Decisão foi “arrasadora para o Ministério Público”

“O arraso por incompetência do Ministério Público fica claro, por exemplo, nas considerações que o juiz [Ivo Rosa] faz sobre vários factos que ele até não diz que não possam ter ocorrido, mas que estão prescritos. Quando a investigação foi feita já estavam prescritos”, avançou Ana Gomes à Lusa.

A diplomata e ex-candidata à Presidência da República adiantou ainda estar “muito preocupada” com a interpretação dos factos “completamente discrepante” entre o Ministério Público e a decisão anunciada hoje, considerando que essa “discrepância não é normal, nem é de molde a tranquilizar os cidadãos sobre o funcionamento da nossa Justiça”.

“Não tenho dúvidas que o juiz acaba por declarar e acusar de corrupção José Sócrates. Acusa-o de branqueamento de capitais, porque na base está o crime subjacente da corrupção”, afirmou Ana Gomes, para quem “não está aí nenhuma vitória do engenheiro José Sócrates, que conseguiu ver-se livre de algumas acusações na base de um erro do Ministério Público”.

Manifestando-se com o “coração pesado”, a candidata nas últimas eleições presidenciais considerou ainda que a confiança dos portugueses no sistema de justiça foi abalada, o que “é devastador para a Justiça, em particular para o Ministério Público, mas também para os políticos que têm há anos contemporizado com estas disfunções na Justiça”.

“Espero que os responsáveis políticos percebam que é a própria democracia que está em causa, porque, obviamente, estas disfunções na Justiça e este abalo na confiança dos cidadãos na Justiça só serve aos inimigos da democracia”, disse.

"É uma grande condenação da justiça portuguesa"

"É uma grande condenação da justiça portuguesa. Essa é que é verdadeiramente condenada e muito particularmente os procedimentos do Ministério Público neste caso", disse à agência Lusa o também professor catedrático da Universidade de Coimbra, salientando que "há muito" denuncia "o erro de tentar juntar todos os crimes, todos os indícios de comportamento criminoso em mega-processos que depois nunca terminam porque têm demasiados casos e arguidos".

Para Boaventura de Sousa Santos, a decisão instrutória era "previsível".

"O resumo mais cruel é: A montanha pariu um rato. Dos crimes sobre os quais incidiu o inquérito, vimos que aqueles que poderiam ser politicamente mais danosos e mais graves, nomeadamente os crimes de corrupção, não se aplicam a José Sócrates. A verdade no processo judicial é sempre muito mais forte do que aquela que é meramente indiciária ou que é feita na comunicação social", constatou.

Criticando a forte mediatização do processo, Boaventura de Sousa Santos frisou que o caso mostra as fragilidades da justiça em crimes de grande complexidade, nomeadamente a estratégia do Ministério Público.

"Isto é uma caricatura cruel da justiça portuguesa nesta situação. Felizmente, não é um retrato de toda a justiça portuguesa e, aliás, o juiz Ivo Rosa deu hoje uma imagem de credibilidade da justiça portuguesa, em que seguiu estritamente os princípios que todos nós, os juristas, aprendemos no processo penal", salientou.

Segundo o sociólogo, é necessário haver "mudanças legislativas e processuais".

Boaventura de Sousa Santos apontou para o caso do ex-Presidente de França, Nicolas Sarkozy, em que bastaram "dois anos para ser julgado".

"É a mesma cultura jurídica, é a mesma base dos códigos, mas há uma estratégia penal diferente em França e em Portugal. Em França, o Ministério Público incide naqueles crimes para os quais tem provas robustas", vincou.

"Sistema judicial mostrou que está doente"

Numa nota enviada aos jornalistas, o líder centrista, Francisco Rodrigues dos Santos, começa por dizer que "do ponto de vista jurídico, é uma decisão judicial que deve ser respeitada no quadro do Estado de Direito", mas que é "uma decisão recorrível e, portanto, não definitiva".

"Mas este processo presta-se também a uma leitura política, que não podemos deixar de fazer. Depois de tantos anos, o povo não entende esta decisão e está indignado com razão. Os valores éticos e morais de um governante não prescrevem!", salienta Francisco Rodrigues dos Santos.

No comunicado, o presidente do CDS-PP advoga igualmente que "o sistema judicial mostrou, neste processo, que está doente, pois das duas uma: ou a acusação não é infundada e nesse caso não se admite que a culpa morra solteira; ou é infundada e as proporções que o caso tomou são inaceitáveis".

"No mais, ficou também hoje claro que o mesmo primeiro-ministro cuja única fonte de rendimento declarada era exclusivamente o exercício de funções públicas vivia muito acima do razoável, ao mesmo tempo que levou o pais à bancarrota, revelando um desprezo total que pelas condições de vida da generalidade dos portugueses que tiveram de sofrer com os abusos da sua governação", criticou.

Francisco Rodrigues dos Santos salientou ainda que "o CDS vai empenhar-se em tornar o sistema judicial rápido, previsível, forte com os fortes, em que as regras sejam respeitadas e onde a culpa não morra solteira".

