O jornalista e ativista dos direitos humanos angolano Rafael Marques defendeu este sábado que escreve sobre a realidade de Angola, porque lhe provoca "tal indignação que o medo se torna irrelevante", além de que "o silêncio não salva ninguém".
"Eu devo dizer que a realidade que tenho vivido, aquilo que tenho testemunhado, tem-me causado tal indignação que o medo passa a ser irrelevante", disse Rafael Marques no Festival Literário da Madeira (FLM), num debate sobre direitos humanos, a partir do mote de uma frase de Nietzsche, "O homem precisa daquilo que em si há de pior", em resposta a uma pergunta do público sobre se teme represálias em resultado do que escreve.
Em primeiro lugar, indicou, porque percebe que "o silêncio não salva ninguém". "Vejo muitas pessoas a sofrerem e também percebo que essa reverência que muitos regimes querem, de que o mal deve ser respeitado, não dá proteção a absolutamente ninguém, antes pelo contrário", disse. "É através da denúncia do estado de indignação e de revolta que nós podemos encontrar esse caminho do bem, e é uma questão de livre arbítrio, é uma questão de liberdade de consciência, sobretudo, e eu gosto e sempre me senti livre", frisou o ativista, no último dia da 6.ª edição do FLM, que reuniu desde quarta-feira no Teatro Baltazar Dias, no Funchal, cerca de 40 escritores de vários países.
Rafael Marques explicou que "tinha muito mais interesse pela literatura do que tinha pelos direitos humanos" até à sua primeira detenção.
"Na verdade, passei a ser chamado 'ativista de direitos humanos' no dia em que fui preso, porque foi uma situação interessante: eu fui colocado na primeira cadeia, incomunicável, numa solitária, e fora da cadeia ninguém sabia onde eu estava", relatou. "Um libanês aproximou-se da minha cela e disse-me: 'Olha, eu também tenho irmãos no Hezbollah, mas aqui não há MPLA, não há UNITA, somos todos co-sofredores', porque eu fui detido e colocado ali na cela como prisioneiro de guerra, mas como era bastante novo e tinha uns óculos caros, as pessoas tiveram dúvidas, acharam que eu não tinha idade para ser guerrilheiro e os guerrilheiros não utilizam óculos caros, porque na mata não há", prosseguiu.
"Apesar de estar isolado, todos os dias, este libanês - já passaram muitos anos, já posso contar - arranjava um esquema para abrir a minha cela durante algumas horas, para que eles pudessem contar-me os seus casos, para quando eu saísse", continuou o autor de "Diamantes de Sangue". "E muitos deles foram libertados por causa dessa denúncia que eu fiz. Houve até um indivíduo que estava em prisão preventiva há três anos e que, quando saiu, me ofereceu um porco. Mas eu sou vegetariano", contou.
Depois, passou para a cadeia onde agora estão presos os 17 jovens angolanos condenados a prisão efetiva por alegada conspiração contra o regime do Presidente José Eduardo dos Santos, onde havia uma cela conhecida como a 'cela dos judeus'. Levaram-no a espreitar essa cela e percebeu que era onde se encontravam prisioneiros "tão esqueléticos, tão fracos, que não conseguiam sequer ter-se de pé; faziam a formatura sentados, uns encostados aos outros, porque não tinham força, e todos os dias morria um, e era colocado ao lado do sítio onde os presos jogavam cartas".
"No primeiro dia em que me permitiram ir ao intervalo, eles iam jogar cartas ao lado do morto e eu disse 'mas como é que isso é possível?', e eles começaram a rir e disseram: 'Ao terceiro dia, você não vai sentir o cheiro, não vai sentir nada, vai habituar-se'", recordou. "Mas eu nunca me habituei, eu não me habituo a abusos: revolto-me, escrevo, denuncio, e tenho liberdade suficiente na minha consciência para continuar a fazê-lo", concluiu.
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