No próximo dia 3 de novembro, os eleitores norte-americanos estão longe de ser confrontados com um simples papel que apenas lhes pede que escolham o próximo presidente: Trump ou Biden. Há dezenas de votações em causa, referendos com longos textos e perguntas que parecem trava-línguas.
Mergulhar no mundo destes boletins é uma experiência (quase viciante) que ajuda a compreender o elevado nível de participação política que é esperado dos norte-americanos. Ao mesmo tempo, deixa claro que não é fácil a vida do cidadão que queira entender o seu próprio sistema eleitoral.
Aos olhos de um eleitor português, estes boletins podem estar algures entre o cómico e o confuso. Mas nos Estados Unidos a população está habituada a ser consultada nestes termos, e um longo boletim de voto não é necessariamente um bicho de sete cabeças, embora exija algum “estudo” prévio.
Ainda assim, há casos que até para os norte-americanos são caricatos e confusos. Os jornais locais muitas vezes organizam guias para ajudar os eleitores a perceberem o que está em causa em cada tópico que vai a votos.
Alguns exemplos
No condado de Miami-Dade - uma espécie de área metropolitana que inclui a cidade de Miami e outras -, o boletim de voto que serve de "amostra" para o eleitor se poder preparar é especialmente extenso (pode ver aqui o boletim completo).
Inclui todas as votações do condado (depois, na realidade, cada eleitor “só” encontrará as que dizem respeito à sua cidade, ao estado da Flórida e ao país) e está escrito em três línguas: inglês, espanhol e crioulo haitiano ou francês, devido à forte presença de cidadãos migrantes falantes destas línguas - embora o crioulo com muito menos expressão na população.
Mas o formulário é longo também porque há dezenas de votações em causa.
Além da escolha do próximo presidente, os eleitores são chamados a votar nos deputados para a Câmara dos Representantes - ou seja, quem serão os representantes do estado da Flórida em Washington -, a eleger o presidente da Câmara de Miami, a escolher os membros para o conselho de educação local...
Depois, há ainda emendas à Constituição do próprio estado e referendos locais. No exemplo de Miami-Dade, estas perguntas têm, no total, mais de 1.000 palavras - o equivalente a duas páginas A4 em texto corrido.
Noutros casos, a formulação das questões também não facilita a vida ao eleitor. Por exemplo, no condado de Tuscaloosa, no Alabama, pede-se ao eleitor que responda “sim” ou “não” ao seguinte ponto:
“Proposta de emenda à Constituição de 1901 do Alabama para que um juiz (…), nomeado para preencher uma vaga, sirva o seu mandato inicial até à primeira segunda-feira depois da segunda terça-feira em janeiro, a seguir à eleição geral realizada depois de o juiz ter estado dois anos em funções”.
Na prática, a diferença para a situação atual é que um juiz que tenha sido nomeado para ocupar uma vaga fica no lugar pelo menos dois anos, em vez de apenas um - e só depois deve ir a eleições.
Estes exemplos, embora ajudem a ilustrar - e, às vezes, a caricaturar - a complexidade de algumas questões eleitorais nos Estados Unidos da América, pouco ou nada mexem com a ordem mundial. Esse ónus está acima de tudo na escolha do próximo Presidente do país.
Seria de esperar que esse fosse um tema relativamente mais simples nos boletins de voto por todo o país. Mas não é.
Afinal, quantos candidatos à presidência há? Depende…
A lista de candidatos à presidência que figuram nos boletins de voto varia consoante o local de residência do eleitor.
Este ano há três duplas de candidatos (presidente/vice-presidente) que aparecem nos boletins de todos os estados: Donald Trump/Mike Pence (Partido Republicano), Joe Biden/Kamala Harris (Partido Democrata) e Jo Jorgensen/Jeremy “Spike” Cohen (Partido Libertário).
Mas há pelo menos mais 30 candidatos à presidência com o nome inscrito nos boletins de voto de alguns estados.
O exemplo mais reconhecido talvez seja o de Kanye West, famoso rapper de 43 anos que anunciou a sua candidatura em julho deste ano, e que aparece apenas nos boletins de voto de 12 estados - o Minnesota é um deles. Há candidatos que figuram no boletim de voto de um só estado.
As leis para que um candidato possa ter o seu nome impresso no boletim são diferentes de estado para estado e têm em conta fatores como o número de votos em anteriores eleições a outros cargos, número de assinaturas recolhidas, pagamento de taxas.
Também a ordem em que os candidatos são colocados no boletim varia, uma vez mais, consoante o estado. Há situações em que o partido que perdeu as últimas eleições é colocado no topo da lista; noutros estados acontece exatamente o contrário; nalguns casos, os partidos são colocados por ordem alfabética; há ainda estados em que a ordem é decidida por sorteio.
Depois, ainda há a possibilidade de uma pessoa ser eleita sem sequer estar no boletim de voto.
“Write-in”: candidatos à vontade do “freguês”
O Rato Mickey é um dos nomes alternativos que frequentemente aparece nos boletins de voto nos Estados Unidos. Por piada ou protesto, os norte-americanos às vezes escrevem nomes improváveis no chamado “write-in”, um espaço em branco que os eleitores podem preencher livremente - esta opção só existe para alguns cargos, o de presidente ou de senador são dois deles.
As figuras de ficção não entram, obviamente, para as contas oficiais. Mas a verdade é que uma pessoa real pode ser eleita se houver uma maioria de votantes a escrever o seu nome no boletim.
Apesar de ser altamente improvável que isso aconteça, a história recente mostra-nos que não é impossível. Em 2010, uma senadora pelo Alaska foi eleita assim.
Lisa Murkowski tinha perdido a nomeação para ser a candidata pelo Partido Republicano e lançou uma campanha para que escrevessem o nome dela no espaço “write-in”.
Murkowski acabou por reunir mais de 100 mil votos. E ganhou com 39,5%, contra os 35,5% do candidato que ficou em segundo lugar - curiosamente, o seu colega de partido, que a tinha derrotado nas primárias. Esta foi a segunda vez que um senador foi eleito através do voto por “write-in”. A primeira vez tinha sido em 1954, quando o então democrata Strom Thurmond foi eleito pela Carolina do Sul.
As regras para uma eleição através de votos “write-in” não são iguais em todo o país. Há estados onde este tipo de voto não é de todo possível, noutros os candidatos têm de se registar, e depois há estados em que não é exigido qualquer procedimento.
Em 2016, alguns republicanos admitiram que usariam este espaço para escrever o nome do vice-presidente Mike Pence a fim de evitar que Trump fosse eleito. A história mostra-nos que isso não aconteceu, mas o vice-presidente ainda apareceu nos boletins de mais de 1.500 eleitores.
No total, os votos por “write-in” ocuparam o sexto lugar nos resultados das últimas eleições presidenciais nos EUA, com quase 700 mil pessoas a usarem este espaço para expressar a sua opinião.
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