que só pudemos avaliar através das provas internacionais. E foram resultados muito maus, muito maus consequentemente, não foi uma vez que se baixou; desde 2016 que os inquéritos internacionais têm vindo a mostrar que Portugal está sempre a baixar, sempre pior.

De tal maneira que hoje estamos praticamente dois a três anos atrás do que estávamos em termos educativos. Ou seja, simplificando muito, os nossos jovens de 15 anos sabem tanto hoje como os jovens de 13 anos de há sete ou oito anos. Isto é, de facto, muito preocupante.  

O impacto disto não se pôde medir logo, porque ao mesmo tempo foram abolidas as ferramentas, as provas, para verificar que não se estava a funcionar bem. Julgo que foram tempos muito negativos.

Escreveu agora "Aprender", editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. É diferente do livro anterior?

É muito diferente. Tento adoptar uma postura mais positiva — claro que faço um balanço do que se passou, mas tento dizer o que se pode fazer para melhorar.

E o que se pode fazer?

O que se pode fazer em termos de políticas públicas, essencialmente, é ter um currículo bem organizado, bem definido, bem estruturado, progressivo, de forma que as coisas surjam umas sobre as outras de maneira lógica. Este currículo deve ser baseado em conhecimentos e não em competências.

Por outro lado, é preciso ter avaliação fiável, frequente, rigorosa, válida e alinhada com esse currículo — de nada serve ter um currículo se a avaliação for noutra direção.

E uma terceira questão, um dilema que muitas vezes se coloca, mas que tem uma solução fácil: a partir de 2010, mais ou menos, começou a tornar-se claro numa série de países que os alunos com mais dificuldades têm de ter apoios especiais para poderem crescer para o patamar desejado.

"Em 2015, quando tivemos os melhores resultados de sempre, tínhamos no sistema cerca de 120 mil professores. Em 2022, quando tivemos os maus resultados, tínhamos cerca de 145 mil professores (e menos alunos)"

As escolas queixam-se da falta de professores. Temos gente suficiente para esses apoios extra?

Os problemas agravaram-se muito nos últimos anos, agora temos uma coisa que não existia até há dois anos, uma falta séria de professores. Mas tudo depende da organização. Para lhe dar uma ideia, em 2015, quando tivemos os melhores resultados de sempre, tínhamos no sistema cerca de 120 mil professores. Em 2022, quando tivemos os maus resultados, tínhamos cerca de 145 mil professores (e menos alunos).

Ou seja, o número de professores aumentou de 2015 para 2022, o número de alunos baixou, mas os resultados foram piores. Porquê? Currículo e avaliação, sempre as mesmas duas coisas.

Hoje faltam professores, sobretudo em áreas específicas, como a Matemática ou a Física. Qual a solução?

É verdade, e isso é um problema grave — eu não queria estar na pele do ministro. Mas andámos cegos relativamente a este problema. Primeiro, este problema está detetado pelo menos desde 2013, há vários relatórios e é fácil perceber que as pessoas envelhecem todos os anos. Havia uma maioria pelos 50/60 anos que, passados dez anos, iria estar pelos 60/70 anos, tinha de se reformar.

Créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Fez alguma coisa a este nível?

Desse ponto de vista, não. O que me preocupou sobretudo na altura, e fiz um decreto-lei, foi garantir que os professores que viriam seriam pelo menos tão qualificados como os que estavam, se possível, melhores. Estamos a falar de 2013, o problema agravou-se e disparou dez anos depois.

Mas, como disse, sabíamos que ia acontecer, bastava fazer as contas.

E essa era uma das razões para tentar dignificar a profissão de professor, fazendo com que os professores ficassem mais bem preparados, uma preparação mais rigorosa. Tentámos fazer isso através de várias medidas, uma delas, a mais reconhecida, foi a célebre prova de avaliação de conhecimentos e capacidades, que também foi abolida em 2016. Era uma prova para tentar elevar os requisitos de entrada na profissão.

