Os partidos a concorrer à Assembleia da República até podem não ter esta questão como prioritária, mas os leitores do SAPO24 que materializaram a sua opinião na iniciativa Plenário disseram o contrário. De todas as sugestões submetidas, a maior percentagem delas (22,2%), pede uma reforma do sistema político português.
Perante este tema de inúmeros cambiantes e elevada complexidade, o SAPO24 convidou duas vozes, ambas confortáveis nas temáticas do direito político, para vir discuti-lo. Uma delas foi a de José Ribeiro e Castro, histórico do CDS-PP (partido do qual foi presidente entre 2005-2007), advogado e promotor da proposta da SEDES na Assembleia da República. A outra foi a de Margarida Salema D'Oliveira Martins, professora associada de Direito na Universidade de Direito de Lisboa, ex-deputada pelo PSD e ex-presidente da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos (ECFP), cargo que exerceu durante 8 anos.
Financiamento. Uma questão que limita a representação, mas não o pluralismo político
Foi tendo em conta o seu papel na ECFP que Margarida Salema tomou a palavra para responder à primeira questão levantada por Isabel Tavares, relativamente ao financiamento de natureza pública dos partidos e porque é que há uma diferença tão acentuada de valores recebidos pelos partidos pequenos e pelos grandes, quando todos têm as mesmas obrigações.
A professora arrancou dizendo que, apesar de nos últimos debates públicos ter ficado assente “que devia haver financiamento público", a dúvida mantém-se e a sociedade portuguesa tem de se decidir se “quer ter financiamento público dos partidos políticos e das campanhas eleitorais”, tendo de haver “uma dissociação a fazer entre as despesas eleitorais das despesas que os partidos fazem na sua atividade corrente".
Dizendo concordar com o regime que existe em Portugal e lembrando que o financiamento público foi adotado pela “grande maioria dos países no mundo”, Margarida Salema referiu, porém, que esta matéria tem “vantagens e inconvenientes”. Pela positiva, a ex-presidente da ECFP diz que o financiamento público direto permite “que os partidos possam constituir-se e exercer a sua ação" e que "os atores políticos se possam candidatar" e consigam "ter as suas despesas eleitorais subsidiadas pelo Estado".
Contudo, o que é mais problemático é a “enorme fatia de financiamento público indireto que os partidos portugueses pura e simplesmente entendem que não está sujeita às mesmas regras" de escrutínio, citando como exemplos "o acesso aos meios de comunicação social, subsidiado ou pago" ou o "acesso à utilização de bens públicos para desenvolvimento de atividades de campanha". Neste sentido, a professora frisa que “em matéria de obrigações de prestação de contas, a lei não pode ser mais rigorosa para uns do que para outros”, devendo funcionar “o princípio da igualdade".
Foi para mantê-lo que a Entidade das Contas e Financiamentos Políticos foi criada, dizendo Margarida Salema que se utilizaram “poderes importantes e que nunca tinham sido experimentados em Portugal" para “verificar se aquilo que os partidos diziam nos seus relatórios e nas suas prestações de contas, se aquilo que os candidatos eleitorais diziam nas suas contas de campanha, correspondiam, ou não, à realidade". Para tal, diz a ex-presidente desta entidade que “foi montado todo um sistema de averiguação da realidade para certificar" se "os rendimentos que advinham para as contas para efeito de utilização para as respetivas despesas" eram "reais", "escondidos" ou se havia "donativos secretos".
A questão prende-se, continua a professora, com a atual legislação em vigor, que prevê a atribuição de dois tipos de subvenções aos partidos. Uma, “destinada a custear as despesas eleitorais”, é a “subvenção eleitoral", explicando Margarida Salema que pode ser pedida por "todos os partidos que concorram a mais de metade dos assentos parlamentares" e que apenas será concedida se estes “obtiverem representação parlamentar". A ex-presidente da ECFP, contudo, avisa que esta subvenção nunca pode “ultrapassar o limiar das despesas", pelo que é "muito importante a apresentação dos orçamentos de campanha".
A outra é a “subvenção partidária, que "se destina a atribuir um montante que corresponde a 1/365avos do indexante dos apoios sociais". Apenas destinado aos partidos que concorram à Assembleia da República, a professora explica que este subsídio também só pode ser requerido a quem tenha “concorrido a mais de metade dos assentos parlamentares”. Onde esta subvenção difere principalmente da “eleitoral” é que para ser obtida basta um partido obter representação eleitoral, ou, dada uma recente alteração da lei, atingir 50 mil votos nas eleições.
É este último ponto o mais problemático para Margarida Salema, que sublinha que todos os partidos neste momento "se constituem almejando atingir esse plafond", porque se chegarem a esse limiar dos 50 mil votos, já recebem "subvenção anual, atribuída em duodécimos e que vai vigorar até à próxima eleição da Assembleia da República" mesmo sem obter representação parlamentar.
