“Um aviãozinho militar atirou uma bomba ao ar”. A cadência musical não me saía da cabeça. Cantarolei-a vezes sem conta antes do desafio que foi colocado ao SAPO24. “A que terra foi parar”. Continuava a debitar o dó-ré-mi-fá-só-lá-si de infância.

O aeródromo municipal de Ponte de Sor, onde decorreu a Portugal Air Summit, cimeira aeronáutica organizada pela RACE, foi o local escolhido para um batismo de voo. A imensa planície do norte alentejano e um dia de céu limpo não poderia servir de melhor aperitivo para a experiência de subir às nuvens e descer à terra a bordo de uma aeronave.

O relógio apontava as 20h30m. Na minha cabeça estava o imaginário de um pôr-de-sol alaranjado, em contraste com o verde das árvores e o amarelo da terra circundante, numa vista sem fim. Uma imagem pré-formatada para quem vê o planeta em terra.

Na aproximação ao hangar, onde estava o avião e o piloto, deu-se um apagão na tal música bélica aceite noutros tempos. Delete, diria mesmo. O aparelho com asas não era de guerra. Muito antes pelo contrário. Era um Pitts S-2B, avião de acrobacia de dois lugares e motor a hélice desenhado por Curtis Pitts, cujo primeiro protótipo fez a estreia dos voos em setembro de 1944.

De imediato pesquisamos as características da “nave” com dupla asa, uma sobreposta sobre a outra. Ficamos a saber que é um dos aviões de acrobacia aérea mais populares e conhecidos, participando ativamente em quase todos os festivais do género no mundo. Uma lenda viva de quem gosta de retirar toda a potencialidade aerodinâmica de um “pássaro” bi-lugar que pesa 521 kg e atinge os 342 km/h de velocidade máxima.

Luís Estrela Garção foi o piloto que nos guiou nesta aventura a bordo de um aparelho que saiu da fábrica em Wyoming, EUA, em 1993 e possui o número de série 5282. Sabemos que tirou o brevet numa idade que outros pedem a carta de condução aos pais e que pelas suas mãos já passaram diversos tipos e tamanhos de aviões Boeing e Airbus. É piloto comandante da TAP e tem o curso de acrobacia aérea.

Estamos em boas mãos. Permanecemos à porta do hangar enquanto o avião é puxado pelo piloto, por um assistente do aeródromo e uma piloto. A leveza do material explica a facilidade das manobras.

créditos: Miguel Morgado | MadreMedia

Uma entrada com o pé esquerdo e um saco preto ao peito

Uma conversa prévia com o mais que experiente Luís Garção e com Inês Serpa, que começa a dar os primeiros passos no mundo aeronáutico, serviu de detonador de confiança e de preparação mental e comportamental para o que se seguiria.

Para começar. Esqueçam aquelas indicações prévias às descolagens dos aviões comerciais. Aqui não há a menina ou o menino a indicar as saídas da frente, no meio e atrás. Não há o tradicional esbracejar, nem tão pouco a explicação sobre como colocar o colete salva-vidas, não se sopra para coisa nenhuma, nem se escuta como respirar pela máscara que cai à nossa frente, simplesmente porque não há máscara nenhuma.

As explicações são outras. Desde logo, a utilidade a dar a um saco preto que nos é entregue em terra e que levamos junto ao peito. Serve para o caso de ficarmos “enjoados” e necessitarmos de “vomitar”, explicou Inês Serpa. “Não percam tempo a dizer-me que estão enjoados. Esses três segundos são vitais. Afastem, com uma sapatada, o micro e façam o que têm a fazer. Se estiverem de cabeça para baixo já sei o que aconteceu, coloco o avião direito e venho calmamente aterrar”, reforçou Luís Garção.

A primeira lição tem como sumário a entrada no avião. Faz-se com o “pé esquerdo”, o que poderá perturbar os espíritos mais supersticiosos. A razão é simples. “Temos que pôr os pés junto à carenagem, a barriga do avião, numa linha preta, porque é a parte que aguenta com o nosso peso. O resto é tela, bastante frágil e podemos estragar, partir mesmo, só de carregar com um dedo”, avisou Inês Serpa, num briefing.

Depois passamos a um exercício de ginástica. Se temos que ter cuidado onde pisamos, também não é indiferente onde pomos as mãos. Num pequeno buraco, ao centro do aparelho, temos um cabo de 30 cm para onde projetamos toda a força ao mesmo tempo que rodopiamos o pé direito por cima da cabeça do piloto, que nos dá uma mãozinha nesta ginástica. Em ato continuo mergulhamos os dois pés numa almofada. “Deslizem com uma perna para cada lado e com a manche (volante) no meio”, explicou. “É fácil quando entramos, é difícil quando saímos, porque não temos visão onde pomos os pés” e “podemos, com as costas, partir a canópia (estrutura que está por cima do cockpit)”, antecipou Luís Garção.

“Uma vez sentados colocam os sete cintos”, cintos esses que surgem de todos os lados e em que cada um “aguenta duas toneladas, logo são 14 toneladas”, precisou. “O headset tem que ficar encostado à boca e falem alto. A única altura em que tiram micro é se estiverem mal dispostos”, recordou o piloto.

créditos: Miguel Morgado | MadreMedia

O nervoso miudinho apodera-se de quem quer menos conversa (que é vital, diga-se em abono da verdade) e mais ação. Últimos avisos. Primeiro: “não levem nada nos bolsos nem nas mãos (o telemóvel que iria gravar fica em terra)”. E “as mãos ficam coladas aos joelhos, mesmo nas manobras em que podem ter a tendência de agarrar a algo. Não o façam. As mãos só saem dos joelhos quando quiserem pilotar”, avisou. Quem tiver o comando na mão “1 cm para cada lado já é muito. Tem de ser tudo com amor e carinho”, gracejou em tom sério.

