As paixões e os ódios por Nicolau II, o último czar da Rússia, abundam num confronto que espoletou ainda o sangue do monarca não havia secado na adega da casa Ipatev, nos montes Urais. O assassínio brutal da família Romanov, pelos bolcheviques, em 1918, chocou o Ocidente e alimentou uma visão romântica da vida do último czar da Rússia.

Robert Service, académico britânico e historiador da União Soviética (URSS) e da Rússia moderna deu de caras com o documento original com que Nicolau II abdicou do poder a favor do irmão, que logo renunciou ao lugar, acabando com uma dinastia de trezentos anos.

Num livro carregado de drama, Service enquadra a queda dos Romanov e a ascensão do comunismo. Os últimos 16 meses de Nicolau II são a chave para entender não apenas a história do século XX russo (e europeu), mas também para compreender que Rússia temos hoje com Vladimir Putin, cujo herói, numa estranha contradição, parece mesmo ser o último dos czares.

Na livraria Buchholz, em Lisboa, cidade que diz ser “muito, muito interessante”, Robert Service, professor de História Russa na Universidade de Oxford, esteve à conversa com o SAPO24 na sua primeira passagem por Portugal. Falou sobre o passado e o presente de uma Rússia que está à procura de se reinventar.

Qual é a atração nos assuntos da Rússia?

Comecei como estudante de literatura russa. Entusiasmava-me com Dostoyevsky, Tolstoy, Turgenev ou Chekhov. Comecei a descobrir questões a que não conseguia responder através da literatura. Por isso, segui em frente: primeiro através da política - até descobrir que havia questões sobre a política Soviética a que não podia responder através da ciência política. Assim, voltei para a história.

Que questões eram essas?

Tinham a ver com a forma como foi possível o povo russo acreditar nas ideias e práticas do totalitarismo Soviético. Achava que nem os poetas nem os romancistas tinham ideia da resposta; tal como o comentário político dos anos 1970 e 80 não sabia. Isso forçou-me de novo para a história.

O totalitarismo Soviético foi uma invenção extraordinária - um estado de partido único, de ideologia única, o estado do terror. Esta foi uma invenção que posteriormente foi replicada por todo o mundo; não apenas na esquerda política, mas também na direita. Todavia, começou na Rússia e foi isso que me entusiasmou.

O totalitarismo Soviético foi uma invenção extraordinária.

Estamos a falar de mundos diferentes - Ocidente vs. Oriente - ou são as semelhanças maiores que as diferenças?

Cada país tem as suas peculiaridades, por isso fico muito triste com a ideia de que a Rússia está inerentemente predisposta a ter um sistema bárbaro, ao contrário de outros países. A verdade é que as circunstâncias em 1917 eram bastante propícias a permitir que um grupo de revolucionários de esquerda fanáticos tomassem o poder -  e não apenas tomar o poder, mas consolidá-lo.

Os revolucionários não sabiam bem o que estavam a fazer -  alguns reprovavam aquilo que se começou a fazer -, por isso, foram apalpando o caminho para inventar este sistema, para estabilizá-lo, inventando este estado de partido único, ideologia única e terror.

Se em 1916 dissesse a algum deles qual seria o resultado nos próximos cinco anos, caso tivessem o poder, todos tê-lo-iam negado. Por isso, não estavam à espera de fazer o que acabaram por fazer. Eram seres humanos, não tinham conhecimento do futuro - mas este é um dos grandes pontos de viragem na história da humanidade.

Os seus livros anteriores são sobretudo sobre bolcheviques. Porquê passar para o outro lado?

Passar para o outro lado? [riso] Foi puramente um acidente pessoal. Um dia estava a deambular pelos arquivos [da Hoover Institution, Universidade de Stanford] na Califórnia quando um arquivista encantador me perguntou se alguma vez tinha visto os documentos originais da abdicação de Nicolau II- eu não fazia sequer ideia de que eles estavam na Califórnia.

Olhei para os ficheiros e pensei “que mais haverá aqui?”. Os arquivos tinham também as 1.500 páginas do inquérito oficial à execução de Nicolau II. Tinham a correspondência oficial dos funcionários judiciais presentes. Pensei logo que esta era uma oportunidade demasiado boa para desperdiçar. Por isso, foi um acidente.

