O Bairro da Cruz Vermelha, onde moram, vai ser demolido, e a Câmara Municipal de Lisboa vai realojar a maioria em Santa Clara. O processo atrasou-se mais de um ano e as chaves das casas novas ainda não foram entregues, mas as cartas com os valores das rendas começaram a chegar na semana passada e há aumentos de quase 200 euros mensais.

Jackeline é moradora e a sua história ilustra bem a situação. Atualmente paga uma renda mensal de 77,27€ e vai passar a pagar 273,15 euros, mais 195,88 euros por mês. A primeira coisa que pensou quando recebeu a carta foi: "Uau, ganhei o Euromilhões e ninguém me avisou".

A subida não será feita toda de uma vez; no primeiro ano, pagará 142,56 euros, no segundo, 207,84 euros e, a partir de então, 273,15 euros. Ainda assim, garante, não tem dinheiro.

"Não me venham tirar o chão depois de eu ter conseguido alguma estabilidade" Jackeline

"Não me importava de pagar os 142,56 euros de renda definitivamente, mas ficar a pagar quase mais 200 euros não posso. Se pudesse dispor desse valor mensalmente, não me sujeitava a viver num bairro social. Sou efetiva no meu emprego e tentaria comprar uma casa onde bem entendesse, algo que futuramente seria meu, património da família", diz. 

"A minha filha mais velha saiu do agregado familiar, porque conseguiu um crédito bancário para comprar casa, e, por um apartamento com dois quartos, não paga 200 euros de renda ao banco. Eu, que vivo num bairro social, com todos os constrangimentos que sabemos que existem — e passamos por eles diariamente — vou pagar uma renda de 273,15 euros, porque a Gebalis faz-me uma brincadeira destas", conta.

"Não fui eu que pedi para mudar de casa", argumenta Jackeline. "Estou muito bem onde estou. A minha casa só tinha dois quartos e tive de fazer um terceiro quarto na marquise, porque na altura tinha duas meninas e um rapaz. Neste momento, tenho a menina num quarto e o rapaz na marquise que transformei. Estou bem acomodada, porque arranjei condições para isso, fiz obras, demoli a cozinha, demoli a casa de banho... Se me dizem que é para mudar, nós mudamos, mas não me venham tirar o chão depois de eu ter conseguido alguma estabilidade", remata a moradora.

Jackeline tem 42 anos e é assistente social. Logo que recebeu a carta, enviou um email à câmara a expor a situação: vive em Lisboa, trabalha em Sintra e tem um ordenado bruto de 970 euros, traz para casa mensalmente perto de 750 euros. "Referi detalhadamente todas as minhas despesas mensais, as dificuldades que tenho atualmente para pagar essas despesas e a renda de 77,27 euros. Responderam-me nua e cruamente que se basearam nos rendimentos que eu apresentei".

"Onde está o conceito de apoio, de renda apoiada? Apoiada na desgraça, só pode" Jackeline

Já nem se lembra ao certo a que ano se referem os rendimentos que serviram de base às contas, "tantas vezes a Gebalis me pediu papéis". O que sabe é que a sua situação atual não é a mesma de há um ou dois anos: "A minha filha tem 20 anos, estava a estudar até junho de 2021. Agora não estuda nem trabalha, já fui inscrevê-la no centro de emprego. O meu marido, que na altura do confinamento estava a trabalhar, passou a fazer algumas horas aqui e acolá por conta própria, porque ele é porteiro e segurança numa discoteca, mas a entidade patronal com quem tinha contrato não voltou a chamá-lo quando recomeçaram as atividades. Também vai inscrever-se no centro de emprego. O meu filho de 23 anos, que estava desempregado, arranjou trabalho, mas decidiu voltar a estudar, entrou na faculdade há menos de um mês", descreve. "O único rendimento que entra nesta casa é o meu". Mas, remata, "mesmo que de hoje para amanhã a minha filha comece a trabalhar, não quero que ela trabalhe para pagar a renda. Ela tem de trabalhar para organizar a vida dela e ir embora, é para isso que está com os pais, para conseguir alguma estabilidade para se tornarem independente. E a Gebalis está a tirar-me a oportunidade de ajudar os meus filhos".

"Não é para isso que servem as casas camarárias, não é para isso que serve o apoio do Estado", desabafa Jackeline. "Não é para quando as pessoas já têm uma certa estabilidade lhes virem tirar o tapete, pelo amor de Deus. Esta não é a leitura que faço de um apoio social. Onde está o conceito de apoio, de renda apoiada? Apoiada na desgraça, só pode".

