Do tempo que passámos a conhecer a Casa Acreditar de Lisboa ficaram-nos duas grandes ideias.

A primeira é que aquele é um espaço de contrastes. Cabe nele o mundo fantástico das crianças, mas também o pesadelo; a esperança, e a doença; o cinzento das decisões racionais e logísticas, e uma palete de cores de emoções; uma organização estruturada, mas também a flexibilidade que a vida requer; formalidades e descontração; profissionais e famílias. Cabe ali este mundo e o outro.

A segunda é que a Casa nunca pára. Há sempre alguma coisa a acontecer.

E porque é preciso registar que tudo o que lá se passa, existe um elemento com a função de não deixar escapar nada. Organizado e discreto, anda sempre muito cuidado. Não é especialmente grande, mas também não é pequeno. Não gosta de ficar sentado e tem algumas brancas. As brancas, em breve, passarão a negras: todos os dias, novas páginas do Livro Que Nunca Dorme são preenchidas com as ocorrências da Casa.

Durante o dia, é Isabel Mateus, uma rececionista “multifacetada”, a sua fiel guardiã. Com o Livro Que Nunca Dorme debaixo do braço, lá vai registando entradas e saídas das famílias, avarias e imprevistos, contas, recados.

À noite, Isabel vai dormir, mas o Livro não. O testemunho é passado ao vigilante que fica a tomar conta da Casa.

Isabel Mateus, rececionista "multifacetada" da Casa Acreditar de Lisboa, desenhada por uma das crianças da Casa créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

O Livro Que Nunca Dorme não é muito dado a mostrar o que lá traz dentro. Mas como passámos quase dois meses a conhecer as pessoas de quem ele cuida e — já diz o ditado, “quem meus filhos ama minha boca adoça” —, o livro abriu-se para nós.

Com todo o respeito, empatia e atenção, ao longo de quase dez visitas fomos espreitando a vida do número 73 da rua Professor Lima Basto.

No princípio conhecemos os horários, as tarefas e as funções de cada um. Mas, tal como tínhamos dito, esta Casa vive de contrastes. Quando começámos a estar mais perto das pessoas, da prosa passámos para a poesia.

Esta história é, por isso, contada a dois tempos.

Numa espécie de “minuto a minuto” da Casa Acreditar de Lisboa, começamos por descrever ações, tempos e espaços [embora não corresponda a um dia real na Casa, este relato retrata as atividades e o ambiente que nos foram narrados].

- São 9h30. Chega a Isabel. Acende as luzes, liga o computador e vai ter com Ansfriede. Trabalham muito em conjunto. Isabel descreve-se como sendo “um bocadinho os olhos” da gestora da Casa. A rececionista leva o plano diário para fazerem um ponto de situação: quantos quartos estão ocupados, que famílias estão a chegar, que contratos de admissão é preciso preparar.

- Com o Livro Que Nunca Dorme debaixo do braço, que vai atualizando ao longo do dia, Isabel desce dos escritórios para a receção.

Isabel com o Livro Que Nunca Dorme (livro de ocorrências) créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

- No caminho cruza-se com Patrícia. “Até já”, despedem-se. Patrícia vai para o IPO. O trabalho da coordenadora do núcleo sul da Acreditar implica fazer a articulação com o hospital. Neste momento está de saída para a reunião multidisciplinar, em que a associação participa e onde é feita regularmente a apresentação dos novos casos a todas as equipas.

- Entretanto, na sua salinha à entrada, Isabel prepara um contrato. Hoje chega uma nova família e, seja a primeira ou a 15.ª vez na Casa, é sempre preciso tratar dos papéis. Desta vez não vai deixar o contrato no quarto da família, porque Ansfriede os vai receber pessoalmente.

- Ops! Avariou-se uma máquina de lavar roupa. “Ansfriede”! Lá vai a gestora “apagar o fogo”. “Vamos tentar resolver o problema com a ‘prata da casa’”, diz. A Acreditar é uma IPSS, e a governanta, que é também cofundadora da associação, defende que é preciso serem disciplinados na forma como gastam o dinheiro que lhes é doado pela sociedade. De qualquer forma, Ansfriede vê isto como um desafio: encontrar soluções rápidas e eficientes para os problemas que vão surgindo é um challenge para a governanta, que ainda recorre ao inglês, 36 anos depois de ter vindo da Holanda para Portugal.

- “Isabel, não se esqueça de registar a ocorrência no livro”, lembra Ansfriede, quando a avaria já está resolvida. Mais uma vez conseguiram tratar do assunto sem ter de chamar ninguém.