"Não sou a favor do chumbo, ninguém é a favor do chumbo. Mas vale a pena ter a retenção como último recurso"

Os professores não gostam de ser avaliados?

Ninguém gosta de ser avaliado, mas as pessoas não são só uma coisa, são várias coisas.

O que sei dizer é que se o programa nacional não ajuda a puxar as pessoas para cima, as coisas são muito difíceis. O programa que foi desenvolvido e melhorado entre 2002 e 2015, mais ou menos neste período, foi puxando os alunos para cima. E, nessa situação e com avaliação externa, os professores sentiam-se apoiados no seu esforço de exigência. Sentido-se apoiados, percebiam que valia a pena ajudar os alunos.

Agora, quando é dito aos professores que todos os alunos têm de passar porque todos têm direito ao sucesso, que podem eliminar partes do programa, que não importa se os alunos sabem ou não...

"Estudos recentes chegam à conclusão que os alunos lucram em ficar retidos, nomeadamente no segundo ciclo, porque com isso conseguem superar as dificuldades"

É a favor do chumbo, ou da retenção, como se diz agora?

Não sou a favor do chumbo, ninguém é a favor do chumbo. É um tema que tem de ser discutido mais profundamente, e a questão que se põe à partida é esta: será que vale ou não a pena ter a retenção como último recurso a retenção?

Vale ou não?

Este problema tem sido estudado de várias maneiras, uma das quais é verificar se os alunos que estão no limiar das dificuldades lucram ou não em passar de ano. Os estudos mais recentes chegam à conclusão que os alunos lucram em ficar retidos, sobretudo em determinadas alturas, nomeadamente no segundo ciclo, porque com isso conseguem superar as dificuldades.

Mas o problema não deve ser visto só assim, para este ou aquele aluno, deve ser visto do ponto de vista da educação nacional. E, deste ponto de vista, será que devemos dizer que não importa o que os alunos façam, não importa o que aprendam, têm sempre o direito a passar?

E acho que não, não se pode dizer isto. Porque ao dizer isto está-se a facilitar o não estudo, o não progresso. O que devemos dizer é o seguinte: a reprovação é um último recurso, é para o caso de a situação estar tão grave que o aluno não pode ir para diante porque não vai entender o que se passa a seguir.  

Não devemos ser a favor ou contra o chumbo, o que devemos fazer é todo o possível para que este último recurso não seja aplicado. Mas deve existir, deve-se tornar claro que existe e deve-se fazer o possível para não ser preciso utilizá-lo.

Em relação à política do governo PS, podemos dizer que a pandemia foi culpada de uma parte dos resultados?

A pandemia criou mais problemas, muitos países desceram durante a pandemia — o nosso desceu mais do que os outros, sobretudo desceu mais do que os países com o mesmo número de dias de confinamento, isso está estudado. Mais, durante a pandemia, o país não deu atenção nenhuma à recuperação da aprendizagem dos alunos, falava-se em recuperação, mas não se media.

O que foi dito pelo ministério logo após a pandemia, até 2023, é que as coisas estavam a funcionar, que estávamos a recuperar. A certa altura, até foi dito "estamos melhor do que antes da pandemia", o que levou algumas pessoas a afirmar com ironia — porque dá vontade de rir para não chorar —, que então é melhor não existirem escolas, uma vez que os alunos aprendem mais com as escolas encerradas. Humor negro.

Mas andámos cegos para esta realidade e, desse ponto de vista, somos culpados de grande parte das perdas de aprendizagem. Repare que houve países que melhoraram depois da pandemia, nomeadamente Taiwan e Singapura.  

Créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Sabemos porquê?

Uma coisa é muito clara, mantiveram a avaliação, mantiveram um grande rigor no currículo. Nós fizemos exactamente o contrário, escondemos a avaliação, só os inquérito internacionais vieram revelar onde estamos. A primeira flexibilização do currículo foi feita no meu tempo, mas era uma flexibilidade para acrescentar, não para retirar.