Ver o mundo de pernas para o ar

Estamos enfiados no cockpit. Sentimo-nos dentro de uma cápsula em que os pensamentos que nos atravessam a mente saem como o balão de legendas numa banda desenhada.

O motor ligado e as hélices rodam a tamanha velocidade que nem as conseguimos ver. Só ouvimos. Fechados, com o plástico transparente a um palmo da nossa cabeça e com vista para o mundo lá em cima, headset colocado, micro encostado à boca, teste de comunicação estabelecido com o piloto e estamos preparados para fazermo-nos à pista. “Vou começar com manobras básicas, com suavidade e depois se sentirem confiança podemos avançar para algo mais forte. Mas nada violento como se pilotassem há 10 anos”, garantiu.

A estrutura abana. Se abana. O piloto Luís Garção fala com a torre, avança pela pista, acelera, acelera, acelera e num ápice deixamos de sentir a trepidação das rodas e sentimo-nos no ar. Uma insustentável leveza que se sente quando estamos confinados ao m2 onde estamos enfiados.

“Estamos no ar. Estamos no ar”, gritava o meu anjo da guarda. Na mente tinha presente o recado dado. “Começamos com suavidade e depois à medida que vejo nas reações vamos complicando as manobras”.

Num ápice, numa fração de segundo, aponta o nariz da avioneta para cima rumo ao infinito. Exclamei um “mau...”, onde é que está a tal suavidade tão falada. Dá uma volta, duas voltas. “Queres ver”... continuei. Senti-me na Feira Popular. Recuei ao tempo da montanha russa, do polvo, do comboio fantasma. Tudo misturado, o que resulta, por vezes, numa sensação semelhante à de sermos roupa que está a centrifugar na máquina.

Mais uma volta. Mais outra. Looping. Vi a vida a andar para trás quando na realidade estava de pernas para o ar a ver o mundo ao contrário. Bico do avião apontado ao chão. “Já fui”, pensei mesmo. Não, não fui. Fizemos uma razia à pista e voltei para cima. De novo. Fiz mortais para a frente e para os lados. Nem sempre bem.

A paisagem, a tal paisagem idílica, nem vê-la, quanto mais senti-la. Pôr-do-sol? Nem sei onde está a luz que nos ilumina. Velocímetro, altímetro ou bússola são instrumentos que sei que estão lá, mas a cabeça andou tantas vezes à roda que não sei qual é qual. Não interessa, o Luís sabe. Tenho essa certeza que me acalma.

O estômago colou à boca (e não sai nada) e voltou ao lugar. Fiquei sem respiração. Olhava pela janela e deu-me a sensação de ter visto a minha alma ali ao lado a rir. E a divertir-se como uma criança.

Falava comigo. Como o meu outro Eu. “Mãos nas pernas, mãos encostadas aos joelhos”, tinha presente esse recado. A tentação é grande. Apetecia-me ter mãos livres para, no caso de necessitar amparar a queda. De nada valia, garanto.

Aventurei-me e enfiei dois dedos num buraco que consegui perscrutar às apalpadelas. Ali passam os cabos dos ailerons e o leme da direção. Os pés sentiam os pedais que estavam a ser comandados atrás de mim. “Está quieto. Não mexe”, falei comigo.

Mãos, mesmo só para pilotar. E aí a sensação, mesmo que por breves instantes, é que somos donos do mundo. Uns super-heróis com superpoderes transmitidos por uma simples maneta. “1 centímetro faz toda a diferença”, confirmo o aviso dado em terra.

“Parafusos, voos rasantes à pista, loopings, tonneaux (em que temos que ganhar altitude, subir cerca de 20º, primeiro, para depois redopiar e redopiar, sem perder altitude inicial)”, foram manobras que fizeram parte do menu de degustação da ida aos céus (e não ao inferno, garanto), explicadas à posteriori.

10 minutos no ar e a nossa mãe não sai do pensamento

A certa altura, com os níveis de adrenalina no máximo, sentimos o motor a desligar. Não desliga nada, é só uma redução de potência que nos leva a sentir impotentes.

“Oh mãe”, apetece-me gritar alto e bom som. Uma fração de milésimos de segundo depois pergunto-me porque é que os homens gritam sempre pela progenitora em situações de aflição. Talvez porque é Ela (com E) que acolhe o disparate ou aventura do filho junto a si com o amor de mãe, enquanto o pai iria sempre exclamar o seco e tradicional: “eu sabia” ou o “eu avisei”, tocando, por vezes, o “quero é que...”.

10 minutos radicais e reais. Pareceu muito mais tempo no ar. “Está bom”, transmito ao piloto. “Vamos aterrar”, respondeu. “Gostaste? Foi duro?”, questionou. “Fantástico, adorei e muito obrigado”, foram as parcas palavras transmitidas para descreveram a tamanha e inolvidável sensação tida. Porque faltam palavras naquele momento de uma vida.

Aterrámos. O Pitts S-2B entrou direto na “garagem”. Segue-se, em movimentos rápidos, tirar os sete cintos e o headset, levantamo-nos, pé esquerdo colado à barriga do avião, movimento rotativo de saída, como se estivéssemos a desmontar de um cavalo e pisamos a pista. Estamos finalmente com os pés bem assentes na terra.

Mais agradecimentos. Hora de dizer adeus. Entro no carro, saio do aeródromo municipal de Ponte de Sor, sigo pela N2 e apetece-me acelerar, levantar voo, naquela reta que parece não ter fim. Não o fiz. Mas garanto que sonhei com o filme “Top Gun” e a música já foi outra.

*O jornalista fez o batismo de voo em Ponte de Sor a convite da RACE durante a Portugal Air Summit