Esta moradora está longe de ser a única a tecer críticas à empresa pública que faz a gestão do arrendamento da habitação municipal de Lisboa. Gabriela também recebeu a carta. "Não sei qual o critério que estão a utilizar; uma pessoa vai ter uma casa muito mais pequena — vivo num T2 e vão dar-me um T1 — e ainda por cima aumentam-nos a renda".

Gabriela e o marido são ambos reformados. Ela tem 65, ele 73 anos. Pagam atualmente 119,50 euros de renda, vão passar a pagar 254,30, quase mais 135 euros por mês. Uma vez mais, o aumento será faseado: 164,43 euros no primeiro ano, 209,36 euros no segundo e 254,30 euros a partir do terceiro.

As reformas que recebem, no entanto, estão longe de aumentar na mesma proporção. Gabriela tem uma reforma de 315 euros e uma carreira contributiva de 39 anos. "Fui penalizada pela idade, porque não tinha anos de caixa. A loja onde eu trabalhava fechou e vim para casa com um acordo. Mas ainda estive dois anos no fundo de desemprego. Já com 58 ou 59 anos, sempre a trabalhar numa sapataria (sapatos e malas), ninguém me dava emprego. Fui aconselhada a ir para a reforma e foi o que fiz. Atribuíram-me uma reforma de 196 euros. Reclamei, sabia que tinha mais dez anos de trabalho, e lá consegui descobrir os papéis e contaram-me mais nove anos de descontos, fiquei com uma reforma de perto de 268 euros".

Para já, Gabriela vai pedir uma reunião com a Gebalis para saber "o que há a fazer. Este valor não pago", confessa. É que, além de tudo, "o meu marido é doente oncológico, tem medicação. Eu também tenho problemas de vesícula, tenho diabetes — com a velhice aparece tudo —, tenho de fazer uma alimentação especial. Mas como?", queixa-se a inquilina. "Tinham dito que para as pessoas acima dos 65 anos as rendas iriam aumentar muito menos. Mas não é só a minha, há quem vá ficar a pagar mais de 400 euros".

Os casos relatados ao SAPO24 multiplicam-se e muitos moradores acreditam que, para pagar rendas tão elevadas, valia mais pedir um empréstimo bancário e ficar a pagar uma mensalidade menor, mas, no fim, ter uma casa em nome próprio.

Despesas e mais despesas 

A Gebalis admite que existem "aumentos significativos" das rendas, mas escuda-se na lei. A situação só poderá ser alvo de revisão, diz a empresa pública, caso se verifiquem "falhas nos procedimentos à luz dos regulamentos e procedimentos em vigor".

"Ainda que não tivesse existido um processo de realojamento, existiria sempre atualização dos valores de renda aplicados" Gebalis

Segundo a Gebalis, os cálculos foram realizados "observando o disposto na Lei do Regime do Arrendamento Apoiado (Lei 81/2014)" e "com base na documentação entregue pelos agregados". Além do mais, "ainda que não tivesse existido um processo de realojamento, de acordo com a lei "a reavaliação pelo senhorio das circunstâncias que determinam o valor da renda realiza-se, no mínimo, a cada três anos", pelo que existiria sempre atualização dos valores de renda aplicados, tal como para todos os arrendatários em habitação pública do país".

De acordo com dois exemplos dados pela empresa municipal, um inquilino poderá mesmo ficar a pagar mais 328 euros por mês, embora a aplicação seja faseada até ao terceiro ano, além de que "os agregados poderão solicitar a revisão ou atualização da renda por alteração da sua condição económica ou do agregado familiar".

Por outro lado, diz a Gebalis, "os aumentos dos valores de renda registados devem-se à ausência de atualização das taxas de ocupação (a maioria dos casos desde a atribuição da habitação)", em 1984.

Os inquilinos não conseguem compreender os aumentos e nem sempre pagaram estes valores. Gabriela lembra-se de pagar menos de 40 euros euros de renda. Além disso, recorda, a par da subida das rendas, por causa da mudança os moradores terão de arcar com outras despesas. "As nossas mobilias não cabem nas casas novas", diz. 

Esta é uma queixa que já antes tinha sido feita por moradores do Bairro da Cruz Vermelha: as divisões das novas casas são muito mais pequenas e há moradores a quem foi atribuída tipologia inferior à atual.

Jorge é um desses casos. Mas a carta com aumento das rendas ainda não chegou, nem isso nem a informação sobre a casa que, finalmente, lhe calhará em sorte. "Estou à espera que me atribuam a tipologia do apartamento, que ainda não sei qual vai ser. Queriam atribuir-me um T1 e eu disse que não aceitava, uma vez que vivo num T2", explica.