"Um sentimento de vergonha nacional"

“É evidente, perante todos, que a decisão que hoje foi conhecida, de deixar cair os crimes de corrupção ligados a José Sócrates, muitos deles por razões de prescrição, causa-nos enorme perplexidade, sentimento de revolta e de frustração. É um ultraje o que hoje aconteceu. É mais um tiro no edifício do Estado de Direito, na crença da democracia em Portugal e um enorme aumento de frustração e revolta dos cidadãos face à nossa democracia, que, de facto, está doente”, disse André Ventura.

Numa declaração em vídeo divulgada à imprensa, André Ventura considerou que está hoje em causa "um sentimento de vergonha nacional, perante um antigo primeiro-ministro" que tinha "despesas inqualificáveis, formas e fontes de fortuna incompreendidas por todo o cidadão, face à vida que fazia –, e, ainda assim, a Justiça deixa-o escapar”.

Apesar de expressar "revolta e frustração", André Ventura disse que respeita as “instituições e a independência dos tribunais e dos juízes e sua decisão”, após ser conhecida a decisão instrutória em que o ex-chefe de Governo foi pronunciado para ir a julgamento em três crimes de branqueamento de capitais e outros tantos de falsificação de documentos.

Segundo o líder da direita radical, “são milhões – dezenas, centenas de milhões de euros – retirados aos portugueses para alguns fazerem vida à conta disso para, quando chega a ‘hora H’”, não haver Justiça.

“Perante um cenário tão grotesco, tão absurdo, como hoje o país assistiu, não podemos deixar de manifestar a nossa mais profunda perplexidade e revolta. Não se trata do homem José Sócrates ou Ricardo Salgado nem Zeinal Bava... Trata-se do país, de uma teia de interesses que todo o país viu e de formas de financiamento que sabíamos que não poderiam ser de origem lícita”, alegou.

"Fragilidades que põem em crise o funcionamento da Justiça"

Através do Twitter, Catarina Martins, coordenador do Bloco de Esquerda, afirmou que a "instrução do Processo Marquês deixa muitas questões em aberto para o recurso, mas também expõe grandes fragilidades que põem em crise o funcionamento da Justiça".

"Além disso, levanta questões de legislação, em particular quanto aos prazos de prescrição de crimes de corrupção. Ao validar indícios de recebimentos indevidos e de branqueamento, demonstra a urgência da criminalização do enriquecimento injustificado", sublinhou a deputada.

“Confiança na Justiça não se pode basear num único processo”

“Eu penso que a confiança na Justiça não se pode basear num único processo, por muito importante que ele possa parecer aos olhos da sociedade e tendo em conta as pessoas envolvidas nesse processo”, afirmou à agência Lusa o secretário-geral do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP), Paulo Lona, depois de ser conhecida a decisão instrutória da Operação Marquês, processo de 28 arguidos, incluindo o ex-primeiro-ministro José Sócrates.

Paulo Lona insistiu que “a confiança na Justiça por parte da sociedade não está dependente de um único processo e muito menos numa decisão – que é uma decisão provisória - proferida nesta fase, que é uma fase intermédia”.

“O que há é uma apreciação do juiz de instrução criminal sobre a questão dos indícios suficientes, sobre a prova, sobre a qualificação jurídica, sobre a eventual prescrição ou não, sendo certo que essa decisão depois será objeto de recurso”, como já foi anunciado, salientou o magistrado do Ministério Público.  O secretário-geral, recentemente eleito, reiterou que “esta decisão não é uma decisão final, é uma decisão transitória”.

“Iremos aguardar o curso normal do processo e o que é que o Tribunal da Relação irá decidir, sendo certo que muitas das decisões que têm sido proferidas no Tribunal Central de Instrução Criminal têm sido objeto de revogação pelo Tribunal da Relação”, notou o procurador da República.

Questionado se o Ministério Público foi derrotado em toda a linha com a decisão instrutória da Operação Marquês, Paulo Lona destacou que “essa afirmação seria possível se o Ministério Público fosse uma parte no processo”. “Ora, o Ministério Público não é uma parte no processo. Está sujeito a deveres e ao princípio da legalidade e da objetividade, e a sua preocupação é com a verdade material e com a procura da verdade material”, observou. “Portanto, o Ministério Público não sai derrotado ou vencido. A própria Justiça, o sistema, a sociedade, poderá sair derrotado ou vencido conforme for ou não descoberta a verdade material de uma determinada situação. Não se pode, na minha perspetiva, falar nem em vitória nem em derrota nestas situações”, continuou.

Sobre o anúncio do juiz de instrução criminal de ter extraído uma certidão para a Procuradoria-Geral da República averiguar a distribuição do processo da Operação Marquês ao juiz Carlos Alexandre, pela eventual violação do princípio do juiz natural ou juiz legal, o secretário-geral do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público respondeu: “Qualquer magistrado, perante uma suspeita da prática de um crime e se for um crime público, deve fazer a sua denúncia. (…) Presumo que [o juiz] entenda que existirá algum crime”.

