“O que era mau em março, é agora pior”, segundo Tess Ingram, em entrevista à agência Lusa a partir de Nova Iorque, seis meses após ter feito um alerta para as “condições terríveis” enfrentadas pela população do território palestiniano desde o início da ofensiva israelita em grande escala, em outubro de 2023, e que se têm agravado de forma contínua desde então.

A situação atual, diz a porta-voz do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), está “para além do ponto de rutura”, por conta de “contínuos ataques a abrigos e escolas, repetidas ordens de evacuação que obrigam as pessoas a fugir”, e do aumento de crianças em risco de subnutrição e diminuição de ajuda, a par da ameaça de doenças potencialmente mortais como a poliomielite.

No início de setembro, as condições de vida dos habitantes da Faixa de Gaza são cada vez piores, “o que é incompreensível” porque já eram muito más anteriormente, “e são as crianças e as suas famílias que pagam o preço disso”.

Apesar das pausas humanitárias temporárias para permitir a vacinação segura de mais de 640 mil crianças abaixo dos 10 anos contra a poliomielite — uma campanha que emergiu como “uma das poucas coisas positivas” desde o início do conflito entre Israel e o movimento islamita palestiniano Hamas -, a lista de assuntos que inquietam a Unicef no território é longa.

Além da poliomielite, que eclodiu num ambiente de falta de saneamento e acesso a água potável e colapso do sistema de saúde, várias outras doenças colocam em risco os menores do enclave palestiniano.

A antiga jornalista australiana e atual porta-voz nas Nações Unidas, que conta regressar em breve ao enclave, aponta a diarreia aquosa aguda, que “muitas pessoas não consideram uma ameaça, mas é, na verdade, muito perigosa e a segunda causa de morte em crianças pequenas”, sendo o número de casos na Faixa de Gaza “bastante elevado e estando a aumentar de forma constante” nos últimos meses.

“Com as infeções respiratórias passa-se o mesmo”, prossegue, relatando crianças a tossir e a sentir dificuldades em respirar devido às concentrações nos centros de deslocados, uma condição enfrentada pelo menos uma vez por cerca de 1,9 milhões de pessoas, de acordo com as Nações Unidas, ou seja, quase todos os habitantes do pequeno território, que já tinha uma das maiores densidades populacionais do mundo.

Na última vez que visitou o território, em abril, Tess Ingram ouviu também queixas dos médicos sobre o número de casos de Hepatite A e sua incapacidade para os tratar adequadamente, tal como os episódios de doenças da pele e infeções cutâneas, incluindo a sarna, e bacterianas, que também registam uma subida.

Os pais, relata, procuram alternativas não clínicas, como aplicar água fervida e limão na pele dos filhos, “mas não resulta”, levando a que a falta de cuidados médicos crie condições para que esta e uma série de outras doenças se disseminem e, uma vez associadas à subnutrição e desidratação, “agravam os problemas de saúde e colocam as crianças em risco de morte”.

A ameaça de poliomielite é um exemplo do que não deveria estar a acontecer e “ilustrativa de quão terrível é a situação em Gaza”, na medida que se trata de uma doença que está erradicada na maior parte do mundo, e que não registava um único caso no território há 25 anos, e “agora emergiu dos esgotos e debaixo dos escombros” deixados pela guerra.

“Eu própria vi isso em Gaza: há esgotos abertos, o que aumenta a propagação de doenças e vírus como a poliomielite”, segundo Tess Ingram, num cenário de destruição do sistema de saneamento e falta de acesso a água potável, incluindo nos centros de deslocados.

Por outro lado, “o conflito dizimou todos os três sistemas de saúde, que têm estado a ser atacados”, observa a porta-voz, referindo-se aos hospitais atingidos, aos profissionais clínicos mortos e à falta de permissão de acesso de entrada de material médico.

Além disso, a cobertura imunitária das crianças e de vacinação “diminuíram durante o conflito, porque os programas de rotina foram interrompidos, com uma quebra de imunização que, antes da guerra, atingia 99%, “o que era maravilhoso”, para os atuais 89%, e é esse súbito agravamento que se está a tentar agora corrigir com a campanha em curso.

Quando à guerra na Faixa de Gaza, continua sem perspetivas para o seu final e as partes mantêm o impasse nas negociações, o cenário pós-conflito parece bastante sombrio, aos olhos da Unicef, atendendo à quantidade de menores que enfrentam traumas e distúrbios mentais.

“A Unicef estima que cada criança da Faixa de Gaza, ou seja, 1,1 milhões de crianças, necessita de algum tipo de apoio em saúde mental ou psicossocial”, segundo Tess Ingram, devido ao nível de violência a que todas foram submetidas, desde órfãos a casos em que os menores conservam as suas famílias, mas com a existência de ferimentos e traumas.

“O grau do que as crianças experimentaram varia”, comenta a porta-voz, e a ajuda que será necessária terá de se ajustar, uma vez que o conflito prossegue e “as crianças continuam a sofrer traumas repetidos todos os dias”, por força da exposição forçada aos bombardeamentos e combates.

“Até que as armas se calem e possamos permitir que as crianças se sintam suficientemente seguras para falar sobre o que sentem e o que viveram, é muito difícil sabermos quais serão os impactos a longo prazo”, observa, sendo, em qualquer circunstância, expectável que sejam muito elevados.

O planeamento da resposta para o “dia seguinte” já começou entre as agências das Nações Unidas, com base numa previsão de grande escala, não só para as crianças, mas também para os seus cuidadores, como os pais e professores.

“Mas como é que isso vai ser e qual será a escala dessa resposta, não saberemos até que haja um cessar-fogo”, conclui a porta-voz.

*Por Henrique Botequilha, da agência Lusa