Ou seja, aquilo que o PS dizia que queria fazer com esta política, apoiar os mais desfavorecidos, teve o efeito contrário, os mais desfavorecidos são aqueles que revelam mais problemas. Uma política supostamente a favor das igualdades criou desigualdades.

"Nos últimos anos a escola pública perdeu bastantes pontos em relação ao ensino privado"

Os ministros da Educação e os governos defendem a escola pública, mas muitas vezes têm os filhos na privada. Faz sentido?

Pois, enfim... O elevador social não está a funcionar tanto como deveria. Há muitos casos desses. O que posso dizer é que é pena que a escola pública não seja tão boa quanto poderia ser. Nos últimos anos, a escola pública perdeu bastantes pontos em relação ao ensino privado. Claro que há ensino privado melhor e pior, claro que há ensino público pior e melhor.

Mas devemos defender o ensino público e a qualidade do ensino público. E, em meu entender, houve um conjunto de medidas nos últimos sete ou oito anos que não o fizeram.

"É preciso começar a instituir algum sistema de contratação direta pelas escolas"

Além das medidas que já mencionou, o que poderia tornar melhor a escola pública, o ensino público?

Julgo que é necessário aumentar a autonomia das escolas e quebrar, pouco a pouco, este centralismo soviético que existe em Portugal no ensino público. É muito difícil fazê-lo, por várias razões, a primeira são as dificuldades organizacionais. Depois, há uma oposição imensa, gigantesca, por parte dos sindicatos, por parte de muitos partidos, por parte de muita ideologia, a qualquer verdadeira autonomia das escolas. 

As pessoas entendem a autonomia das escolas como um "não nos chateiem". E não é essa autonomia que é necessária para as escolas, o que é necessário para as escolas é uma autonomia que lhes traga responsabilização e que lhes traga o poder real de mudar as coisas.

É preciso começar a instituir algum sistema de contratação direta pelas escolas, mas há uma reação tremenda a isto. Quando tentámos fazê-lo para uma pequeníssima parcela das escolas, e em casos especiais, houve uma oposição terrível. As pessoas não querem mudar muitos aspectos, este é um deles.

Consegue explicar a dependência e a aversão à mudança?

Vou contar-lhe a história das duas primeiras solicitações de diretores-gerais quando cheguei a ministério, estou a falar de estar sentado no ministério no primeiro ou no segundo dia, dias que me marcaram e surpreenderam com uma série de coisas.

Um dos diretores-gerais veio ter comigo porque não havia dinheiro para as bolsas. "Não há dinheiro?", perguntei, "mas não ficou dinheiro reservado para as bolsas?" E lá discutimos o assunto, lá fomos desencantar a maneira de poder pagar as bolsas — que foi das coisas que melhor funcionaram no governo, o pagamento de bolsas.

"Não faz sentido nenhum estar aqui em Lisboa, sentado na 5 de Outubro, a decidir se determinada escola pode ou não ter mais 15 minutos para almoço"

Outro diretor-geral veio com um pedido de alteração em, salvo erro, um quarto de hora no horário de almoço de uma escola. Repare, é a primeira ou segunda coisa que me chega, não tenho a certeza, mas foi no primeiro dia em que recebi diretores-gerais. E pergunto: mas o que é que eu tenho a ver com isso? E o diretor explica que está definido na lei, ou não sei onde, que só o ministro pode autorizar alterações ao calendário escolar. 

Perguntei-lhe: "O que é que é preciso fazer?" "Ah, o senhor ministro tem de assinar um despacho..." "Então, prepare esse despacho que eu assino ainda hoje". E o diretor-geral saiu da sala com ar de que vem aí o caos, meus Deus, o que vai acontecer. Ainda argumentou, "veja lá se depois as outras escolas também querem, os pais vão protestar, as horas não estão de acordo com as deles..." Então, que protestem com o diretor da escola que tomou a decisão, entendam-se. Agora, não faz sentido nenhum estar aqui em Lisboa, sentado na 5 de Outubro, a decidir se determinada escola pode ou não ter mais 15 minutos para almoço.

