Depois de anos de inquérito, de uma acusação que pela primeira vez prendeu um antigo líder de Governo por corrupção, soube-se hoje que o julgamento da Operação Marquês vai começar no dia 3 de julho. José Sócrates vai ser julgado pela juíza Susana Seca do Juízo Central Criminal de Lisboa, depois de vários recursos, imposição ao Ministério Público e atrasos no julgamento.
O processo arrastou-se desde 2014 e imputava 189 crimes a 28 arguidos, num processo de suspeitas de corrupção, branqueamento de capitais e fraude fiscal que envolviam, não só o Governo e o Estado, pela alegada participação de um ex-primeiro-ministro, mas grupos de construção civil, o maior banco português na altura, o BES, uma das empresas nacionais de maior dimensão, a Portugal Telecom, entre outros.
O nome "Marquês" vem do nome do empreendimento de luxo que Sócrates possuía em nome de uma empresa, que teria sido adquirido com dinheiro proveniente de atividades ilícitas. A principal acusação contra José Sócrates era de que teria recebido subornos de empresários em troca de favores políticos, como a aprovação de projetos ou a intervenção em contratos públicos.
A investigação revelou que o ex-primeiro-ministro possuía uma rede complexa de empresas em Portugal e contas bancárias no estrangeiro, que alegadamente serviam para ocultar a origem ilícita dos recursos e as entradas de dinheiro que ficavam por justificar.
Foi preso em novembro de 2014 pelo Tribunal Central de Instrução Criminal, mas libertado em 2015. O momento mais marcante foi a decisão instrutória, que deitou por terra a acusação do Ministério Público e arquivou o processo, em 2021. O responsável é Ivo Rosa, acusado de “candura e ingenuidade”
Uma decisão de janeiro de 2024 do Tribunal da Relação voltaria a devolver à vida a acusação inicial, recuperando-a quase na íntegra, mas só no final do ano o processo seria enviado para julgamento, ultrapassada uma última bateria de recursos pendentes que o poderiam evitar.
A demora para marcar uma data para o início de julgamento motivou críticas à justiça, e da justiça, à morosidade que sucessivos recursos podem impor, com pedidos de reflexão e propostas de alteração. Pôs também em causa a fiabilidade do Ministério Público e do escrutínio feito ao Parlamento, levantando dúvidas que permanecem até hoje, ano da queda do Governo por falta de confiança.
Perceber a Operação Marquês em 10 pontos:
1. A investigação
A 21 de novembro de 2014 o antigo primeiro-ministro José Sócrates é detido no aeroporto de Lisboa quando regressava de Paris. A situação, inédita em Portugal, tinha por base suspeitas de crimes de corrupção, fraude fiscal, branqueamento de capitais, confirmadas pela Procuradoria-Geral da República (PGR) nesse mesmo dia, em comunicado, no qual anunciou o inquérito da Operação Marquês, dirigido pelo Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP).
Entre os arguidos também detidos estavam o amigo de José Sócrates e uma das figuras centrais do processo, Carlos Santos Silva, e o motorista do ex-governante, João Perna.
2. Um ex-primeiro-ministro em prisão preventiva
Após dois dias de interrogatório pelo então juiz de instrução criminal Carlos Alexandre, em 24 de novembro o magistrado decretou a prisão preventiva de José Sócrates. Foi encaminhado para o estabelecimento prisional de Évora, onde ficou cerca de nove meses e onde recebeu visitas, entre outros, do antigo Presidente da República Mário Soares e do ex-líder socialista e ex-primeiro-ministro António Costa.
José Sócrates foi colocado em prisão domiciliária no dia 4 de setembro de 2015 e libertado um mês depois, a 16 de outubro.
3. Um longo inquérito, uma longa contestação
Foram sucessivamente adiados os prazos fixados pelo Ministério Público para concluir o inquérito. O inquérito tutelado pelo DCIAP, então liderado por Amadeu Guerra, teve várias datas de conclusão anunciadas e vários anúncios de prolongamento, que levaram José Sócrates a contestar a legalidade dessas decisões.
