“Tu tuuuuuu! Vai partir! Todos a bordo!”

Todas as semanas, na Casa Acreditar de Lisboa o BMW amarelo faz a longa travessia de cinco metros que separam — ou unem — a sala de estar dos mais novos à porta do elevador. De pé, agarradas ao carrinho das limpezas, as crianças empoleiram-se: “Tatiana, vamos!”.

“E nós vamos!”, sorri a responsável pela limpeza da Casa. “Eles gostam. Ficam a rir. É assim, gosto de brincar com eles. Gosto de dar abraços, de falar, de pegar ao colo”, conta Tatiana Shostak, que ali trabalha há quase oito anos.

A Casa já conhece de cor os movimentos da Tatiana. Diariamente, das 7h30 às 13h30, chega, desce à cave, muda de roupa, pega no seu BMW amarelo, “o carrinho onde estão os paninhos e os detergentes para a limpeza”, e aí vai ela. Às 10h, tem direito a uma paragem na cozinha, onde toma um chá “com uma sanduíche ou qualquer coisa”. São “15, 20 minutos”, descreve.

Nesta sua rotina, nem sempre se cruza com muita gente, porque “as pessoas vão para o hospital, para a escola”. Mas, se encontra uma família que esteve muitos dias nos tratamentos, pergunta pela criança. “Há famílias que já cá vivem há muito tempo. Um ano, dois anos. É já como se fossem nossas”, considera.

Há momentos de ternura em que esta cumplicidade é inegável. Num dos dias em que visitámos a Casa, a Tatiana e duas mães riam a bandeiras despregadas. As três admiravam os desenhos que as crianças fizeram com os retratos das pessoas com quem falámos para este trabalho. “E esta? E esta? Quem é?”, tentavam adivinhar. “És tu, Tatiana!”, soltaram uma gargalhada.

Tatiana Shostak, responsável pela limpeza da Casa Acreditar de Lisboa, desenhada por uma criança da Casa créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

São dez anos a morar em Portugal, e oito de Casa Acreditar. Tempo suficiente para  Tatiana ter construído relações de amizade com as pessoas que ali ficam hospedadas.

Há quatro anos, ligou-se a uma família em particular. “Estiveram cá muito tempo. Depois foram para o Algarve. E até hoje são minhas amigas, a criança e a mãe”, conta. “Se vêm ao hospital para a rotina, ligam-me sempre e encontramo-nos. Se tenho tempo, vou a casa dela para visitar e apanhar sol”, entusiasma-se.

Sobre o motivo que a aproximou desta família em particular, admite que tem “um bocadinho” que ver com o facto de, tal como ela própria, também eles serem da Ucrânia. Mas a principal razão, acredita, é serem uma família “muito boa”.

A série “Era uma vez na Casa Acreditar”, publicada por ocasião do Dia da Criança, conta a história de seis personagens que têm tanto de imaginário como de real.

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Neste caso, era a filha que estava doente e que veio para Lisboa fazer um tratamento no IPO (Instituto Português de Oncologia). Tal como ela, todos os anos há cerca de 450 novos casos de cancro em crianças e jovens em Portugal.

“Aqui para o IPO de Lisboa vêm mais de metade, 250”, esclareceu Patrícia Luz, coordenadora do núcleo sul da Acreditar, de que Lisboa faz parte.

Os números são altos, mas a taxa de sucesso hoje em dia também: a média está nos 80%, diz Patrícia Luz, explicando que “existem tipos de cancro que têm até uma taxa mais elevada. Por exemplo, a leucemia, que é o cancro com maior incidência nas crianças, é também aquele que tem a taxa mais alta de sucesso. Chega aos 90 e tal por cento. Mas depois também existem outros cancros que são muito graves e que têm uma taxa de sucesso muito baixa”. Esta sexta-feira foram apresentados os primeiros dados nacionais do Registo Oncológico Pediátrico Nacional, com estatísticas sobre a incidência e a sobrevivência do cancro infantil no nosso país.

Tatiana diz, no tal momento em que o sorriso lhe foge e a voz fica cada vez mais apagada — o BMW aqui foi-se abaixo —, que quando “corre mal” e o tratamento não resulta a casa “fica calma”, há um ambiente de “tristeza”. “Não gosto desses momentos”, arrasta, enquanto limpa as lágrimas.

Hoje em dia, com 48 anos, partilha que já ganhou resistência "mas é duro”. “Na primeira vez chorei muito”, confessa.

Para Tatiana, as tarefas de limpeza são mais do que um mero passar do pano. Quando cuida da casa, sente que está a contribuir para fazer a diferença. “Quero fazer alguma coisa pelas famílias. Limpar muito bem o quarto, deixar as toalhas”, diz, enquanto vai reproduzindo os gestos de quem dobra e ajeita a roupa. Estes são “momentos pequenos” que podem contribuir para que as famílias se sintam mais tranquilas, acredita.

As tarefas da Tatiana são facilitadas pelo facto de as famílias serem também responsáveis pela manutenção da casa. Faz parte das regras. Ainda assim, a ‘condutora do BMW’ conta-nos que tem “muito trabalho”. De repente, engata a quinta e vai por aí fora: “Lavo a roupa da cama. Engomo. Ponho a roupa nova, limpa. Casa de banho. Dois andares de escritórios. Casa de banho geral. Corredores. Escadas para o último andar. Jardim às vezes”. Ufa! Abranda, mete a segunda, e remata: “Tenho muito trabalho aqui”.

Tatiana com o seu BMW amarelo créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Neste momento, é a única com estas funções, mas Tatiana acredita que, quando a Casa for ampliada, vai ser preciso “arranjar mais uma empregada”.

A Câmara Municipal de Lisboa cedeu à Acreditar o edifício que fica ao lado desta primeira Casa, e a associação vai passar a poder acolher 32 famílias em vez das atuais 12. A previsão é de que as obras possam começar já em setembro ou outubro deste ano, revelou Ansfriede Zwaagstra, cofundadora da Acreditar e gestora da Casa de Lisboa, explicando que neste momento só falta o projeto ser aprovado pela autarquia. Idealmente, as novas instalações estarão prontas no final de 2020 ou início de 2021, espera Ansfriede.

Quando perguntámos a Tatiana até quando se vê a trabalhar ali, a resposta chegou rápido: “Até ao fim. Até quando for para a reforma”. “Sinto-me como se fosse a minha casa”, explica, contando-nos que até já os sons conhece ao longe: “Se bate uma porta lá em baixo, já sei que é da cozinha”. “Ah, esta outra é da entrada!”, quando a porta principal se fecha.

De que parte da Casa mais gosta? “Do jardim”, respondeu logo, acrescentando: “Nasci numa aldeia e tínhamos hortas e árvores”.

E qual a tarefa de que gosta mais? E menos? As reações a estas perguntas foram acompanhadas de mais umas gargalhadas irresistíveis.

Quanto à sua tarefa favorita, Tatiana explica que tem que ver com o tamanho da divisão. “Sala das crianças: grande. Refeitório: grande. Salas lá em cima: grandes”. A sua predileta (sala dos fumadores): “Pequenina”.

Já sobre a tarefa de que gosta menos, Tatiana garante: "Ninguém gosta. Ninguém gosta de limpar a casa de banho. Mas limpo”. Com gosto? “Sem gosto!”, desata-se a rir.


Tatiana não foi a única que trouxe gargalhadas para a conversa connosco. Há uma outra pessoa que, contra todas as expectativas, sorriu do princípio ao fim. Clique aqui e leia mais essa história.