A certa altura, quando estava a trabalhar nos Estados Unidos, vim a Lisboa e discutia-se um tema que me fazia imensa confusão, era primeiro-ministro António Guterres [1996]: se os supermercados podiam ou não abrir aos domingos. Falei com amigos, uns defendiam que deviam abrir, outros que não. E a minha reação era: "Mas o que é que o Estado tem a ver com isso? Deixem-nos abrir se quiserem, deixem-nos fechar se quiserem. Porque é que temos de arranjar uma lei sobre o horário dos supermercados?" Mas ninguém entendia esta minha posição.

Viveu em Lisboa, nos Açores, nos Estados Unidos e em Itália. O que aprendeu com cada um destes lugares, o que o marcou?

A estadia nos Açores foi interessantíssima, porque na minha geração, quase por tradição, as pessoas de Lisboa, de Coimbra, do Porto, dos grandes centros urbanos mantinham-se no sítio onde viviam quase o resto da vida, às vezes no mesmo bairro, às vezes na mesma casa. Eu tive a sorte de sair.

A ida para os Açores foi um pouco a libertação desta ideia fixa, de viver sempre no mesmo sítio e de conhecer sempre as mesmas coisas. Os Açores são muito diferentes de Lisboa, na altura, muitíssimo diferentes de Lisboa. Comecei a trabalhar nos Açores e a ir lá regularmente cerca de 1981/82. Vivi em Ponta Delgada, mais precisamente no Livramento, até 1988, por aí.

Vivíamos longe de tudo, a casa não tinha campainha, não tínhamos telefone, foi quase um mergulhar na natureza que eu não tinha tido ainda. No inverno muita chuva, nas outras estações do ano o que as pessoas dizem, todas as estações no mesmo dia, estar na praia em agosto e, de repente, começar a chover. Adaptei-me bem, foi muito bom.

Depois foi para os Estados Unidos da América, o fosso era ainda maior. 

Aí foi mesmo um mundo diferente, a língua, a cultura, a organização, a organização das universidades — Portugal também está muito diferente, mas no fim dos anos 80 a diferença entre as universidades dos Estados Unidos e as universidades portuguesas era abismal, havia uma série de rotinas, de práticas, de éticas que não tínhamos de forma alguma. Foi uma grande mudança.

Uma das coisas que me impressionou, por exemplo, é que quando começava um ano letivo saía logo o calendário para o ano seguinte, os manuais escolares, mesmo ao nível mais avançado, estavam já reservados na livraria da universidade muito tempo antes de as aulas começarem — este é um tópico que me interessa imenso.

Estudei e vivi a 100% nos Estados Unidos, a minha filha nasceu lá, ia ao supermercado, levava os filhos à escola, discutia com os professores, esse tipo de vivência. E fui professor investigador no Stevens Institute, foi uma imersão muito grande na vida norte-americana. Tenho uma grande apreciação pelos académicos norte-americanos e pelo espírito de trabalho e de honestidade que se vê nos Estados Unidos.

Uma das coisas que me surpreendeu é que na universidade onde eu trabalhava os professores estavam proibidos de vigiar os exames, considerava-se isso uma falta de confiança nos alunos. E é engraçado, tive alguns alunos portugueses que me diziam que era tudo muito respeitado, se um aluno começava a falar a meio de um exame levava logo um "shiu!".  

A perspetiva é curiosa, se alguém vai copiar, está a abusar dos que estudaram, dos que estão ali para mostrar isso, está a utilizar o trabalho dos outros e isso não é bem visto.

"As pessoas entram no governo umas, mas saem de lá outras"
Créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Por fim, Itália. O que o marcou?

