Durante seis dias e doze horas, Paula Gonçalves, 35 anos, não tem, teto. Saiu em precária da prisão para a rua. Foi despejada da casa que lhe foi atribuída no bairro do Lagarteiro, no Porto. “Já paguei pelo crime e estou a ser condenada outra vez. Fico seis anos e meio dentro da cadeia, tenho as rendas todas pagas, está tudo preparado para sair, organizado para começar uma nova vida, já com trabalho, e tiram-me o teto?”
A história de Paula não começa em 2012, ano em que entrou na cadeia. Tampouco há de começar nas vésperas do Natal do ano passado, data da ordem de despejo assinada pelo vereador Fernando Paulo, da Câmara Municipal do Porto.
No documento, a autarquia — dona do imóvel — justifica o despejo com “o não uso da habitação e permissão de permanência na habitação, por período superior a um mês, de pessoa que não pertença ao agregado familiar, sem autorização prévia do senhorio”.
Alega a câmara que “de acordo com as diligência efetuadas”, Paula e a família (três filhos, dois dos quais menores), “não ocupa a habitação há mais de dois anos”. Porém, as saídas precárias da cadeia onde está desde 2012 começaram há dois anos e levaram Paula sempre à casa do Lagarteiro.
O processo não é novo. Em 2016, o então vereador com o pelouro da habitação, o socialista Manuel Pizarro, assinava uma notificação de intenção de despejo. Os argumentos eram idênticos. E em 2017, um outro despacho averigua a eventual permanência de pessoa não inscrita no agregado naquela habitação.
O executivo do independente Rui Moreira alega que está simplesmente a concluir um processo iniciado pelo anterior vereador. Sublinha, no entanto, que mesmo que Pizarro não o tivesse feito, Fernando Paulo fá-lo-ia agora: a lei é para cumprir, defende Moreira.
Manuel Pizarro diz agora que os processos que abriu enquanto foi vereador não tiveram sequência no seu mandato. Explica que as explicações da inquilina e do estabelecimento prisional lhe chegaram para reconhecer que o processo não deveria ir avante. E não fui, assegura.
“A câmara municipal do Porto mente, mente deliberadamente e manipula a informação para procurar mentir com maior eficácia”, atirou o socialista numa conferência de imprensa para reagir às informações dadas pela autarquia à imprensa. "Posso perceber o embaraço político de Rui Moreira com o desmascarar da inversão completa da política social da câmara em relação ao anterior mandato". Embaraço que, continua o agora vereador sem pelouro, é resolvido "transformando o Porto numa espécie de pátria das fake news [notícias falsas]".
Minutos antes, Rui Moreira falava ao contrário: “está provado que o vereador Manuel Pizarro assinou o despejo”, assegura o autarca. “Mais tarde, [Pizarro] impediu que o pai da pessoa em causa, que tinha ocupado ilegalmente a casa, fosse integrado no agregado.”
Agora, a casa está vazia, dizem os moradores do Lagarteiro. Cerca de seis dezenas juntaram-se à porta do prédio de Paula para a receber. No regresso a “casa”, Paula tanto chora como sorri, ao ver amigos e vizinhos reclamarem que “não faz sentido a Câmara despejar a rapariga presa em 2012 quando ela está prestes a sair em liberdade” e tem três filhos, “dois ainda menores”.
Paula aguarda a decisão do tribunal sobre o pedido de liberdade condicional e para a ter precisa de indicar uma morada, mas a Câmara do Porto emitiu em dezembro uma ordem de despejo da casa do bairro do Lagarteiro, que os moradores dizem continuar “vazia”.
Os documentos a que o SAPO24 teve acesso, têm datas de 2016, 2017 e 2018. Os primeiros, assinados por Manuel Pizarro, são uma “notificação de intenção de despejo”, cujo objetivo é, segundo o gabinete de Pizarro, informar os inquilinos de que o processo será aberto e que devem apresentar os seus argumentos; e um relatório de despacho em que Pizarro propõe “que seja preparado, de imediato, processo de despejo”.