Não se referindo especificamente a Portugal, a professora disse que há estados onde "as subvenções são tão generosas" que são consideradas como o "Eldorado político", sendo mais atrativo "formar um partido e tentar obter os 50 mil votos" do que "formar uma empresa cujo negócio pode ser mais complicado".
Apesar dos desafios colocados e da regulação vigente, Margarida Salema defende que as atuais regras "não foram restritivas do sentido de não permitir que se constituíssem partidos políticos", já que "basta ver que nestas eleições há 21 partidos candidatos". Nesse sentido, a professora é da opinião de que em Portugal há uma sociedade “pluralista” do “ponto de vista dos partidos políticos" e que "as pessoas não podem dizer" que as suas "ideias não estão contempladas em nenhum partido".
Para combater a abstenção, nem o voto obrigatório nem contagem dos votos em branco são solução
O ponto quanto à pluralidade partidária em Portugal foi aproveitado por Isabel Tavares para recordar que, apesar da variedade dos partidos, esse não tem sido um fator que tem levado os eleitores às urnas. Fantasma persistente quanto aos processos eleitorais em Portugal, a abstenção foi outro dos temas em análise pelos dois convidados.
Admitindo haver um “nível muito alto” de abstenção em Portugal, José Ribeiro e Castro lembrou que esse é "um dos sintomas de uma certa desvinculação do eleitorado relativamente à participação eleitoral", mais tarde adiantando que isso "resulta de um descontentamento do cidadão relativamente ao funcionamento do sistema político e de um descrédito geral dos partidos".
As respostas a este fenómeno, porém, são mais esquivas do que parecem. É por isso que o ex-deputado do CDS recordou que algumas eleições onde supostamente haveria maior participação nas urnas, como as regionais madeirenses de 2015 — onde “podia haver um atrativo para as pessoas participarem na escolha do novo líder madeirense” no pós-Alberto João Jardim — ou as presidenciais de 2016 — que contaram com a popularidade de Marcelo Rebelo de Sousa e que foram bem disputadas entre os candidatos —, registaram níveis de abstenção acima dos 50%.
Contudo, se existe uma solução para a abstenção, ambos os convidados concordam que esta não passa pelo voto obrigatório. José Ribeiro e Castro afirmou-se contra pois as pessoas “têm o direito de votar ou não votar”, considerando o voto obrigatório uma "resposta apressada para mascarar um problema sem resolver a doença", frisando ainda que “não é por acaso que os casos do voto obrigatório no mundo são raríssimos" e que, mesmo assim, há países onde “não resolve o problema". Margarida Salema deu um desses exemplos, indicando como tem “estado a estudar essa matéria há dois anos” e que num dos maiores países onde o voto obrigatório é aplicado, o Brasil, "a taxa de abstenção não diminuiu".
Continuando José Ribeiro e Castro, “o problema da abstenção não se resolve com o voto obrigatório, mas com as reformas do sistema político para torná-lo mais atraente para as pessoas", considerando que estas “têm razão quando dizem que não se sentem representadas na Assembleia da República". Este ponto feito pelo advogado servia de base para recordar que "o sistema proporcional não é mau", mas que "os partidos estragaram-no" pois os deputados atualmente "não representam os cidadãos” e sim “os chefes do partido ou das cliques a que pertencem".
É dada a falta de representatividade que parte do eleitorado sente que Isabel Tavares introduziu a questão que um dos leitores fez, quanto à vontade de ver o seu voto, em branco, representado através de cadeiras vazias na Assembleia da República.
Quanto a este ponto. Margarida Salema disse não ser apologista de uma solução desta natureza pois “as pessoas devem fazer um esforço para evitar votar em branco" e procurar qual o programa político que mais vai ao encontro das suas ideias. Para além disso, a professora recordou que a ideia podia parecer "interessante" ou "original", mas que "não era útil" e que "teria de estar contemplada na Constituição por causa do problema da contagem dos votos, pois tem muita influência nas subvenções partidárias" acima discutidas. José Ribeiro e Castro também rejeitou essa solução.
Falando em temas da aplicabilidade dos votos, outra questão levantada prendeu-se quanto ao porquê de um milhão de eleitores portugueses recenseados no estrangeiro apenas poder eleger quatro deputados.
A esse respeito, José Ribeiro e Castro explicou que a partir dos anos 90 passou a haver um sistema de recenseamento passivo, sendo-se automaticamente recenseado quando se renova um documento como o Cartão de Cidadão, mas que antes o recenseamento partia da vontade das próprias pessoas. Tendo em conta o parco número de eleitores recenseados nos círculos fora da Europa quando decorreu o processo inaugural de recenseamento, em 1974, o advogado justificou que esse número não foi atualizado e que são “quatro [mandatos] para a emigração porque isso correspondia a 100 mil [eleitores]. O ex-líder do CDS crê, porém, que "haverá as maiores resistências na Assembleia da República para aumentar o número de deputados para a emigração", algo com que Margarida Salema concordou.