Adorei viver em Itália, absolutamente. A minha mulher viveu cerca de oito anos em Itália, visitava-a frequentemente, e a certa altura fui eu que vivi lá três anos.  

Quando saí do governo a melhor decisão que tomei foi ir para Itália. Porque as pessoas entram no governo umas, mas saem de lá outras. E ficam um bocadinho centradas na observação daquilo que outros fizeram, afastar-se é uma coisa importante.

Mas, mais do que isso, concorri a um lugar em Itália e fiquei num centro de investigação. E isso também foi muito interessante, porque foi mergulhar na vida italiana mesmo, não foi só ir à pizzeria. Aprendi italiano, mergulhei na leitura dos clássicos italianos, algo muitíssimo revelador — falo sobretudo de clássicos dos séculos XIX e XX. Essa leitura, o contacto com a música, com a comida, com a língua foi interessantíssimo.

E imergi mesmo, como não pensava que poderia acontecer, até na língua, no significado das palavras, às vezes igual ao português, mas com significado tão diverso. Está a ver, divèrso, como dizem os italianos, diferente, mas que agora todos usam em português para tudo.

"Em Matemática repetir um erro mil vezes não o torna uma verdade. Ao contrário, quando uma palavra errada ou diferente se diz muitas vezes, passa a ser aceite"

A língua não tem o conforto dos números, a mesma previsibilidade?

Sim, claro, os números estão sempre certos, são sempre os mesmos. Sei que a língua evolui, mas faz-me sempre muita confusão, porque em Matemática (e em Ciência) repetir um erro mil vezes não o torna uma verdade. Ao contrário, quando uma palavra errada, estranha ou diferente se diz muitas vezes, passa a fazer parte do vocabulário, passa a ser aceite.

A língua é viva, dizem. 

A língua é viva e não me dou muito bem com isso, não gostei do Acordo Ortográfico, não gosto de muitas coisas, não gosto de uma série de expressões que hoje se usam, mas é assim.

"Metade das discussões ideológicas não têm nada a ver com ideologia, são discussões de interesses próprios"

Que expressão, pode dar um exemplo?

Passei anos a evitar fazer transferências da língua inglesa para a língua portuguesa, uma delas é "antecipar". Porque em inglês, anticipate significa prever, mas em português antecipar é fazer uma coisa mais cedo. Só que tantas pessoas começaram a dizer antecipar no sentido de prever, que hoje antecipar já tem esse significado.

Acho péssimo, muito mau, porque as palavras começam a perder o seu significado preciso. Há 20 anos dizer antecipar para significar prever era um erro crasso, mas hoje não se pode dizer que seja um erro. Ou seja, sempre que alguém me diz "antecipo que", penso que vai ser mais cedo. "Antecipo que o governo vai cair". Antecipas?! Ah, então achas que o governo vai cair mais cedo do que estavas à espera... Isto faz-me imensa confusão.

"Uma pessoa vai para o governo uma e sai de lá outra", disse agora mesmo. Aconteceu-lhe, quer explicar?

Isso é verdade. Não sei bem dizer, não sou político, portanto, quando fui para o governo não saí exatamente outro, saí a mesma pessoa, mas saí com um conhecimento e uma atitude muito diferente perante algumas coisas.  

Uma coisa que hoje tenho muito clara, por exemplo, é que metade das discussões ideológicas não têm nada a ver com ideologia, são discussões de interesses próprios.

A pessoa diz: "Gostaria que isto fosse assim porque..." e dá um argumento ideológico, mas o que está a pensar é, "eu gostaria era de ganhar mais", "eu gostaria de ter mais poder". Isso é muito visível no governo. Quando a pessoa está no governo, para entender os movimentos de contestação, de apoio ou de pressão, tem de entender que existem interesses por detrás disso.

"Os professores portugueses conseguiram que o país progredisse, que em 2015 tivéssemos os melhores resultados de sempre"

Não é tudo serviço público, não é tudo pelo interesse do país?

