“Eu quase diria que os portugueses têm, para começar, uma grande vantagem, que é o passaporte português. É dos poucos no mundo que não tem restrições de entrada em nenhum dos cenários em conflito em que tenho andado”, refere Nelson Olim, que é há dois anos e meio o único médico português a trabalhar em exclusivo no Comité Internacional da Cruz Vermelha.
Como exemplo, Olim refere que o seu antecessor no cargo de cirurgião sénior no Comité Internacional da Cruz Vermelha era libanês e que havia países para os quais não podia viajar por causa da nacionalidade.
“Existem imensos cenários onde há restrições de nacionalidade, para franceses, britânicos, americanos, australianos, canadianos. E não conseguem entrar em cenários em conflito. Nós, portugueses, conseguimos ir para qualquer lado no mundo, o que é uma vantagem enorme”, assinala o cirurgião de guerra português em entrevista à agência Lusa.
A integração cultural e a capacidade de se desenrascar são outras caraterísticas que Nelson Olim distingue nos portugueses e que lhes confere vantagens em cenários de guerra ou de conflito.
“Aquilo que eu vejo em muito destes contextos é que os portugueses tentam sempre estabelecer laços com a comunidade local e tentam integrar-se e aprender coisas da língua local. E depois temos este ‘desenrasca’ que é tão típico, de improvisar e conseguir encontrar alternativas onde outras nacionalidades, pela sua formação cultural, bloqueiam”, afirma.
Contudo, o cirurgião afirma que é preciso mais do que ter capacidade de adaptação a novas situações para se conseguir entrar em missões em contextos de guerra.
“Do ponto de vista pessoal tem de haver algum desapego. Não sei se é muito bom como característica de uma pessoa, mas é quase uma condição. Temos de conseguir desapegar-nos para largar tudo e ir dois ou três meses para onde nos falta quase tudo”, refere.
Tem ainda de haver verdadeiro gosto pelo trabalho humanitário, a par de alguma frieza e sangue frio e nunca pode faltar a humildade: “Cada vez mais é isto que sinto. Nestes cenários não pode haver ‘prima donas’, temos de ser humildes e reduzir-nos àquilo que somos, à nossa pequenez”.
O cirurgião que está há dois anos e meio em exclusivo no Comité Internacional da Cruz Vermelha admite que há cada vez mais dificuldade de acesso a algumas zonas em conflito, devido à fragmentação dos grupos em oposição.
“Uma das razões pelas quais ainda não conseguimos ter equipas cirúrgicas na Síria é porque há mais de 100 grupos identificados e diferentes a lutar no país. Como é que é possível, neste contexto, garantirmos a segurança das nossas equipas? Porque nós não temos proteção armada, não temos nada, temos apenas uma cruz”, refere o médico em entrevista à agência Lusa.
As dificuldades de acesso devem-se à alteração do panorama dos conflitos. Enquanto há 50 ou 60 anos era relativamente fácil compreender que havia dois blocos ou dois estados em oposição num conflito armado, atualmente são raros os cenários em que isto se verifica.
“O Comité Internacional da Cruz Vermelha tem como princípio a independência, a neutralidade e a imparcialidade. O que quer dizer que, em qualquer conflito onde entremos temos de ter o acordo das partes em conflito. Têm de perceber que vamos apoiar todos os lados”, explica o cirurgião português.
Nelson Olim reconhece que a cirurgia de guerra é uma área “com futuro”, na medida em que os conflitos vão crescendo no mundo, mas alerta que há cada vez mais dificuldade de acesso por parte das organizações humanitárias.
“Não há nenhum conflito hoje em dia que eu possa dizer: isto vai melhorar nos próximos tempos. A maior parte dos conflitos está numa fase de escalada. E há muitas situações que são barris de pólvora”.
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