Redução de deputados, uma proposta antiga que tende a retornar
Outro dos temas que voltou a ser colocado na agenda política durante a campanha eleitoral foi a redução do número de deputados na Assembleia da República, tendo, sem surpresas, sido um dos tópicos sugeridos pelos leitores a propósito da iniciativa Plenário.
Isabel Tavares introduziu o tópico, recordando o acordo que PS e PSD, à época liderados por António Guterres e Marcelo Rebelo de Sousa, respetivamente, celebraram em 1997, permitindo uma revisão constitucional que daria azo a uma redução do número de deputados para, no máximo, 180 deputados.
A esse propósito, José Ribeiro e Castro traçou a cronologia do número de deputados na Assembleia da República, que se iniciou nos 250 em 1974, subiu “excecionalmente” para mais de 260 entre 1976 e 1979, baixando depois para o número atual de 230, após a revisão constitucional de 1989. A revisão de 1997, diz, decorreu da vontade do PSD por “razões políticas” para "reganhar um bocadinho o controlo, numa representação parlamentar mais afunilada nos dois maiores partidos". Contudo, em vez de se baixar o número para 180, fixou-se um intervalo de "230 a 180 e não saiu dos 230", explicou o advogado, indicando que não houve acordo para baixar por oposição dos restantes partidos, pois "uma redução de 50 deputados esmaga os médios e pequenos partidos".
Na opinião de José Ribeiro e Castro, "não há uma razão objetiva para reduzir o número de deputados", sendo que o tema apenas é discutido porque “existe uma grande saturação dos portugueses relativamente ao Parlamento. O problema desta medida, adianta, é que ela é secundária, pois a prioridade devia ser uma mudança do "sistema eleitoral" e só se falava na redução "depois das pessoas recuperarem confiança no novo sistema" e perceberem que "este não distorce a representatividade dos partidos". Neste momento, porém, o tópico só serve para impedir alterações de maior. “Quem quiser sabotar uma reforma eleitoral, é só falar no número de deputados", conclui.
Margarida Salema juntou a sua visão a este tema, acrescentando outra problemática ao mencionar que o real problema não é o número de deputados, mas sim a “organização e funcionamento do parlamento", que considera ser "deficiente". Para a professora, "o sistema de orgânica e funcionamento do parlamento" é "um bocadinho enclausurado", havendo "uma espécie de torre de marfim", sendo a sensação dos eleitores quanto aos deputados que elegeram de que não falam com eles, de que não há "uma relação eleitor-eleito". "A não representatividade das pessoas através dos deputados que ali estão é manifesta porque as pessoas não sentem que os deputados estão a tratar de assuntos que lhes digam respeito", acrescentou a ex-presidente da ECFP.
Perante o problema da representatividade, Margarida Salema diz ser preciso fazer "reformas das leis eleitorais", mas não no essencial, porque a representação proporcional é "uma boa solução". Quanto ao número de deputados, a sua possível alteração “teria de ser sempre feita em sede de revisão constitucional", mas este deve manter-se — apesar da professora já ter sido a favor da descida —, porque é "perfeitamente razoável para garantir a proporcionalidade" e porque os portugueses "querem ter muitas correntes de opinião espelhadas no Parlamento".
O futuro do sistema eleitoral português pode estar no passado, mas enfrenta desafios do presente
Um dos grandes problemas dos atuais moldes do sistema eleitoral está, segundo José Ribeiro e Castro, na forma como a distribuição dos candidatos pelos seus círculos os esconde do seu eleitorado, ficando este sem saber quem está a escolher. Como tal, o histórico do CDS diz que atualmente uma campanha eleitoral “são os seis líderes dos seis partidos com assento parlamentar às voltas pelo país com uma câmara de televisão atrás”, sendo que eleitores só ficam a saber "quem são [essas] seis pessoas".
Para agravar este cenário, o advogado recordou também que quando o líder partidário faz uma visita em campanha a um cabeça de lista de um círculo eleitoral, este aparece ao seu lado “normalmente calado", na “figura que os brasileiros chamam de 'papagaio do pirata'". Esta ideia, completa, não só produz "uma certa desvinculação do eleitorado" como também reforça as vozes que dizem que “devemos reduzir o número de deputados".
