- Que dia é hoje?

- 17.

- Muito bem. Diz-me, então, várias maneiras de uma conta dar 17.

- 10+7, 18-1…

- Agora com três operações.

E assim seguem. Por dez minutos, “não mais do que isso”, explica Paula Nunes, uma das professoras voluntárias do projeto Aprender Mais.

É um desafio usado como forma de aquecimento das sessões. Chama-se “rotina de cálculo” e, num formato de jogo, leva os alunos a desenvolver o raciocínio. O exercício pode ser feito em qualquer ano de escolaridade — a professora usa-o na sua prática diária também.

Paula tem 54 anos, é professora no 1.º ciclo e adora o que faz. “Mas sempre gostei de fazer qualquer coisa mais do que dar as minhas aulas”, partilha. Foi monitora de campos de férias, contribuiu para os acampamentos dos escuteiros dos filhos, e  agora está na Acreditar porque o projeto a “inspira”.

“Adoro vir aqui e preparar as aulas para os meninos que apoio. Já é o terceiro”. Em rigor é o segundo. Com o primeiro, de seis ou sete anos, nunca chegou a trabalhar: “Tivemos a reunião de preparação, fizemos tudo. E, no dia em que eu vinha [pela primeira vez], recebi um telefonema a dizer que a criança teve alta, o que me deixou muito feliz”.

Desde novembro do ano passado, quando começou o voluntariado na Casa, já deu apoio de matemática a uma criança do 3.º ano e a uma outra de 10 anos que “acabou o 4.º ano e deveria ter iniciado o 5.º, mas não iniciou”, diz.

Quando falámos com Paula, ainda o apoio a esta terceira criança estava a acontecer. Agora, mais um caso de sucesso, a menina teve alta e já não está a viver na Casa. Mas, antes de se ir embora, ainda teve tempo de desenhar o retrato da professora que a acompanhou semanalmente (Paula agora aguarda ser chamada quando mais uma família quiser apoio; até lá não tem ido à Casa e “escapou” ao dia da sessão fotográfica).

As crianças com doenças oncológicas muitas vezes não conseguem ir às aulas, porque têm tratamentos, estão internadas ou estão demasiado debilitadas. Sendo a educação um pilar organizador na vida dos mais novos, nos hospitais de oncologia pediátrica foram criadas escolas, para que as crianças possam “continuar a potenciar as suas aprendizagens e competências”, explica a Acreditar.

As escolas dentro dos hospitais, que funcionam com educadores e professores lá colocados pelo Ministério da Educação, trabalham em articulação com os estabelecimentos de ensino de onde as crianças vêm: seguem a matéria dada pelos professores dessas escolas e fazem chegar aos alunos os testes que são usados para a avaliação nas suas turmas.

Para complementar esta resposta, a Acreditar criou o Aprender Mais, um projeto para as crianças que estão em tratamento mas não internadas. O projeto funciona com profissionais da área da educação e do desenvolvimento — educadores de infância, professores, psicólogos, educadores sociais ou terapeutas ocupacionais — que dão um apoio individualizado às crianças e jovens, dos três aos 18 anos. Os voluntários tanto podem ir ao domicílio das famílias como deslocar-se às casas da Acreditar, se as crianças lá estiverem hospedadas.

A série “Era uma vez na Casa Acreditar”, publicada por ocasião do Dia da Criança, conta a história de seis personagens que têm tanto de imaginário como de real.

Escolha uma delas para começar e embarque nesta viagem

A todo o gás à boleia do BMW amarelo da Tatiana

Bem-vindo, bebé-recorde!

Uma viagem no tempo no balão da professora Paula

Ansfriede, uma espécie de regadora de sementes que fazem “puff” e se transformam em livros e casas

Quando os Barnabés se juntam, é uma festa de almofadas. Ali, o Lucas é “chato” e isso é bom

O Livro Que Nunca Dorme. E os segredos que Isabel lá guarda

O Aprender Mais não substitui a escola nem tem validade formal em termos letivos, mas, “enquanto a criança não pode ir às aulas, tem um apoio que a vai ajudar a não estar tão em branco quando ela regressar. Ajuda a estar com as matérias presentes e com ideias trabalhadas”, esclarece Paula.

Um balão que voa livre e sem horas

Tal como um balão vai dançando pelo ar ao sabor do vento, também as aulas de Paula respeitam o ritmo, a energia e o perfil da criança que a professora tem à frente.

Dentro daquele balão tudo é válido. Há dias em que a viagem passa por soprar para longe a sessão que foi preparada e ter uma conversa inspiradora sobre um tema que a criança viu na televisão. Noutros dias, o passeio de balão convida a olhar para a paisagem. Aconteceu uma vez em que a aula era sobre sólidos geométricos e a criança não estava a perceber bem o que Paula dizia. “Viemos aqui à janela e começámos a ver os sinais de trânsito, os edifícios, as árvores. Não estamos habituados a andar na rua e a pensar ‘Espera aí, isto tem tudo que ver com geometria’. Acaba por levar a criança à descoberta”, conta Paula, acrescentando que procura levar “propostas de trabalho que sejam motivadoras, senão é uma seca”.