Não é tudo serviço público, há muita coisa que é interesse imediato. Em Educação isso é muito claro; quando as pessoas começam a dizer que a avaliação faz mal aos alunos, uma teoria muito comum, dois ou três podem até acreditar nisso, mas na realidade é uma pressão para que não se avalie, porque quando se avaliam os alunos está-se indiretamente a avaliar o professor, está-se a avaliar a escola. Além de que avaliar os alunos dá trabalho e confronta-nos com o conhecimento ou não conhecimento de alguma coisa. Quando um aluno não sabe, o professor sente-se mal.

Não estou a dizer que todos os professores sejam assim, esse é outro aspecto muito interessante que também aprendi com a passagem pelo governo. Uma das coisas que aprendi —  estou a falar dos interesses pessoais — é que os professores são muitas vezes capazes de ultrapassar os seus interesses pessoais para olhar para os alunos, para pôr os interesses dos alunos acima dos seus. 

E este tipo de generosidade é também algo surpreendente, que não se passa em todas as áreas. O facto de os professores sentirem que têm à frente um conjunto de olhos de meninos e meninas é algo que lhes dá um sentido de responsabilidade. Não é só dedicação, há um grande altruísmo dos professores. Quando houve uma série de greves, falei com alguns professores e muitos estavam incomodados, porque sentiam que aquilo não era o melhor para os seus alunos.

E o tempo em que estive no governo foi marcado por reduções salariais, por dificuldades económicas, um tempo difícil. E os professores portugueses, com avaliação acrescida — mais do que a que existia — , com programas mais exigentes e mais rigorosos, portanto, mais trabalho, conseguiram que o país progredisse, que em 2015 tivéssemos os melhores resultados de sempre.

Porque quando temos algo que puxa por nós, que nos impele a sermos generosos, somos generosos. E o contrário também. Ou seja, acho muito natural que quando os professores são chamados a ser exigentes com os alunos e sentem que há uma coerência nisso, dedicam-se. Mas também é normal que, a partir de certa altura, quando são chamados a não ser exigentes com os alunos e a não fazer avaliação isso puxe todo o país para baixo.

A passagem pelo governo traumatizou-o?

Não propriamente. Tornou-me um bocadinho mais cético sobre as ideologias, no sentido em que me fez ver que por trás das ideologias muitas vezes não há ideias, há interesses próprios.

"Há diferenças entre ser político e ser intelectual, isso é evidente. O político tem sobretudo de convencer e agir, o intelectual tem de duvidar"

Na sua última aula, no ISEG, falou na admiração por Dmitri Shostakovich, compositor e pianista russo, e citou uma frase: "Educado para ser sóbrio, trabalhador, para se cultivar, para saber sempre mais, para ser tolerante e não agressivo, discreto", dizendo que também foi educado assim. Não foi educado para ser político, é isso? 

Não sei. Acho que não, mas não quer dizer que não se possa ser político e sóbrio, trabalhador, honesto, não digo que não. Mas há uma coisa que falta nessa frase — que não se sabe se é dele se do biógrafo, porque não se sabe se é uma autobiografia —, dizia que o pecado capital para essa geração cultivada da burguesia russa é ser arrogante. E isso é uma coisa que me marca, acho exatamente o mesmo, ser arrogante é o pior que há. 

Estive há pouco numa conferência em Oeiras, muito interessante, mas o primeiro orador começou logo por dizer sobre qualquer coisa "isso é estúpido". Eu seria incapaz de dizer isso sobre as ideias de alguém, acho que é uma coisa horrível, se alguma vez disse isso arrependo-me imensamente, porque não é bom. Podemos dizer que é absurdo, por isto e aquilo. A arrogância é uma coisa que acho detestável.

Há diferenças entre ser político e ser intelectual, isso é evidente. O político tem sobretudo de convencer e agir, o intelectual tem de duvidar. São coisas diferentes mas, às vezes, dentro disto consegue-se alguma compatibilidade.