Jackeline sabe que ficará num T3 e já tem até a morada nova. "Numa das reuniões que convocou, a Gebalis mostrou no mapa a casa que me foi atribuída. Inclusive, na carta que recebi vem a morada, toda pomposa, a dizer Alta de Lisboa". E confirma, como os restantes inquilinos, que "as dimensões são minúsculas. Não vou poder levar as mobílias que tenho para a casa nova, porque não cabem. Tenho uma sala de jantar e uma sala de estar, mas para onde vou tenho de escolher entre uma coisa e outra, ou ponho o sofá ou ponho mesa e cadeiras. A minha mobília de quarto também não cabe na casa nova, nem a do meu filho que está numa marquise transformada. Vamos ter, é um facto, um terraço maravilhoso, mas eu não vou viver no terraço, vou viver dentro de casa", afirma.

Novo Bairro da Cruz Vermelha
Novo Bairro da Cruz Vermelha créditos: Rita Sousa Vieira | MadreMedia

Gabriela lembra ainda que a casa tem especificidades que obrigam a mais despesa, com um fogão "onde as nossas panelas não servem (a indução ou lá o que é), cada panela custa 40 euros e uma frigideira custa 30 euros. O chão é pintado, também precisa de cuidados especiais" e nas paredes também não é possível usar qualquer material, dizem-nos. "Isto tem cabimento? Não tem", indigna-se Gabriela. E deixa a pergunta no ar: "Acha que com esta idade vamos estar a comprar mobílias?"

Apesar de ainda não saber que renda ficará a pagar, Jorge já está a imaginar o que aí vem. "Ninguém pediu para sair das casas que habitamos desde há 37 anos. A Gebalis não gastou um cêntimo em obras, fomos nós que tivemos de fazer todas as obras e agora tiram-nos dali porque querem e metem-nos a mão ao bolso à vontade deles? Tem de haver solução intermédia", considera. "Faço agora 70 anos, se me aplicarem uma renda de 400 euros o que vou fazer à minha vida? E isto são rendas sociais, rendas apoiadas. Na periferia de Lisboa, e pelo privado, arranjo T2 por 400 ou 450 euros, mesmo que com menos condições".

Comprar a casa, e apesar de no Bairro da Cruz Vermelha existirem proprietários, não é uma solução possível: "Não poderá ser uma alternativa, dado que a construção do novo bairro é financiada pelo Programa 1.º Direito, estando impedida a sua alienação", diz a Gebalis.

Resta aos inquilinos unirem-se e, eventualmente, como sugere Jorge, contratarem um advogado para tentar alterar o rumo das coisas. "Eles foram espertos", diz um dos moradores que prefere não ser identificado, "primeiro fizeram-nos assinar uma declaração de aceitação de fogo, onde constava o nome de rua e a fracção para onde vamos, e só agora nos dizem o valor da renda que vamos ficar a pagar. Uma vigarice".

A Gebalis disse ao SAPO24 que "está agendado um encontro com os moradores do Bairro da Cruz Vermelha", mas nenhum dos inquilinos com quem falámos foi informado desta reunião.

A decisão de realojar os moradores do Bairro da Cruz Vermelha, uma iniciativa dos então vereadores Paula Marques e Manuel Salgado, foi tomada em 2017, por se tratar de "um espaço público degradado e descaracterizado, apresentando os edifícios graves patologias construtivas, incluindo degradação de zonas estruturais e deterioração das áreas comuns. As referidas patologias do edificado, associadas aos problemas profundos de segurança, relacionados com a criminalidade existente no bairro, têm ditado o isolamento desta área urbana, condicionando o bem-estar dos moradores do bairro e frustrando o propósito de equidade e integração social das famílias ali residentes, subjacente à missão de alojamento social prosseguida pelo município", lê-se no 5.º suplemento do boletim municipal n.º 1224.

Já em 2018 foi iniciado o processo que implica a "demolição integral daquele Bairro e realojamento das famílias noutros imóveis" para "pôr termo à situação de isolamento e insegurança que atualmente ali se vive".

O Bairro Municipal da Cruz Vermelha, situado na freguesia do Lumiar, compreende um conjunto de 140 fogos de habitação social e aloja 296 pessoas, de acordo com um relatório da Gebalis. Grande parte destes moradores deverá agora passar para o Bairro Alta de Lisboa, na freguesia vizinha de Santa Clara.

Inicialmente, previa-se que o processo estivesse concluído em 600 dias, por 11,572 milhões de euros. No entanto, só agora, quase dois anos depois da data esperada, se prevê "para breve a entrega das primeiras chaves às famílias e assinatura dos contratos de arrendamento cujos processos administrativos de realojamento estão concluídos", adianta a Gebalis. Isto, apesar de o anterior presidente da CML, Fernando Medida, ter feito uma cerimónia pública de entrega de chaves no verão passado.