Para combater este tipo de situações, José Ribeiro e Castro recordou o seu projeto de reforma eleitoral onde existiria uma articulação dos três círculos previstos pela Constituição: os uninominais, os plurinominais territoriais — distritais e regionais —, e um círculo nacional. "O sistema manter-se-ia exactamente como é hoje, proporcional. É essa a maravilha do sistema misto de compensação, um sistema de representação proporcional personalizada, que faz a quadratura do círculo e permite ao eleitor escolher deputados sem estragar a representação proporcional", justifica o histórico do CDS.
A ideia então seria conceder dois votos ao eleitor — “no partido da sua preferência” e “no deputado que quer" do seu círculo eleitoral — sendo que pode ou não votar, num deputado do partido que escolheu, sendo que "isto é que faz a diferença" porque faz o eleitor “sentir que contribui para escolha de deputados". A título de exemplo, diz o advogado, "havendo 40 deputados em Lisboa, haveria 20 numa lista e 20 círculos uninominais", ou seja, "existiriam 20 boletins de voto diferentes, porque em cada um desses 20 subterritórios, haveria numa lista candidatos uninominais diferentes".
No entanto, José Ribeiro e Castro adianta também que o partido, se quiser, pode apresentar os 20 candidatos uninominais na sua lista. "Se não são eleitos no círculo, podem ser eleitos na ordem da lista", sendo os partidos estimulados “a apresentar o melhor que têm” a cada círculo uninominal pois só um candidato ”vai ser eleito".
"Este poder que o eleitor tem é que muda logo o funcionamento dos partidos na escolha dos candidatos e na apresentação das candidaturas" defende o advogado, pois assim as estruturas partidárias teriam de escolher "os candidatos uninominais que eles sabem que têm recetividade junto do eleitorado", fazendo com que "os carregadores de malas, os fazedores de fretes, os yesmen e as yesgirls” perdessem o seu “mercado favorito".
Assim, ao invés de haver seis campanhas eleitorais centradas nos seis líderes dos partidos com assento parlamentar, José Ribeiro e Castro previu que "neste sistema haveria 105 círculos uninominais", ou seja, "teríamos, pelo menos, 105 campanhas eleitorais, às vezes com duelos e batalhas interessantes" que poderiam "despertar a atenção da comunicação social"
Contudo, apesar do argumentário do histórico do CDS, Margarida Salema contrapôs, dizendo estar “em desacordo” porque o sistema, apesar de “atrativo”, não tem “aplicabilidade em Portugal”, até porque “neste sistema a televisão também iria atrás dos líderes partidários e não dos candidatos".
O maior problema da formulação de José Ribeiro e Castro apontado pela professora foi o de que é um sistema que "pode causar, na sociedade portuguesa atual, uma grande personalização do deputado", ou seja "o partido vai buscar aquele deputado porque sabe que ter votos à partida porque é uma pessoa muito conhecida no sítio A, B ou C".
"Isso vai dar a independência que o José Ribeiro e Castro quer em relação ao partido", indicou Margarida Salema, criando-se, porém o problema “da dependência da disciplina partidária", indicando a professora que a Constituição portuguesa determina que "o deputado pode ter um mandato independente do partido, ou seja, que até poderia desfiliar-se do partido após ser eleito, apenas perdendo-o “se se filiar num partido diferente daquele pelo qual se candidatou".
A introdução da questão da disciplina partidária no debate levou Isabel Tavares a perguntar a José Ribeiro e Castro se esta não poderia ser um “possível aniquilador do sistema proposto”. Para o advogado, todavia, apesar de não ser contra a disciplina de voto, pois a organização partidária “não pode ser uma anarquia", retorquiu que esta "tem de ser democrática" mas hoje é "autocrática" e "oligárquica".
A este respeito, o histórico do CDS considerou que atualmente os deputados "não têm independência para criticar, nem que seja à porta fechada, as suas hostes", sendo que o problema não está neles mas no “sistema" vigente da estrutura dos partidos. Por oposição, José Ribeiro e Castro diz que com o seu modelo, os candidatos passariam a “ter um mandato próprio" e a “contribuir no grupo parlamentar para a formação da vontade coletiva", não precisando de subir na carreira política com o "favoritismo dos seus padrinhos" mas pelo "seu exemplo".
Para encerrar a discussão, Margarida Salema lembrou que “os cidadãos querem ter a certeza que os partidos são absolutamente transparentes", mas que há "um conflito de interesses" entre o "partido que se candidata" e "o partido que é legislador". "Como é que têm independência suficiente para legislar sobre matérias que lhes dizem respeito direta ou indiretamente", perguntou, afirmando também que, como um dos sintomas, não há regras em Portugal contra ao nepotismo.” José Ribeiro e Castro concordou dizendo que o maior problema é que "não há mecanismos independentes porque os deputados foram perdendo progressivamente, de uma forma geral, a sua independência", concluindo a professora que existe ainda “um problema de cultura”.
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