A defesa de José Sócrates, que acabaria por se tornar uma das marcas do processo, começou ainda na fase de inquérito.
Contestou a atuação do Ministério Público, processou o Estado por violação de prazos legais e questionou a imparcialidade do juiz de instrução Carlos Alexandre, alvo de um pedido de afastamento da defesa do antigo governante, rejeitado pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
Em causa estava uma entrevista do magistrado à SIC, na qual fez comentários que José Sócrates considerou reveladores de parcialidade.
4. O adensar do processo
Mais de dois anos depois da investigação ser revelada continuavam a ser constituídos arguidos. Em janeiro de 2017 foi a vez de Ricardo Salgado, antigo presidente do Banco Espírito Santo (BES), ser interrogado em tribunal, ficando proibido de se ausentar para o estrangeiro e de contactar outros arguidos.
Seguiu-se Rui Horta e Costa, por suspeitas relacionadas com o empreendimento imobiliário de luxo Vale do Lobo, no Algarve, que envolviam também o ex-ministro Armando Vara, igualmente arguido e que cumpriu prisão preventiva.
Seguiram-se ainda Zeinal Bava e Henrique Granadeiro, administradores da Portugal Telecom.
5. A acusação
Em 11 de outubro de 2017 é conhecida a acusação do Ministério Público, que acusa 28 arguidos de 189 crimes. José Sócrates foi acusado de 31 crimes económicos-financeiros: três de corrupção passiva de titular de cargo político, 16 de branqueamento de capitais, nove de falsificação de documentos e três de fraude fiscal qualificada.
O Ministério Público acusou Sócrates de usar o seu cargo de primeiro-ministro para beneficiar o Grupo Lena e Carlos Santos Silva, de intermediar os contactos do ex-governante com o grupo de construção, servindo ainda como “testa de ferro” para pagamentos que tinham como destinatário o ex-chefe de Governo.
A acusação exigia ainda o pagamento de uma indemnização ao Estado no valor de 58 milhões de euros, a pagar pelos principais arguidos, entre os quais Sócrates, Carlos Santos Silva, Armando Vara, Ricardo Salgado, Zeinal Bava e Henrique Granadeiro.
6. A instrução
No final de janeiro de 2019 arrancou a fase de instrução da Operação Marquês, pedida por 19 dos 28 arguidos e liderada pelo juiz Ivo Rosa.
Terminou a 9 de abril de 2021, com a leitura da decisão instrutória, no momento mais mediático de sempre da justiça em Portugal, com transmissão em direto nas televisões de imagens da sala de audiências.
7. A decisão instrutória que deixou o Ministério Público de mãos na cabeça
Ivo Rosa ilibou José Sócrates dos crimes de corrupção e o procurador Rosário Teixeira, titular do inquérito, não conseguiu evitar levar as mãos à cabeça enquanto o magistrado lia a decisão instrutória. Ivo Rosa deitou por terra a maioria das imputações constantes na acusação e dos mais de 180 crimes apontados pelo Ministério Público apenas 17 seguiram para julgamento.
José Sócrates e Santos Silva foram pronunciados por três crimes de branqueamento de capitais e três crimes de falsificação de documento, em coautoria. Ricardo Salgado foi pronunciado por abuso de confiança relacionado com transferência de mais de 10 milhões de euros, factos que levariam à sua condenação num processo autonomizado.
Armando Vara foi pronunciado por branqueamento de capitais. Ivo Rosa ilibou Zeinal Bava e Henrique Granadeiro.
8. As acusações que sobreviveram e o que vai a julgamento em julho
Dos 189 crimes da acusação original do Ministério Público (MP) sobreviveram 17 na decisão instrutória do juiz Ivo Rosa, que deixou cair todos os crimes de corrupção, a acusação mais grave que recaía sobre os arguidos, classificando, por vezes, o trabalho liderado pelo procurador Rosário Teixeira como “delirante” e uma “fantasia”.