Este processo, assegura o socialista, tinha como objetivo despejar não Paula ou os filhos, mas outra pessoa que permanência na habitação. Todavia, a câmara do Porto não permite o acesso a mais documentação sobre assunto, escudando-se na proteção de dados dos envolvidos.
Em janeiro de 2018, Fernando Paulo, que sucedeu a Pizarro no pelouro da habitação, notificava Paula da “intenção de resolução do arrendamento apoiado”, justificando-se na não ocupação da casa por Paula (que está presa desde 2012).
Legalmente, uma habitação social não deve ficar desocupada por mais de dois anos. Ora, crendo nos argumentos do atual executivo, a casa de Paula esteve vazia seis anos até a autarquia decidir agir, despejando a inquilina numa altura em que a pena está a aproximar-se do final.
A 3 de junho de 2018, Fernando Paulo notifica a inquilina da resolução do contrato, apesar de reconhecer “um percurso evolutivo positivo”, que lhe tem permito saídas precárias.
Por fim, a 22 de dezembro de 2018, Fernando Paulo assina a ordem de despejo.
À agência Lusa, tanto Paula como o advogado que lhe nomearam garantem ter sido oficialmente informados do despejo em fevereiro, já depois de lhe terem tirado os objetos pessoais do apartamento, de lhe deitarem “coisas ao lixo” e mudarem a fechadura.
O processo de despejo está, por isso, a ser “impugnado” em tribunal, segundo explica à mesma fonte o advogado Albano Loureiro.
As casas não são para traficantes
Rui Moreira insiste: “a pessoa em causa está detida desde setembro de 2012 a cumprir pena de quase nove anos por tráfico de droga. Abandonou a sua residência em 2012 e deixou de pagar a renda. Nos termos da Lei e do Regulamento Municipal, tal é motivo para despejo”, disse o autarca numa conferência de imprensa, esta quinta-feira.
Contactada pela Lusa, a Câmara do Porto, liderada pelo independente Rui Moreira desde 2013, reafirmou que, “quanto à reclusa, a Lei e o Regulamento foram aplicados”.
“A habitação social custa muitos milhões de euros aos portuenses, que não aceitam que casas fiquem vazias anos a aguardar que pessoas condenadas por tráfico de droga as voltem a ocupar”, refere a resposta do gabinete de comunicação.
A autarquia acrescenta que “herdou do mandato passado e da gestão que Manuel Pizarro fez na habitação social uma lista de mil famílias à espera de habitação”.
Já Manuel Pizarro insiste que a lei “possibilita o despejo”, mas não obriga a fazê-lo.
Ainda assim, em 2015, Manuel Pizarro dizia o mesmo que agora a câmara advoga. Segundo atas citadas por Rui Moreira, em reuniões de câmara nessa altura o socialista defendia que "se tiver de escolher, [poria] sempre em primeiro lugar as famílias que não traficam."
Uma casa vazia e a Paula sem casa
“Temos aqui uma casa vazia e a Paula está na rua. Isto é de uma imensa crueldade. É irresponsável e de uma total falta de sensibilidade”, frisou este sábado José Soeiro. O deputado do Bloco de Esquerda destacou que “em Portugal não há penas perpétuas” e que Paula “já pagou pelo seu crime”.
“Não tem de pagar outra vez ficando sem a casa”, disse, citado pela Lusa. Para Soeiro, “a Câmara não é o tribunal e tem de garantir o direito à habitação a uma moradora que tem as rendas liquidadas”.
O assistente social do bairro, José António Pinto, frisou ainda ser mentira que a autarquia “nunca soube” da possibilidade de Paula sair em liberdade. “Escreveu quatro cartas à Câmara e a diretora adjunta do estabelecimento prisional informou dos prazos e previsões. A correr bem podia ter saído em agosto, a correr mal, saía em fevereiro ou março”, afirmou.
