Os ingleses consideram-se, com boas razões, a mais antiga democracia europeia. Realmente, pode considerar-se que a vitória do Parlamento contra o Rei Jaime II, em 1688, marca o nascimento dum sistema baseado no poder popular e a negação do direito divino do monarca, cem anos antes da Revolução Francesa de 1789. Claro que esta simplificação ignora muitas peripécias posteriores, tanto no Reino Unido como em França, e a diferença entre as pressuposições aristocráticas inglesas e a igualdade como princípio dos franceses. O facto é que os britânicos sempre acharam que o segredo da sua superioridade no mundo era o sistema parlamentar, razão porque nunca o quiseram exportar... Que dizer, então, da perversão que um referendo questionável está a provocar nas ilhas britânicas?
Como é sobejamente sabido, o referendo foi a razão de existir do UKIP, o partido xenófobo de Nigel Farage, e a bandeira do Partido Conservador, apesar de nem todos os conservadores – a começar pelo Primeiro-ministro, David Cameron – serem contra a saída da União Europeia. Por outro lado, o Partido Trabalhista era a favor da permanência, apesar de alguns dos seus membros – inclusive o Secretário Geral, Jeremy Corbyn – serem pela saída.
Segundo alguns analistas, a questão do Brexit acabou por se tornar uma disputa interna dos conservadores, pois os trabalhistas quase não apareceram no debate. Contudo, se todo o processo que levou ao Brexit parece atabalhoado, tanto pela postura dos políticos como pela confusão dos eleitores, o que se está a passar no pós-Brexit é mais estranho ainda.
O grande vencedor do Brexit, o UKIP, está num beco sem saída. Farage saiu e deixou no seu lugar uma desconhecida sem brilho nem apelo, Diane James. Numa campanha pouco ortodoxa em que procurou não aparecer e recusou ir à televisão, James, que era porta-voz do partido, foi eleita com menos de metade dos votos dos militantes, enquanto as sondagens mostram uma queda de 13% nas preferências de voto no UKIP. Não admira; o partido não tem outras bandeiras a defender e Diane James não parece a pessoa certa para as inventar; diz que vai fiscalizar o cumprimento do Brexit pelos conservadores, o que é pouco para dar alento aos eleitores.
Quanto ao Partido Trabalhista, mostrou-se completamente inútil para a contenda e esfrangalhou-se com a saída de vários membros do Governo Sombra, inconsoláveis com o tempo que Corbyn gastou a desfazer alegações de antissemitismo, uma confusão completamente inútil e desinteressante. Há receios fundados de que nas próximas eleições os trabalhistas quase desapareçam do mapa, já que pouco têm a propor para contrariar o ímpeto criado pelos conservadores.
Com efeito, Theresa May, apesar de ser considerada por muitos observadores como a pessoa mais desinteressante a ocupar o cargo desde Lloyd George (1916-22), tem uma agenda conservadora bem definida, que ninguém parece contrariar (menos os escoceses de Nicola Sturgeon). Para já decidiu investir 25 mil milhões de libras na renovação da frota de submarinos nucleares Trident, e vai avançar com a central atómica de Hinkley, o que custará mais 24 mil milhões. Avisam os especialistas que quando a central estiver pronta, em 2025, já as energias alternativas estarão com um custo que a tornam obsoleta à partida; mas May gosta do nuclear e está disposta a pagar aos franceses e chineses (que farão a construção) 92,5 libras por megawatt/hora, o dobro do atual custo de mercado.
O nuclear é discutível – os alemães, por exemplo, estão dispostos a acabar com as suas centrais até 2022, três anos antes da abertura de Hinkley. Para a Europa continental, que a Grã Bretanha está tão disposta a abandonar, o futuro próximo está nas energias renováveis. Mas o Reino Unido parece voltado para os tempos de Margaret Tatcher.
As diferenças entre a nova Inglaterra e o velho Continente não estão só aí, com certeza. Os conservadores ingleses juram diariamente que o Brexit é irreversível, embora não mostrem qualquer urgência em dar início ao processo, mesmo sabendo que levará anos a concretizar. Os europeus, que gostariam que nunca acontecesse, dizem que estão preparados para iniciar a separação hoje mesmo – palavras de Donald Tusk, Presidente do Conselho Europeu, depois da conferencia de Bratislava, a primeira cimeira europeia a 27, sem o Reino Unido.
Voltando à questão do partido único; segundo o Guardian, o Reino Unido agora são dois países separados, cada um com o seu partido dominante: a Inglaterra, governada pelos conservadores; e a Escócia nas mãos do Partido Nacional Escocês. É verdade que as liberdades continuam em vigor, assim como o primado da Lei; mas o facto é que não existem oposições dignas desse nome. Um dos resultados perversos desta situação é a subida de políticos de menor nível, uma vez que ninguém do outro lado da barricada os contesta. É o caso de Chris Grayling, atual Secretário dos Transportes, que tem uma longa carreira de posições contra o estatuto da mulher, especificamente nas áreas da violência doméstica e violações. Como diz o The Guardian, se existisse um mínimo de oposição no Parlamento Grayling já teria sido despedido há muito. O Independent, por outro lado, vai mais longe e afirma que Cameron já vinha a preparar o domínio absoluto dos conservadores há muito tempo, perante a indiferença dos eleitores.
Quanto aos cidadãos, a única coisa que parece preocupá-los são os imigrantes, como se o seu desaparecimento da paisagem resolvesse todos os problemas de desemprego e degradação do nível de vida. Na verdade, seria o contrário, pois os imigrantes asseguram o funcionamento de muitos setores, inclusive o Serviço Nacional de Saúde. Theresa May, que parece viver noutros tempos, pouco se preocupa com isso. Cada vez mais as ilhas Britânicas se assemelham às distopias previstas pelos seus ilustres cronistas, John Milton (1626), W. G. Wells (1895) ou George Orwell (1949) e apresentadas em filmes como Gattaca, A Ilha e tantos outros, apresentados nos canais por cabo. O futuro já chegou, e só não vê quem não quer.
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