O que há de novo? Que revelações traz o livro?

Acima de tudo, penso que aquilo que tentei fazer foi ir além da imagem romântica de Nicolau II que existe na maioria dos relatos Ocidentais - e agora também nos russos.

Estes relatos enfatizam, com razão, que era um homem de família decente, que amava os filhos e a mulher. Que era um homem modesto, que gostava de caçadas, que limpava a neve dos caminhos, que cortava lenha e que não tinha nada parecido com a arrogância dos típicos monarcas e czares do passado.

Tudo isso é verdade, mas é apenas metade da história. Aquilo que eu queria fazer era olhar para o outro lado de Nicolau II - pôr ambas as faces juntas, lado a lado.

Nicolau II era um antissemita, era um virulento antissemita, tinha ideias sobre os judeus que foram mais tarde partilhadas por Adolf Hitler. Pensava que todos os problemas no mundo, nas potências industriais avançadas, eram causados pelos judeus. Pensava que os judeus estavam a formar uma conspiração contra os cristãos e contra os valores sociais tradicionais, que estavam a tentar destruir o velho sistema de valores do mundo.

Nicolau II era um antissemita, era um virulento antissemita, tinha ideias sobre os judeus que foram mais tarde partilhadas por Adolf Hitler.

Era um fanático - isto é um dado conhecido pelos historiadores. Aquilo que fiz no livro foi olhar com particular atenção para as conversas que teve após cair do poder, porque depois de abdicar já não tinha de fingir, já não tinha de manter segredos, porque não havia nada a perder.

Quando estava no poder, Nicolau II era conhecido por parecer concordar com todas as pessoas com quem falava - o que fazia com que ninguém soubesse aquilo que realmente pensava. Se olharmos para aquilo que realmente fez, o pensamento torna-se bastante claro, mas ele era tortuoso.

Depois de cair do poder, já não tinha razões para fingir. Por isso, passei por cada conversa gravada nos testemunhos para descobrir o que é que ele [Nicolau II] achava sobre a Rússia. E descobri que pensava mesmo, mesmo, seriamente, que todos os problemas da Rússia foram causados por estrangeiros - porque não considerava os judeus como súbditos apropriados, legítimos do seu próprio império.

Para além disso, Nicolau II tinha quase uma visão louca do povo russo. Pensava que eram pessoas nobres, mas simples, que foram enganadas pelos revolucionários, particularmente pelos judeus. Alguns dos carcereiros e também alguns dos professores dos seus filhos, quando estava em prisão domiciliária, discutiam com ele e diziam-lhe que os russos não eram assim, não eram perfeitos e algumas das coisas que estão a fazer não vinham de fora, mas do interior do povo russo. Pediam-lhe para não os idealizar.

Julgo que a imagem que dei de Nicolau II é a de alguém que tinha uma visão defeituosa da Rússia que esteve a governar - e penso que não estava só a fingi-lo. Espero que seja esse o contributo do meu livro, espero que dê uma impressão precisa daquilo que o fez cair. Torna a sua queda do poder mais percetível, porque qualquer um com estas ideias não percebe realmente o país que tem estado a liderar.

Quando foi posto em prisão domiciliária e foi para a cidade de Tobolsk, no oeste da Sibéria, Nicolau II descobriu, para sua surpresa, que já lá tinha estado antes. Começou a falar com jornalistas de Tobolsk para aprender como era aquela cidade, bem como a região à volta. Depois, o comissário responsável pela prisão domiciliária revelou ser um ex-condenado siberiano, que fora enviado para lá pela própria administração de Nicolau II. Falaram sem fim sobre a Sibéria - mas isto foi depois de cair do poder, quando já devia saber algumas destas coisas antes.

É isso que sinto que o meu livro revela - este era um homem alheado do conhecimento sobre a verdadeira Rússia, e por isso pagou um preço terrível.

créditos: Pedro Miranda | Madremedia

Porque é que no mundo ocidental a ideia mais comum sobre Nicolau II é esta visão muito romântica de que ele era um homem adorável?

Nicolau II teve uma morte horrível. É como se isto tivesse coberto a sua história com ideias mais queridas que realistas sobre ele. Reconheço que Nicolau II era um ser humano decente, nas suas relações pessoais, na sua atitude com o trabalho manual; reconheço que era um homem corajoso, mas era também um indivíduo ideologicamente fanático, tanto como governante, como ex-governante.

