Imaginem que estão prestes a ter uma conversa com um rapaz que teve uma leucemia linfoblástica aguda aos quatro anos, fez tratamentos durante mais de três anos, ficou bem, teve uma recaída aos 10 anos, outra aos 14, e aos 16, aos 21, aos 24, e a última aos 27. Um rapaz que está em tratamento pela sexta vez. Agora, fechem os olhos e tentem visualizar a cara, a voz, o olhar, os movimentos deste rapaz.

Seja qual for a imagem que cada um criou, arriscamos dizer que é bem provável que pouco coincida com a descrição da pessoa que se sentou à nossa frente durante uma hora para partilhar a sua experiência com a doença, com a Casa Acreditar de Lisboa e com esta associação de pais e amigos de crianças com cancro.

José Lucas Gomes — ou Lucas, como é normalmente chamado — apareceu, na manhã em que combinamos conversar, com um olhar brilhante, um sorriso doce na cara e uma leveza no andar. Estava a dormir quando chegámos. Trabalha de noite como repositor num supermercado — embora preferisse trabalhar em informática, a sua área de formação — e tinha ido descansar um pouco no Cantinho dos Barnabés. Não vive, nem nunca viveu na Casa Acreditar de Lisboa, mas aquele é um porto de abrigo a que pode recorrer a qualquer momento.

As crianças que lá vivem conhecem-no bem, até porque, como voluntário, Lucas faz desenhos com elas e entretém-nas com jogos. Um dia destes o desenhado foi ele.

Lucas, um dos Barnabés da Acreditar, desenhado por uma das crianças a viver na Casa créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Durante a conversa connosco, Lucas soltou várias gargalhadas, explicou-nos porque se considera um Barnabé “chato”, e, se uma pessoa estivesse distraída, quase acabaria a pensar que afinal passar pela experiência de um cancro não é assim tão pesado. Lucas foi categórico: “Claro que não é fácil!”. O que torna tudo menos difícil, no caso dele, é o facto de já tratar a doença por “tu” e de ter uma boa rede de apoio de familiares, amigos e fé onde vai buscar forças.

Lucas tem 28 anos. Já passaram 24 desde que recebeu o primeiro diagnóstico e outros tantos de confiança de que vai levar a melhor. “Se a doença é teimosa, porque é que eu não posso ser teimoso também e vencer mais uma vez?”, ri-se. “É disso que eu gosto: em vez de frisar a recaída, frisar a luta, aceitar o desafio da doença e vencer”.

A série “Era uma vez na Casa Acreditar”, publicada por ocasião do Dia da Criança, conta a história de seis personagens que têm tanto de imaginário como de real.

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É de Cabo Verde e veio para Portugal aos quatro anos quando recebeu o primeiro diagnóstico. Voltou para lá no fim dos tratamentos e esteve estável durante dois anos. Em 2000, no momento da primeira recaída, voltou para Lisboa e por cá ficou.

"Tirando o primeiro diagnóstico já são seis recaídas. Acabei por me familiarizar com a doença”, descreve Lucas. E a sorrir anuncia: “Neste momento estou em tratamentos, já na fase final. Estou estável. Os valores estão ótimos. Recomenda-se”, ri-se.

Ao longo dos anos tenho vindo a conhecer o meu corpo e acabo por perceber logo que a doença está a voltar, mesmo antes de avançar muito. Normalmente fico com dores intensas nos músculos. Custa-me a movimentar as pernas e os braços. Mal sinto dores fora do vulgar, venho [ao IPO] e os exames acusam logo que é a doença a voltar”, conta com um sorriso de quem já é pró no assunto.

“Sempre que tenho uma recaída, [o processo] é igualzinho à primeira vez. O que, por um lado é bom, mas [a doença] acaba por ser muito rotineira, teimosa”, ri-se. Nas últimas vezes não tem sido necessário internar”, explica Lucas. No início de cada ciclo (de três em três semanas), faz análises, tem uma consulta e vai à quimioterapia, “ao final do dia, para poder conciliar com o trabalho”. A partir daí, vai “fazendo [o tratamento] durante a semana com comprimidos em casa” e leva a vida “normalmente”. Assim, (aparentemente) simples.

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“Há vida para além da dor”. Uma ideia tão curta quanto repetida pelas várias pessoas dentro da Acreditar. Pelo Lucas, que está lá “para mostrar que isso é possível”; pela Ansfriede, cofundadora da Acreditar e gestora da Casa de Lisboa, que, com conhecimento de causa, faz questão de lembrar que “ter uma criança com cancro não é o fim, a vida não para”; e pela Patrícia Luz, coordenadora do núcleo sul da Acreditar, ao dizer docemente que "a vida é tão bonita quanto imperfeita”. “E na sua imperfeição tem doença, tem situações muito dolorosas”, continua.