Pinto criticou “a política cruel do vereador da Habitação que, tendo conhecimento de que Paula podia ter liberdade condicional a qualquer momento, fez o favor de assinar a ordem de despejo”
O independente Rui Moreira afirmou na quinta-feira que “o que sabe a Câmara é que, até ao momento”, não foi “concedida liberdade” à reclusa, notando que “não existe preceito legal que pudesse inverter a decisão, criando uma situação de exceção”.
A agência Lusa cita uma carta da Presidência da República, com a data de terça-feira, a “acusar a receção” de dados sobre o caso e a informar que, naquele dia, “foi enviada cópia à Câmara do Porto” da informação recebida.
Questionada pela Lusa, a autarquia diz que “teve, de facto, conhecimento da carta enviada à Presidência da República”, mas acrescenta: “Estranhamente, tinha envelope e remetente da Junta de Freguesia de Campanhã, a única do PS, algo que não conseguimos explicar”, escreveu o gabinete de comunicação.
A autarquia acrescenta ter sido informada de “que a reclusa recusou a ajuda social e a casa temporária que a Santa Casa da Misericórdia lhe ofereceu, por já ter um apartamento T1 em Valbom onde afirmou ir ser alojada aos serviços prisionais”.
Para a Câmara, “a única dúvida que pode restar” sobre o caso é que, “durante quatro anos, no mandato passado, a ação de despejo iniciada por Manuel Pizarro acabou por não ser executada, contra os preceitos legais que este então invocou, por razões que só o próprio pode explicar”.
Liberdade precária, habitação precária
Paula voltou este sábado ao Lagarteiro, mas vai dormir numa “casa emprestada”. Na família, que também reside em bairros da câmara, ninguém arrisca dar-lhe guarida. “Ficou tudo com medo. Aconteceu comigo [o despejo], agora toda a gente fica com o pé atrás”, explica.
É que a guarida dada ao pai foi um dos argumentos invocados pela autarquia para lhe tirar a casa. Agora, nas mãos geladas, Paula carrega um saco cheio com as cartas que enviou e recebeu por causa do despejo, enquanto recebe apoio dos cerca de 60 manifestantes, entre deputados, vereadores e artistas, que este sábado pediram à autarquia a revogação da ordem de despejo.
“Depois de tanto tempo, agora é que se lembram?”, atira Maria Machado, também moradora no Lagarteiro. Para a vizinha de Paula, ouvida pela Lusa, “a dar [casa] é a quem tem filhos”. “Há aí tanta gente que deve rendas e que ninguém põe na rua! Ando eu e outras morconas a pagar por eles. E agora é que se lembram de por a catraia na rua”, questionou.
Paula assegura que tem tudo “pago”. “Os seis anos e meio [que decorreram entre a prisão, em 2012, e agora] estão pagos até janeiro. Estão todas as rendas em ordem. Água e luz, está tudo pago. Tenho os recibos”, garante.
Rui Moreira assegurava na quinta-feira que caso Paula recebesse liberdade condicional este sábado, não iria ficar sem casa, já que a Santa Casa da Misericórdia lhe asseguraria habitação. Porém, Paula diz que ninguém lhe garantiu nada.
“Não sei qual é a solução que têm para mim. Tenho um contacto da Santa Casa para trabalho e para meter os papéis do RSI [Rendimento Social de Inserção], mas quero viver do meu trabalho e quero uma casa, não quero uma casa abrigo, nem uma casa provisória”, diz à Lusa. “Não tem cabimento tirar uma casa com tudo pago”, desabafa.
“Eu vinha de precária [desde 2017, de dois em dois meses] e fazia compras, a sogra fazia compras para filhos estarem aí ao fim-de-semana. Deitaram detergentes ao lixo. Deitaram dinheiro fora”, lamenta. Agora, Paula pretende “pedir” que lhe devolvam “a casa e as coisas”.
“Preciso da minha casa”, atira, com as lágrimas a cair, agarrada a uma ex-vizinha, de 80 anos, que se deslocou hoje de propósito ao bairro para apoiar Paula e lhe dizer muitas vezes “não chores”.
[Com Lusa]
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