O universo de arguidos – 19 pessoas individuais e nove empresas – ficou reduzido ao ex-primeiro-ministro José Sócrates, ao seu amigo e empresário Carlos Santos Silva, ao ex-ministro Armando Vara, ao antigo banqueiro Ricardo Salgado e ao antigo motorista de Sócrates, João Perna.
O antigo chefe de Governo foi pronunciado por três crimes de falsificação de documento e três de branqueamento de capitais, estando em causa verbas de 1,72 milhões de euros entregues por Carlos Santos Silva, o empresário e alegado testa-de-ferro, a Sócrates, e que responderá em coautoria pelos mesmos crimes.
Sócrates foi acusado pelo MP de um total de 31 crimes, incluindo de corrupção passiva de titular de cargo político, branqueamento de capitais, falsificação de documento e fraude fiscal qualificada. Destes, só aqueles seis crimes se mantiveram.
9. O imbróglio jurídico que a decisão instrutória de Ivo Rosa criou
Como esperado, o MP avançou com um recurso para o Tribunal da Relação, a contestar a decisão de Ivo Rosa que quase reduziu a pó uma acusação que levou praticamente sete anos a ser concluída.
O inusitado jurídico, no entanto, resultou da reação das defesas ao que estas consideraram ser uma alteração substancial dos factos, acabando alguns arguidos, incluindo José Sócrates, a alegar que foram pronunciados por crimes que não constavam da acusação.
Ou seja, os arguidos apresentaram uma nova acusação contra a decisão proferida contra Ivo Rosa,que refere uma alteração substancial dos factos.
Em janeiro de 2024, o coletivo de desembargadoras da Relação de Lisboa deu razão ao recurso do Ministério Público e recuperou quase na íntegra a acusação que Ivo Rosa não tinha validado.
A decisão enviou para julgamento 22 arguidos por 118 crimes, dos 28 arguidos e 189 crimes iniciais.
José Sócrates foi acusado de 22 crimes: três de corrupção, 13 de branqueamento de capitais e seis de fraude fiscal. Armando Vara, Ricardo Salgado, e também Zeinal Bava e Henrique Granadeiro viram recuperadas as imputações de corrupção.
Inconformado, José Sócrates anunciou um novo recurso, para o Supremo Tribunal de Justiça. A Relação de Lisboa deu razão a Sócrates e anulou a decisão de Ivo Rosa.
10. O julgamento
Em dezembro de 2024, a Relação de Lisboa decidiu remeter o processo para julgamento, pondo fim ao arrastar do processo, com sucessivos recursos de Sócrates e tentativas de indemnização.
O ex-primeiro-ministro foi acusado pelos tribunais superiores por mais do que uma vez de, com recurso após recurso, atrasar a tramitação do processo, “manobras dilatórias” para evitar o seu próprio julgamento que os juízes não quiseram deixar passar em claro.
Em 2018, a defesa de Sócrates acusou o MP e mentir sobre a gravação do interrogatório no ano anterior. Pôs assim em causa a legalidade da divulgação de imagens de interrogatórios do processo Operação Marquês e limitou os áudios das escutas do ex-primeiro-ministro à defesa,
José Paulo Pinto de Sousa, primo do antigo governante e também arguido no processo, contestou a legalidade do coletivo de desembargadoras que tomou essa decisão, apontando que, por terem sido colocadas noutros tribunais da Relação no movimento anual de juízes, estavam impedidas de integrar o coletivo e tomar a decisão que tomaram em janeiro de 2024.
Numa decisão em final de janeiro de 2025, a juíza Susana Seca, que vai presidir o coletivo, declarou urgência na tramitação do processo e marcou para a manhã de hoje uma reunião com as defesas para decidir a data de arranque do julgamento, que agora se sabe ser 3 de julho.
Quando se iniciar, será já uma década depois de ter sido conhecida a investigação que pela primeira vez em Portugal vai sentar um ex-primeiro-ministro no banco dos réus.
*Com Lusa
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