A série “Era uma vez na Casa Acreditar”, publicada por ocasião do Dia da Criança, conta a história de seis personagens que têm tanto de imaginário como de real.

Escolha uma delas para começar e embarque nesta viagem

A todo o gás à boleia do BMW amarelo da Tatiana

Bem-vindo, bebé-recorde!

Uma viagem no tempo no balão da professora Paula

Ansfriede, uma espécie de regadora de sementes que fazem “puff” e se transformam em livros e casas

Quando os Barnabés se juntam, é uma festa de almofadas. Ali, o Lucas é “chato” e isso é bom

O Livro Que Nunca Dorme. E os segredos que Isabel lá guarda

- Mayra e Elias, dois dos mais recentes pais que ficaram hospedados na Casa, acabam de chegar de mais uma consulta no hospital. À entrada, cruzam-se com Tatiana, que não resiste: pára de limpar os vidros e vai a correr ver o bebé-recorde. Quando volta para o BMW amarelo, como chama ao seu carrinho de limpezas, tem lá uma criança empoleirada. “Vamos, Tatiana! A todo o gás para o elevador”.

- A porta da Casa volta a abrir-se. Desta vez é Lucas quem chega. É dia de reunião mensal dos Barnabés. Todos passaram por uma doença oncológica e essa é a base da relação próxima que têm. Dão apoio uns aos outros, partilham experiências e divertem-se quando estão juntos. Hoje combinaram ver um filme. Lucas desce à cave e deita-se no sofá cheio de almofadas do Cantinho dos Barnabés, enquanto os outros não chegam.

- “Até já!”, Isabel sai para o almoço.

- Triiimmm! São 14h. Toca a campainha. Alguém lá em cima espreita, vê que é a voluntária Sandra e abre a porta. Lá vai ela, escada abaixo, para a sala dos cacifos, onde deixa as suas coisas. Veste a t-shirt laranja, põe o cartão ao peito — gosta sempre de andar com a identificação, para que todas as pessoas a possam tratar pelo nome — e sobe de novo. Pisca o olho às crianças e aos jovens que ainda estão a almoçar, no refeitório, mesmo ao lado da sala das crianças, para que saibam que podem ir ter com ela quando acabarem.

- A tarde de Isabel vai ser dedicada à papelada. Tem uma carta de agradecimento para escrever, a pedido da Ansfriede, recibos para emitir, extratos do banco para conferir, atas para organizar…

- Chegou uma encomenda. Sandra, que ainda estava à espera das crianças, vai ajudar. É uma senhora com o carro cheio de brinquedos para doar. A voluntária ajuda a trazer tudo para dentro e a levar os jogos para o armazém, onde ficam guardados até terem novo destino — a sala das crianças, um aniversário ou outra das três Casas Acreditar.

- Triiiim! É o correio. Isabel vai à porta.

- Duas irmãs, de 5 e 7 anos, riem-se timidamente no corredor. Querem ir ter com Sandra, mas estão sem coragem. É que fizeram três pulseiras de elásticos para se lembrarem umas das outras quando se forem embora. Estes momentos enchem o coração de Sandra de amor. A relação que estabelece com aquelas crianças é mesmo significativa.

- Chega a nova família. Ansfriede vai à porta receber mãe, pai e criança. Desta vez vem o casal com o filho, mas às vezes vem só um cuidador — um dos pais, um tio ou uma tia, um avô ou uma avó, ou até mesmo um irmão. A governanta e a família vão para uma salinha fazer as apresentações, “falar um bocadinho”, tratar da parte burocrática. A seguir Ansfriede, mostra-lhes a Casa e deixa-os ir descansar.

- São 16h30, hora de saída da voluntária Sandra, mas o jogo que está a fazer com as crianças ainda não acabou. E por isso fica mais um bocadinho. Não gosta de deixar as brincadeiras a meio. Hoje estiveram a brincar ao Festival da Canção — “um voluntário tem de ter criatividade”, diz Sandra. Inventaram uns microfones e desafinaram a tarde toda.

Sandra na sala das crianças da Casa Acreditar de Lisboa créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

- E chegam as 17h30. Está na hora de Isabel se ir embora. Ora bem, vejamos se está tudo feito. Elevador que dá acesso aos escritórios fechado? Sim. Livro Que Nunca Dorme preenchido? Pois, claro. Atualizada a lista das famílias que estão na Casa? Também. Recado para que o vigilante que fica durante a noite saiba que vai chegar uma família fora de horas? Feito. É o fim de mais uma jornada na Casa Acreditar de Lisboa.