"Os manuais escolares são algo de essencial para o ensino"

Afirmou que os manuais escolares são um tema que lhe interessa. Porquê?

Sou um grande defensor dos manuais escolares, acho que os manuais escolares são algo de essencial para o ensino. Estou a acabar um livro sobre o tema, que escrevi primeiro em espanhol e tem sido difundido em Espanha e na América Latina, e que vai ser publicado em Portugal pela Almedina, no fim da Primavera, chama-se "O Manual Escolar".

O que defende nesse livro?

Acredito que o manual escolar é o ensino estruturado, o ensino não como uma coleção de ideias dispersas, mas como um longo argumento, uma longa exposição de uma matéria. É um auxilio extraordinário ao ensino. Há uma frase, que cito no livro, de um estudioso inglês que me marcou muito: "O manual escolar é a iniciação ao mundo da leitura inteligente". Quer dizer, um aluno que vai ler um manual escolar é um aluno que vai ler algo com um objetivo de o compreender, que não é o mesmo que ler um romance ou um conto.

É uma prática deliberada e, se o manual for bom, é organizado para um entendimento profundo das coisas. Um manual bem feito faz perguntas sobre aquilo que acabou de explicar, tem exercícios, mais à frente refere os tópicos que desenvolveu atrás. Isto é muito diferente de uma coleção de fotocópias e de uma coleção de atividades, como às vezes se defende.

Os estudos que existem sobre manuais escolares mostram que são úteis a uma grande variedade de atores do sistema de ensino, não só aos alunos, mas também aos professores, mais aos professores menos experientes, mas mesmo os professores mais experientes lucram com o apoio de um manual. E são úteis aos pais, que assim também podem acompanhar o estudo dos filhos e podem ajudar no que está ao seu alcance.

Quem é que define o que é um bom manual escolar? Porque sabemos que alguns têm fraca qualidade.

Esse tema também está estudado e o livro tem um capítulo sobre isso. Há critérios de avaliação internacionais, cito vários, americanos, franceses. Em Portugal, temos a sorte de ter sido introduzida em 2006 uma legislação que pressupõe a revisão de manuais escolares e que criou a sua certificação por entidades externas, que sugerem correções e, depois, os certificam ou não. A partir de 2010 os manuais escolares melhoraram muito.

Em França, há o Conselho Científico de Educação Nacional, uma coisa que não existe em Portugal.

Créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Temos o Conselho Nacional de Educação.

Mas é um conselho quase de concertação social, não é exatamente um conselho científico. O conselho científico francês tem especialistas, alguns deles cientistas de renome, como é o caso do seu presidente, Stanislas Dehaene, neurocientista [diretor da Unidade de Neuroimagem Cognitiva do INSERM], dos melhores do mundo nesta área.

O conselho científico está neste momento a propor uma legislação sobre os manuais escolares — colaborei nisso porque sou membro (não estava a falar de mim quando falei em cientistas de renome), fui nomeado pelo governo de Macron. A proposta aprovada, ainda tem de ser promulgada, dá indicações sobre o que é um bom manual, fixa um conjunto de critérios — não muito diferente dos portugueses, dos ingleses ou dos americanos —, estabelecidos com base naquilo que cientificamente se sabe sobre o tema. 

Estamos na era da Inteligência Artificial, mas o ensino continua igual desde o século passado. Faz sentido?

Vamos lá a ver, a escola mudou muito, não se bate nos miúdos, se um professor o fizer está bem arranjado...

Hoje são os miúdos que batem nos professores.

É verdade. Mas acontece que nós somos muito a mesma coisa. As pessoas às vezes pensam que mudámos muito, mas não mudámos nada, biologicamente falando. E a maneira de aprender é hoje a mesma que era há cinco mil anos, porque a evolução não é algo que se passe em cem ou duzentos anos, é algo de milhões de anos.