“O sofrimento, ao mesmo tempo que nos fragiliza, também nos pode engrandecer na nossa humanidade. E esta experiência é o que também me faz ser capaz de estar ao lado”, confidencia, depois de partilhar que, por ter passado por uma doença oncológica de um familiar próximo, tem a capacidade de não se “assustar nem com o sofrimento, nem com a morte. Embora sejam coisas assustadoras”. “Ser capaz de estar, de me aguentar ao lado, sem ter necessidade de aliviar. Estar. Permanecer”, diz com uma profunda tranquilidade e ternura na voz e no olhar.

Patrícia Luz, coordenadora do núcleo sul da Acreditar créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Esta experiência capacitou Patrícia, segundo ela própria, para trabalhar com aqueles que dão de caras com o cancro infantil. Por isso mesmo, uma das principais tarefas da coordenadora do núcleo sul, de que Lisboa faz parte, é fazer a articulação com as famílias no hospital e, muito em particular, acompanhar todo o processo — do diagnóstico ao tratamento, da alta aos cuidados paliativos.

É o chamado apoio emocional, uma das principais vertentes do trabalho da Acreditar. A associação também organiza convívios e workshops, e presta ajuda financeira e material às famílias que mais precisam, apoio alimentar e escolar, e acolhimento nas Casas a quem vem de fora dos centros urbanos onde há hospitais.

“Normalmente, vamos em dupla [elemento da equipa + Barnabé, por exemplo] fazer aquilo a que chamamos o primeiro contacto com a família. Não nos primeiros dias, porque os pais ainda estão a adaptar-se ao que lhes está a acontecer. Cinco, seis dias depois. A Acreditar apresenta-se, explica que está cá para acompanhar em todo o percurso da doença”, descreve Patrícia, que é formada em comunicação e tem um mestrado na área da educação.

“É impressionante ver as famílias. Dizem que sim com a cabeça, mas ainda estão muito atordoadas. Sente-se que quase que não estão a ouvir”. Depois, "entra aquilo que é mais poderoso”. “De repente, quem está ao meu lado diz assim: ‘Olhe, eu também já estive doente quando tinha cinco anos e agora estou aqui, estou bem’”. É o testemunho de um Barnabé. “Naquele segundo, os pais prendem-se absolutamente”, conta. “Fixam os olhos e estão ali inteiramente tipo esponja. O que lhes está a ser dito é uma mensagem muito fortalecedora naquele momento. É dizer: ‘Nós estivemos aí, sabemos o que estão a viver. Esta primeira semana e os tempos que se seguem são duros. Mas é possível ultrapassar isso. Tanto é possível que nós estamos aqui, fortes, unidos’".

Lucas, que faz muitas vezes este papel, não podia estar mais de acordo. “O simples sorriso, a simples mudança no olhar de um pai ou de uma criança acaba por preencher muito mais do que aquilo que levamos”, conta, em tom de gratidão. “Depois de toda a informação médica que recebem, nós somos uma almofada”, diz Lucas, usando a metáfora para descrever o papel de amparo que os Barnabés muitas vezes têm.

Lucas no Cantinho dos Barnabés, na Casa Acreditar de Lisboa créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

“Há pais que querem conversar mais, querem mais informação. Outros só querem o básico. É aceitável”, vai descrevendo Lucas. “Com os adolescentes é mais complicado”, sorri, com ar carinhoso. “Tentamos ir buscar um tema que seja do agrado deles e cativá-los. Nas crianças, toca-me sempre um pouco mais… Têm de passar por aquela dor sem perceberem bem o que estão ali a fazer”, diz, agora com a voz esmorecida.

Patrícia remata o tópico com um convite à busca de novas tonalidades em lugares e tempos que parecem condenados ao preto e branco: “Os hospitais são de facto espaços de muita dor. Mas também são espaços onde acontecem as maiores provas de amor. E os pais têm também essa oportunidade: de beberem uns dos outros grandes grandes provas de amor. De um amor quase sublime, quase para além da medida humana”.

Almofadas para os outros no hospital, heróis entre si no Cantinho dos Barnabés

Lucas nunca recebeu este tipo de apoio emocional, porque o primeiro diagnóstico chegou quando ainda nem havia Barnabés na Acreditar. Só em 2002, enquanto esperava por uma consulta no IPO, já durante a primeira recaída, é que uma pessoa da associação foi falar com ele e com o pai, a perguntar se teria “interesse em participar numa atividade”. Era um retiro no Monte do Sobral, no Alentejo, e havia “passeios a balão e a cavalo”. Foi a primeira vez que Lucas participou numa iniciativa da associação e a experiência, diz ele, “marcou”. A partir daí começou a ser convidado para mais atividades e, há cerca de cinco anos, tornou-se voluntário.