Venderam uma história fictícia às pessoas. Elas querem acreditar que quando alguém tem uma morte terrível significa que teve uma vida perfeita. É isso que está a acontecer na Rússia hoje em dia.

Quando lá estive, em janeiro deste ano, fiquei espantado com a quantidade de livros sobre Nicolau II nas livrarias - livros que contam o mesmo género de história que era usual no Ocidente antes da queda do Comunismo.

Mais: Nicolau II foi designado santo. Temos a igreja ortodoxa russa a nomear santo um antissemita virulento.

Há interesses políticos por trás disto?

Há.

Também no contexto da Guerra Fria, com o lado ocidental a tentar idolatrar o regime anterior?

Sim, sim, tenho a certeza de que isso é verdade. Se vais criticar o comunismo, ajuda elevar as vítimas a um nível de glorificação - porém, isto é má história, isto é muito má história.

A verdade é que Vladimir Putin está hoje a elevar Nicolau II. Temos, assim, um ex-comunista e ex-tenente coronel do KGB, que pertenceu a um estado cujas primeiras medidas foram, entre outras, executar Nicolau II a elevar Nicolau II. Putin cresceu a acreditar que Nicolau II era “Nicolau, o Sanguinário”. Todavia, agora que é ele o líder, não quer ter nada com revoluções. É contra revoluções, quer estabilidade, quer ordem. É por essa razão que promove esta ideia de que Nicolau II foi maltratado - bem, ele foi maltratado, foi executado de forma brutal, mas essa não é a história completa.

Neste momento, a elite governante da Rússia quer passar por cima da história, retirar todas as pontas desagradáveis e dizer ao povo russo que o melhor é evitar distúrbios, porque houve distúrbios em 1917 que deram origem a uma guerra civil; e houve distúrbios em meados dos anos 1980, quando Mikhail Gorbachev destruiu a União Soviética”.

Putin tem pena da queda da União Soviética - esta é uma atitude muito complexa e contraditória. Por um lado, lamenta a morte de Nicolau II, que os comunistas julgaram ser necessária para a segurança do estado soviético. Por outro, lamenta a desintegração do estado soviético. E por outro lado ainda, diz que não é um comunista, mas um patriota russo e que a estabilidade e as doutrinas sociais de antigamente são o caminho que os russos devem navegar para um futuro de sucesso - debaixo de um líder forte.

E não estão a celebrar o centenário das revoluções de 1917. Porque acha que estão a tentar minimizar o que aconteceu em há 100 anos?

Porque não querem apoiar violência revolucionária e a revolução foi violenta - até a revolução de Fevereiro foi violenta. Mas a de Outubro e a guerra civil que se seguiu foi incrivelmente violenta. A elite no poder do Kremlin não quer uma repetição.

Quão importantes foram os Romanov?

Os Romanov foram, por 300 anos, dos monarcas mais influentes em toda a Europa. Basta olhar para o contributo da Rússia na derrota de Napoleão, com as forças armadas russas a marchar para Paris.

Os Romanov impuseram, ou ajudaram a impôr, estabilidade na Europa depois das guerras napoleónicas, a par com os austríacos, com os Habsburgos. Os Romanov eram muito, muito importantes.

Sofreram com a guerra da Crimeia, de 1853 a 1854, e começaram a perceber que tinham de modernizar a sua cultura e a sua economia. Estavam a meio caminho para o conseguir quando estalou a primeira guerra mundial.

Como é que o mundo reagiu à morte do czar russo?

O mundo democrático reagiu positivamente à abdicação de Nicolau II [a 15 de março de 1917]. Ficaram satisfeitos com a sua saída do poder. Por isso, os aliados ocidentais, a Grã-Bretanha, a França e os outros aliados europeus - e os americanos, que estavam a chegar à guerra -, ficaram satisfeitos por lhe ver as costas. Pensavam que desta forma a Rússia ia combater de modo mas eficaz na guerra contra os alemães e os austríacos.