Milhões de anos de evolução desenvolveram o nosso cérebro, a nossa capacidade de linguagem, a nossa maneira de aprender, que é essencialmente a mesma. Na escola, os alunos são muito mais iguais do que parece, são essencialmente iguais. Não vejo sequer que faça algum sentido pensar que mudámos.

Falei na IA porque os alunos têm hoje muito mais ferramentas de aprendizagem, muito mais acesso a informação, muito mais formas de satisfazer a sua curiosidade. Além disso, demoramos a aplicar o conhecimento que temos. Para dar um exemplo: sabe-se que o cérebro dos miúdos na adolescência não está no seu potencial máximo às oito ou nove da manhã, mas continuamos a marcar exames para essa hora. Porque não alterar para as 11 da manhã? 

É verdade, sim, devia ser alterado. E tem piada, porque houve uma reunião do conselho cientifico em França precisamente sobre esse tema. O assunto foi estudado e foi feita uma nota para o ministério a recomendar que as horas fossem tomadas em conta para essas idades, estamos a falar do fim da adolescência.

Mas não é fácil, há problemas logísticos que não são fáceis e que têm de ser resolvidos. Mas, de facto, hoje sabe-se que os jovens dessa idade têm um horário um bocadinho diferente.

"Há conhecimento que pode não ter aplicação direta na altura, mas acaba por ter interesse para a formação da pessoa"

Porquê a Matemática?

Desde jovem que achei que iria ser alguma coisa ligada à ciência. Gostava muito de Física, gostava muito de Matemática, portanto, estar nesta área é uma coisa que vem de muito jovem, como a ideia de ser professor, a ideia de fazer divulgação científica, a ideia de explicar as coisas aos outros.

Dei algumas voltas no meu percurso escolar, acabei a licenciatura em Economia, mas sempre com a ideia de que o que me interessava era a área mais Matemática dentro da Economia, a Econometria, a Investigação Operacional, a Estatística. Acabei por me especializar em Matemática Aplicada, com aplicações à economia e a outras áreas.

No início desta conversa disse que defende um currículo baseado em conhecimentos, não em competências. Pode explicar porquê e qual a diferença?

Para ser prático, precisamos de conhecimentos e de capacidade de aplicação, temos de ter as duas coisas. Mas, ultimamente, tem-se insistido muito, demasiado, em meu entender, na capacidade de aplicação, como se tudo só interessasse quando tem uma aplicação imediata. Julgo que não é verdade, há conhecimento que pode não ter aplicação direta na altura, mas acaba por ter interesse para a formação da pessoa e isso reflete-se na sua capacidade de atuação na sociedade, no trabalho, na vida em geral, às vezes de maneira invisível.

Ou seja, dizer que tudo só interessa pela sua aplicação, só as competências, não faz sentido nenhum, é uma teoria completamente errada e é uma teoria conta o conhecimento.

Segundo ponto, como devemos organizar o currículo? Devemos organizá-lo com a lógica das competências ou com a lógica do conhecimento? Não tenho dúvidas, é com a lógica do conhecimento. Não podemos estar orientados num dia para tratar de pneus, noutro para tirar imperiais e no dia seguinte para voar de balão.

As aplicações não podem criar um currículo organizado e o conhecimento é algo que deve ser organizado, senão é uma coleção de truques, de ideias sem interesse. E é isso que aborrece os alunos, ao contrário do que se possa pensar: "Vamos fazer aplicações porque eles gostam". Não, não gostam. Vamos fazer coisas que façam sentido e aí sim, eles gostam. É um mito completamente absurdo dizer que os alunos só se interessam por aquilo que tem aplicações imediatas.  

Dou um exemplo: os alunos interessam-se pela Guerra de Tróia? Interessam. Qual é a aplicação imediata que têm da Guerra de Tróia? Nenhuma. Os alunos interessam-se por ouvir falar de buracos negros, viagens extra-galácticas? Interessam. Qual a aplicação imediata? Nenhuma. Os alunos interessam-se por aquilo que é coerente, e a questão é essa: o ensino tem de ser coerente.