"Decisões desta natureza que envolvem a opinião pública de uma forma muito forte não podem ter esta demora"

O ex-ministro da Justiça Fernando Negrão criticou hoje a demora da decisão instrutória da Operação Marquês, fazendo votos para que a Justiça "reaja e se organize" num processo complexo, a bem de todos, incluindo a opinião pública.

"Decisões desta natureza que envolvem a opinião pública de uma forma muito forte não podem ter esta demora", apontou o deputado do PSD e vice-presidente da Assembleia da República, em declarações à Lusa, assinalando que a demora das decisões processuais é uma "prática comum nos tribunais" portugueses.

"Faço votos para que a Justiça reaja, se organize no sentido de perceber que tem em mãos um processo de grande complexidade, que envolve pessoas que tiveram grandes responsabilidades no país e que a opinião pública está igualmente muito envolvida", disse, enfatizando que "a necessidade de celeridade para todos, principalmente para a opinião pública, é muito importante".

Ministério Público “foi muito incompetente”

“Aconteça o que acontecer, a ser verdade o que é dito ali, o Ministério Público foi muito incompetente. Em segundo lugar, eu não fiquei muito convencido, na sua totalidade, com a decisão do juiz”, disse o ex-bastonário da Ordem dos Advogados José Miguel Júdice num comentário no canal SIC.

“Do ponto de vista técnico, a questão sobre a parte fiscal não me convenceu”, exemplificou José Miguel Júdice, ao considerar ainda que, na decisão instrutória da Operação Marquês conhecida hoje, Ivo Rosa “foi um bocadinho mais juiz final do que juiz de instrução".

Segundo o antigo bastonário, o Ministério Público é o “grande culpado por incompetência”, por “não fazer o que qualquer acusador em qualquer parte do mundo faz, que é analisar o caso e acusar naquilo que acha que tem fundamentos para ganhar”.

No seu comentário à decisão de hoje, o advogado salientou que, apesar de o sistema judicial poder ter falhas, na sua globalidade merece confiança.

“Tenho sido ao longo da minha vida muito crítico com coisas que se passavam no Ministério Público, mas não sou capaz de dizer que o Ministério Público português seja idêntico aos de outros países, onde estão infetados por corrupção. Graças a Deus, isso não temos”, assegurou.

“É inevitável que esta decisão vá ter consequências”

A decisão instrutória da “Operação Marquês” foi “demolidora” e “destruiu completamente” a investigação, algo que vai ter consequências, considera a organização Transparência e Integridade.

“É inevitável que esta decisão vá ter consequências” na forma “como a investigação de casos de corrupção vai ser feita em Portugal”, disse à agência Lusa a presidente da Transparência e Integridade, Susana Coroado.

“Depois disto vai ter que se decidir o que se quer que seja uma investigação de casos de corrupção e o que constitui prova”, defendeu Susana Coroado, acrescentando que “a decisão da Relação vai ter de marcar a investigação futura”.

A responsável da Transparência e Integridade, uma organização que promove a transparência para reforçar a prevenção e combate à corrupção, alertou ainda, nas declarações à Lusa, que a confiança dos portugueses na justiça tem estado abaixo da média europeia e que casos como este podem ter um impacto, “e isso é preocupante”.

“A democracia vive da confiança dos cidadãos nas instituições”, salientou, acrescentando que se os cidadãos perdem essa confiança ou não compreendem as decisões “perdem a confiança na justiça e na democracia”.

Num comunicado divulgado hoje a Transparência e Integridade diz também que a decisão instrutória foi “uma violenta crítica ao trabalho de investigação do Ministério Público e do juiz de instrução, Carlos Alexandre”.

Ivo Rosa "parecia o advogado de Sócrates"

"O juiz Ivo Rosa não pareceu um juiz de instrução. Parecia o advogado de defesa de José Sócrates", afirmou à agência Lusa Paulo de Morais, presidente da Frente Cívica e também cofundador e sócio honorário da associação Transparência e Integridade, dedicada à denúncia de fenómenos de corrupção.

Em decisão instrutória, o juiz Ivo Rosa, do Tribunal Central de Instrução Criminal, deixou "cair" várias acusações a José Sócrates, nomeadamente de corrupção, considerando que outras acabaram por prescrever.

Mas o juiz de instrução decidiu que o antigo governante socialista deve ir a julgamento por branqueamento de capitais e falsificação de documentos, secundando nesta parte imputações feitas pelo Ministério Público (MP).

No processo com mais 27 arguidos, o MP associava o antigo governante a um total de 31 crimes.

Sócrates, que se define como social-democrata de centro-esquerda e um político "sanguíneo", conseguiu levar o PS à primeira maioria absoluta, em 2005, e é também, desde hoje, o primeiro antigo primeiro-ministro português a ir a julgamento.

A fase de instrução, hoje fechada, começou em 28 de janeiro de 2019.

Ocorre escassos dias após o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Joaquim Piçarra, ter defendido a extinção da instância que a proferiu (Tribunal Central de Instrução Criminal).