Em 2018, havia na Acreditar 45 Barnabés voluntários. “Um Barnabé é uma criança ou um jovem que passou pela experiência do cancro ou tem contacto com os tratamentos”, explica Lucas. “Em vez de dizer ‘Sou um sobrevivente de cancro’, digo ‘Sou um Barnabé’. É um nome com menos peso”, acredita.

De onde vem o nome, Lucas não sabe. Mas Ansfriede, que faz parte da associação desde o início, explica: “O segundo livro que nós publicámos foi um livro de pintar. É a história de um ursinho que adoece e vai para o hospital fazer tratamentos. É o ursinho Barnabé”.

Ansfriede desconfia que “alguns gostam [do nome] e outros não”. Mas a alternativa seria “o grupo dos sobreviventes”. “Ai! É horrível. Um estigma!”, exclama a gestora, holandesa de “carne e osso” a viver em Portugal há 36 anos.

O papel dos Barnabés tem vindo a consolidar-se ao longo do tempo. Para além de terem momentos lúdicos mais pontuais e convívios alargados, os Barnabés reúnem uma vez por mês. “Tentamos que venha o maior número de Barnabés possível. Normalmente, vêm 15 a 20. Às vezes menos”.

O grupo de Lisboa encontra-se num cantinho da Casa Acreditar, lá na cave, bem encostados ao fundo de uma sala multiúsos. “É um cantinho com um sofá, armários e livros. Como estamos sempre a fazer atividades por lá, acabámos por apelidar de Cantinho dos Barnabés”, conta Lucas.

Aí divertem-se, preparam atividades — para o Dia Internacional da Criança com Cancro (15 de fevereiro), para o Dia do Barnabé (17 de julho), para o Natal — e partilham experiências. Aqueles que tiveram cancro há mais tempo falam dos efeitos a longo prazo da doença e daquilo que se pode fazer para prevenir. Lucas explica que, por exemplo, por causa dos tratamentos, a memória fica afetada, podendo os jovens fazer exercícios para a estimular. Há outros exemplos de dicas de que te lembres?, perguntámos nós. Demora na resposta e diz: “Acho que não. Acho que estou a precisar de trabalhar a memória”, começa-se a rir.

Hoje em dia, os Barnabés fazem também trabalho de advocacia social, através do “Dreaming with Survivors”, um projeto para “identificar as lacunas existentes” e “pensar em soluções e projetos realistas” para os desafios sociais que os Barnabés enfrentam, como explica o site da associação. O trabalho é feito com a sociedade civil e com os legisladores.

“Escolhemos quatro áreas”, diz Lucas, identificando-as: a “criação de um passaporte do doente oncológico, que tenha informações sobre os tratamentos feitos, caso o doente precise de ser assistido”; o seguro de vida, que no caso das pessoas que tiveram cancro é mais difícil de fazer, o que tem implicações, por exemplo, na obtenção de um crédito habitação; o apoio aos cuidadores, que “muitas vezes acabam por perder o emprego” ou para quem “os apoios dados pelo Estado não são suficientes”; e a sensibilização da sociedade.

"Só quem passa pela experiência” é que sabe o que é ser Barnabé, considera Lucas. “Pensa-se que um Barnabé é só a parte da doença e a dor, mas acredito que se aprende a valorizar mais a vida, o que de importante existe”. Para além disso, a troca de experiências entre Barnabés pode ser um trampolim para a recuperação: “Acabei por, no meio destas recaídas, ganhar forças para lutar”, admite Lucas, que dá aos Barnabés o papel de “heróis” uns para os outros.

De Cantinho a Canto, neste “lar longe de casa"

Quando a Casa surgiu, em 2003, “passou a haver reuniões com um maior número de Barnabés por existir um espaço” próprio para se encontrarem.

Agora, com o plano de expansão para o edifício do lado, Lucas sonha que seja possível terem “um canto”. Que “já não seja um cantinho”, diz a rir-se. A visão é de uma Sala dos Barnabés com “uma disposição de móveis que aconchegue, sofá, televisão”. 

Nunca tendo vivido na Casa Acreditar, Lucas conhece-a muito bem. Seja porque lá vai descansar, depois de ir às consultas ou aos tratamentos, seja porque aparece para ajudar na preparação de atividades, na organização de bens doados ou na dinamização de jogos.

Lucas descreve este lugar como um “porto de abrigo” onde todos são bem-vindos. A Casa Acreditar de Lisboa, conclui Lucas, é para muitos um “lar longe de casa”.


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