Porque os horários contam apenas uma parte da história, e na tinta que regista cada ocorrência está escondida a emoção de cada minuto, terminamos com algumas das frases que carregam o afeto que nos chegou das pessoas com quem falámos.

“Se houver uma boa estrutura humana ao lado, se houver companhia, as situações são ‘vivíveis’ e às vezes com uma grande dignidade.” (Patrícia Luz, coordenadora do núcleo sul da Acreditar)

“Aqui não entra um médico, uma enfermeira. Não pode. Se há necessidade de alguma coisa vão para o hospital. Isto é casa, house. Aqui a criança está segura. Quem vem do hospital tem de tirar a bata à porta.” (Ansfriede Zwaagstra, gestora da Casa Acreditar de Lisboa)

“Ainda há muito a ideia de que cancro é igual a morte. Mas o Barnabé tem mostrado que é possível a sobrevivência.” (Lucas, um dos Barnabés)

“Há muitos anos, alguém que eu muito estimo disse-me que eu tinha o pior defeito que se pode ter: dar-me demasiado às pessoas. Eu continuo a achar que é uma grande qualidade.” (Paula Nunes, professora voluntária na Casa)

“Eu sou como o papel de parede.” (Ansfriede Zwaagstra considera que deve ter uma interferência mínima na gestão das relações entre as famílias)

“Sou uma pessoa melhor desde que estou aqui.” (Sandra Sampaio, voluntária)

“Um dia, já depois de um jovem [que viveu na Casa] ter falecido, a mãe dele liga-me e diz-me: ‘Tenho saudades de ouvir a sua voz’.” (Isabel Mateus, rececionista e mais além)

“Podia abarcar tudo numa palavra só: abrigo. É inexplicável. Ficámos assombrados!” (Elias, pai do bebé-recorde, lembra o dia em que chegou à Casa)

“Uma vez um menino de sete anos perguntou-me que idade o meu filho mais novo tem e eu disse ‘oito’. Ele muito rapidamente respondeu: ‘Então o teu filho vai morrer primeiro do que eu’. Fiquei sem saber como reagir.” (Sandra Sampaio)

“[A Casa Acreditar] é um lugar exigente emocionalmente e é preciso aprendermos a repor as nossas energias.” (Patrícia Luz)

Patrícia
Patrícia Luz desenhada por uma das crianças da Casa Acreditar de Lisboa créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

“‘Onde é que está o meu irmão? Qual é o hospital? O que é que lhe estão a fazer? Em que estado de debilidade está?’. Para os irmãos é duro…” (Patrícia Luz)

“Acho que falsa esperança não existe. Existe esperança.” (Sandra Sampaio)

“As outras [Casas] até têm mais capacidade. De certa maneira ‘ultrapassaram’ esta. Mas esta é onde eu trabalho e onde eu tenho vivido momentos muito intensos e momentos dolorosos. É muito especial.” (Isabel Mateus)

“O que eu aprendi lá [em Amesterdão] como utente estou a pôr em prática aqui como gestora. That's where all my knowledge is coming from. Só vem daí o meu conhecimento.” (Ansfriede Zwaagstra fala da experiência de ter estado hospedada numa casa Ronald McDonald durante a doença da filha)

“No momento da morte, do enterro, muitas vezes somos recrutados pelo serviço social para poder eventualmente dar algum apoio financeiro. Essa é uma dimensão importante. Não só o enterro, mas o que se pode ainda naquele momento viver, experienciar, celebrar, eternizar.” (Patrícia Luz)

“Eu acho que esta casa não se podia chamar outra coisa que não Acreditar.” (Paula Nunes)

“Na experiência da perda, muitas vezes os pais pedem para serem postos em contacto com outros pais que também já a tenham vivido. Ou vão a casa uns dos outros ou encontram-se aqui mesmo na Acreditar. E conversam, conversam, choram, choram, conversam.” (Patrícia Luz)

“Todos os dias, quando saio, levo comigo a alegria de pertencer a esta equipa. Há muita espontaneidade, cada uma de nós é o que é, e pode ser autêntica nas suas fragilidades.” (Patrícia Luz, sobre a equipa)


Também os pais de um bebé que esteve em tratamentos no IPO partilharam connosco, de forma autêntica, as suas fragilidades e as suas forças. Clique aqui para conhecer essa história.

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