Por: Fernando Peixeiro (texto) e Tiago Petinga (fotos) da Agência Lusa
Passada mais de uma semana após o ciclone, que provocou centenas de mortes e milhares de desalojados, devido ao vento e às cheias, pouca gente sabe que foram esses 40 homens, que na noite do ciclone iam substituindo o muro à medida que caía, que impediram que andassem agora 26 mil crocodilos à solta na zona da Beira. Mas Manuel Guimarães sabe, e a sua gratidão não tem palavras.
Agora que a chuva parou e a quinta já não está cercada pelas águas Manuel Guimarães voltou na segunda-feira ao local, Nhaugau, distrito da Beira,emocionado por ver como uma noite de vento lhe destruiu 10 anos de trabalho. Lá está Anísio Chinguvo e os outros “magníficos”, cortando árvores, limpando a terra, repondo o que é possível repor.
Anísio, natural de Maputo, a trabalhar para Manuel Guimarães há uma dezena de anos, lembra-se bem do dia 14 de março, de quando “o patrão ligou a informar” que tinham que se preparar para um vento muito forte. Anísio, como conta agora, pensou que era brincadeira, que ventos fortes já ele tinha visto em 2000, em 1977. E Manuel Guimarães do outro lado: “Anísio, não brinca, hás de ver o que nunca viste”.
Os 40 trabalhadores colocaram nesse dia chapas isotérmicas junto da cerca dos crocodilos feita de tijolos e cimento, especialmente junto da cerca dos maiores crocodilos, e aguardaram o Idai. Nenhum arredou pé, nenhum foi para junto das famílias.
E na noite de quinta-feira, 14 de março, pelas 22:00, quando o Idai chegou encontrou os 40 ali, sentados ou deitados por causa da força do vento. “Não foi fácil, falar disto dói muito. Cada um pensava, eu vou perder a minha família, os meus filhos, para defender um crocodilo. Doeu, porque duas noites perdidas não e fácil”.
Foram duas noites sem dormir, mas especialmente difícil a noite do ciclone, como Anísio conta à Lusa, ao lado do muro dos grandes crocodilos, que o vento conseguiu derrubar e que agora está substituído por chapas.
Porque não bastava estar ali, porque era preciso ir ver outros tanques, ver se as árvores que caíam não derrubavam outros muros. Mas aquele muro, aquele especialmente dos crocodilos grandes. “Não podíamos estar longe do muro”.
“Sabíamos que se o muro desabasse era um desastre total, não era fácil controlar estes animais lá fora”.
E a verdade é que noite dentro, quando o muro cedeu eles ali estavam, prontos a empurrar as chapas que tinham levado, cortando bambus para as segurar. E às 05:00 de sexta-feira o vento amainava e os crocodilos estavam nos seus tanques.
“Estávamos a fazer o nosso salário, para próximos anos, não só deste mês de março mas para os próximos anos. Imagina que todos os crocodilos se fossem embora, eu não estava aqui, estava na minha casa porque não havia serviço”, diz agora o chefe dos 40 heróis.
Já passou mais de uma semana e Manuel Guimarães, 63 anos, ainda se emociona quando fala dos seus “40 magníficos”.
Se os crocodilos tivessem saído, se tivessem galgado o perímetro da quinta, os 10 quilómetros de valas que a rodeiam, “era grave”, era “uma situação de pânico total”.
“Estaríamos todos, uma cidade inteira, a apanhar crocodilos, a comunidade internacional. Porque era impensável 26 mil crocodilos à solta, especialmente os grandes”.
O empresário lembra também a prevenção com os painéis e emociona-se até às lágrimas quando fala dos seus “40 bravios moçambicanos” que se sentaram ali perto dos muros, a olhar de frente o ciclone e preparados para os substituir com chapas quando eles caíssem.
“É graças a esses 40 homens, que nunca mais podemos esquecer, que não temos uma desgraça para a empresa, porque 26 mil crocodilos são muitos milhares de dólares, e uma desgraça para a população, porque já viram o que era 26 mil crocodilos aí à solta? Seria terrível. Felizmente graças a eles estamos aqui, podemos falar disto que aconteceu”, diz à Lusa.
E acrescenta: “quando havia muito vento sentavam-se ou deitavam-se e na hora em que os muros caíam eles repunham as chapas. É uma história que precisa de ser contada para mostrar que na hora em que é preciso os moçambicanos estão lá. Deixaram as suas casas, os filhos, as famílias, perderam tudo, para estar aqui a defender a quinta, e isso não tem valor”.
Mas Manuel Guimarães ainda tem mais um herói no currículo, um que o faz chorar ainda mais. Chama-se João e esteve ocupado a levar uma manada de vacas para locais altos, por causa das águas, não estando lá quando os seus quatro filhos, o mais novo de dois e o mais velho de 11 anos, foram levados na corrente.
“Quando eu lhe perguntei ´como é que estão os animais´ ele disse ´patrão não perdi os animais mas por causa de estar lá perdi os meus quatro filhos”.
João ficou na quinta a encaminhar os animais para lugares altos, eram 2.000 e o lugar alto do costume não era suficientemente alto desta vez. E a água chegou depressa. Na quinta de Nhamatanda, relata citando os trabalhadores, “de manhã estava no sapato, uma hora depois nos joelhos, meia hora a seguir na cintura e uma hora mais e estavam a fugir para cima das árvores”. “Eu nunca vi isto, estou cá há 25 anos, nunca a água atingiu estes níveis”.
Há 25 anos Manuel Guimarães veio por três meses, para exportar camarão. Hoje é um dos maiores criadores de gado de Moçambique, exporta camarão para Portugal, as suas empresas foram distinguidas como as segundas maiores Pequenas e Médias Empresas no âmbito da exportação e da exportação de produtos de mar.
O projeto dos crocodilos foi pensado para minimizar a perda de vidas humanas e mediante um acordo com o Governo foram recolhidos ovos para desenvolver a quinta. As peles e os produtos derivados são vendidos para Portugal, Itália, Coreia do Sul e Japão. Os sapatos são feitos em Portugal e as malas em Itália.
A quinta dos crocodilos foi crescendo, era agora também um restaurante e já estava a começar um projeto de ecoturismo, com duas casas em madeira prontas. “Era uma quinta linda”, crescendo devagarinho, “com gosto”, um trabalho de 10 anos, “e um dia desapareceu tudo”.
Mas não só. No distrito de Buzi perdeu todos os animais e em Nhamatanda calcula que meio milhar. E a quinta dos crocodilos está lá a mostrar as suas desgraças, árvores caídas, casas destruídas, armazéns derrubados. Acabou o restaurante, a piscina, o “paint ball”, o ecoturismo. Tudo feito com “tanto gosto”.
Mas é o menos, porque o que não lhe sai da cabeça é o empregado João. Tem andado a ajudar na procura dos corpos dos filhos, mas até domingo ainda não os tinham encontrado.
Ao “senhor João” vai fazer-lhe uma casa, vai dar-lhe um terreno. Quando o diz emociona-se de novo. E acrescenta depois: “mas nunca lhe posso devolver os filhos”.
A Manuel Guimarães faltam palavras para agradecer, ao empregado João e aos “40 magníficos” da quinta dos crocodilos.
E por causa deles, com a ajuda deles, não tem dúvidas. Não é “um ciclonezito de 280 quilómetros por hora” que os vai fazer parar.
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