Quando os comunistas chegaram ao poder, a história foi outra. Foi o início de uma reconsideração, uma revisão das atitudes face a Nicolau II. O assassínio dos Romanov foi visto como um exemplo terrível da barbárie comunista. Um dos primeiros, embora tenha havido outros ao mesmo tempo. Este foi um período em que havia milhares de homens debaixo de fogo. A Rússia estava repleta de grupos armados a lutar uns contra os outros: vermelhos vs. brancos; brancos vs. verdes; verdes vs. vermelhos; vermelhos vs. negros, também, porque os anarquistas faziam igualmente parte desta história.

Havia guerras civis locais por toda a Rússia e Ucrânia em 1918 e Ecaterimburgo era apenas o centro de um desses conflitos. Em 1919, já havia uma única guerra civil, uma vez que todas as guerras civis se uniram no confronto entre vermelhos e brancos, porém, isso levou meses a acontecer, mesmo anos a desenvolver-se naquilo em que se tornou.

Por isso, sim, a resposta curta à sua pergunta é que o mundo ficou horrorizado com a notícia de que os comunistas não tinham apenas morto Nicolau II, eles mataram-lhe a mulher, mataram-lhe os filhos, mataram-lhe o médico, mataram-lhe alguns dos criados e até lhe mataram alguns dos cães.

Foram até ao máximo que conseguiram para se livrarem de todos os traços dos Romanov, porque não queriam ter a mais pequena possibilidade de algum Romanov sobreviver e liderar uma contrarrevolução.

Era mesmo necessário matá-los? Não podiam simplesmente mandá-los para o Reino Unido, por exemplo?

Houve uma proposta para os deixar ir em exílio para Inglaterra. No último minuto, o rei Jorge V proibiu esta solução, sobretudo porque queria ser rei de todos os ingleses e muitos deles partilhavam a ideia de que Nicolau II era Nicolau, o Sanguinário, que era o tirano de toda a Europa.

Por isso, Jorge V tomou a decisão clínica de não deixar o primo ir para Inglaterra. Muito rapidamente se arrependeu disto, porque quando os comunistas chegaram ao poder tornou-se óbvio que os Romanov estavam em perigo, por isso tentou fazer com que o máximo de Romanov saíssem do país, enviou até a Marinha Real, depois do fim da primeira guerra.

Mas também não acho que Nicolau II alguma vez conseguisse sair da Rússia, porque os soviéticos, depois da revolução de Fevereiro, nunca permitiriam que os caminhos-de-ferro fossem usados para Nicolau II chegar a Arcanjo - e mesmo que chegasse a Arcanjo, corria o risco de, na primeira guerra mundial, deparar-se com a ofensiva submarina alemã, que era muito, muito séria.

Lembro-me disto nos anos 1990 - um historiador russo, ex-comunista, por acaso, dizia-me: “o problema foram vocês, os britânicos, foram responsáveis por todos aqueles problemas. Deviam ter invadido a Rússia; deviam ter libertado Nicolau II” - Isto é má história. Ninguém podia controlar os russos em 1917.

E pode o mundo controlar os russos em 2017?

Julgo que temos de fazer alguma coisa para conter os russos. Aquilo que aconteceu na Crimeia, em 2014, foi uma infração terrível da soberania ucraniana. Temos de garantir que isso não se repete em nenhuma outra parte da Ucrânia ou dos países na fronteira da Rússia.

Mikhail Shvydkoy, o representante especial de Putin para os assuntos culturais, disse recentemente que as revoluções de 1917 foram uma espécie de Brexit na Rússia, no que diz respeito às relações com a Europa. Quais são as influências que o verdadeiro Brexit pode trazer para as relações entre o Reino Unido e a Rússia?

O Brexit significa que os Britânicos terão menos poder para endurecer a política europeia em relação à Rússia. É por isso que o governo russo está muito contente com o Brexit. Penso que no que diz respeito às políticas internacionais, a nossa, britânica, influência está diminuída na Europa. E do ponto de vista de conter a Rússia, a Europa é hoje um lugar menos seguro.

Vladimir Putin é um novo czar?

Não penso que Vladimir Putin seja um novo czar, nem um novo secretário-geral. Putin é um novo presidente de um novo país que encarna algum do seu passado czarista e algum do seu passado comunista, contudo, também alguma auto invenção.

Putin é um novo presidente de um novo país.

A Rússia está a emergir diferente do que foi no passado, mas o passado é uma das chaves para perceber as razões por que está a tomar esta forma - e isso é o que vai estar no meu próximo livro.