Dentro do balão também não há relógios. Se a criança tiver energia e motivação, dá-se ar e estica-se uma sessão de uma hora para o dobro. “Venho à hora marcada, mas saio sem hora, sem pressas”, diz a voluntária.

Por outro lado, se a criança não está bem por algum motivo, vai ter com a professora — tratam-na por “tu” — e diz: “Vou mesmo ter de ir descansar. Hoje não estou bem”. Já aconteceu. Nesse dia quem entrou no balão foi a mãe da criança. “Esteve a falar um bocadinho da vida”, lembra Paula. A perceção da professora é de que estas famílias “estão cheias de energia”. “Recebem-me sempre com um sorriso. São pessoas muito agradecidas. Dizem: ‘Obrigada por vir ajudar a minha filha. Apetece-me abraçá-la’”. E abraçam? “Abraçam, abraçam”, sorri Paula.

“Venho cheia de vontade e saio daqui sempre revitalizada, com um balão de oxigénio novo”, o sorriso abre-se cada vez mais.

Não é só para Paula que as sessões são um momento reparador. “Quando as crianças estão comigo não é tempo de doença, é outro tempo”, repete várias vezes a professora. “É um momento em que alguém vem falar de outras coisas, que lhes são familiares e de que acho que a maioria deles gosta. Alguém que vem aqui para trabalhar conteúdos que nada têm que ver com a doença delas e é completamente exterior a tudo isto”.

Nunca falam sobre a doença? “Não. Nunca. Se quiserem falar, eu estou cá para ouvir. Mas eles não falam”, afirma Paula. “Quando muito deixam escapar tenuemente algumas informações simples: ‘Hoje estou um bocadinho a tremer, comecei uma medicação nova’ ou ‘Estou muito cansada porque tive duas consultas e ainda estive a falar com a psicóloga. Foi uma manhã difícil’. É mais aquele desabafo pequenino, mas não vai além disso”.

As aulas acontecem numa das divisões que ficam no primeiro andar da Casa. Pela janela, para o bem e para o mal, vê-se do outro lado da rua o IPO — as Casas Acreditar são sempre construídas ao lado dos hospitais de oncologia pediátrica. Professora e criança trabalham na chamada sala dos adultos. “As pessoas são super queridas e quando percebem que vou dar apoio não se importam de sair para que a sala fique disponível”, explica Paula.

Mas quando a Casa for ampliada — a correr tudo bem, as obras no edifício do lado começam no final deste ano — talvez passe a haver um espaço próprio para as sessões deste projeto. Se se reservar “uma sala só para este fim, pode haver um cantinho onde os meninos expõem os trabalhos que fazem” ou onde podem deixar ficar "alguns materiais”, antecipa Paula.

O que trazem os voluntários que faz a diferença? O que levam que não tinham antes?

“Quem vem para este projeto tem de vir de alma aberta e com disponibilidade. Tem de vir com vontade de estar e sem medos”, esta é a recomendação de Paula, e a professora parece cumpri-la à risca: “Durante o tempo em que estou aqui, desligo de tudo. Estou de corpo e alma para o menino ou para a menina que eu estiver a apoiar. Não quero saber do que se passa lá fora”.

Sandra Sampaio, também voluntária na Casa Acreditar de Lisboa, neste caso para a dinamização de atividades lúdicas, parece que adivinhava a nossa conversa com Paula. O mais importante, para ela, “é vir de coração aberto e não pensar ‘não me vou ligar muito, porque tenho de me defender'. Não é exequível. Tem de haver uma ligação para podermos ir ao encontro dos meninos. Sem isso não conseguimos fazer bem as coisas. Só vimos marcar presença, mais nada” (Sandra faz parte das pessoas de quem as crianças desenharam um retrato).

Sandra Sampaio, voluntária na Casa Acreditar de Lisboa, desenhada por uma das crianças créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

A passagem pela Casa Acreditar é transformadora para os voluntários. “Já saí daqui com o coração completamente aos pulos de alegria, super feliz por aquilo com que consegui contribuir e com o que eles me deram também a mim. Mas também já saí daqui de rastos. Mesmo. Com sentimentos difíceis de gerir. E a precisar do meu tempo”, partilha Sandra.

No fim, o balanço é positivo: “[Quando me vou embora] levo o amor dos meninos. Sinto mesmo que gostam de mim e de estar comigo, e que eu estou a contribuir para a felicidade deles”.

E a Paula, quando se vai embora, o que é que leva?, perguntámos à professora. “Levo o meu coração cheio de… ai… [suspira]. Nem sei! Saio sempre satisfeita daqui. E rejuvenescida. Os meus filhos dizem: ‘Mãe, faz-te mesmo bem ires à Acreditar. Quando voltas, parece que vens como nova’”. “Acho que foi a melhor coisa que me aconteceu na vida nos últimos tempos!”, remata.


A Paula é hoje uma das peças que dão vida à Casa. Outros, antes de o ser, já o eram. Achou confuso? Perceba a quem nos referimos, clicando aqui para ler mais uma história.

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