Tiago Guerra e a mulher, Fong Fong, foram condenados pela justiça timorense em agosto a oito anos de prisão efetiva e ao pagamento de uma indemnização de 859 mil dólares (719 mil euros) por peculato (uso fraudulento de dinheiros públicos), sentença de que recorreram. No início do mês, o casal fugiu de Timor-Leste num barco em direção à costa australiana, de onde viajaram para Portugal, onde chegaram no sábado passado.

“Sem possibilidade de tratamento físico [das doenças de que ele e a mulher padecem], sem possibilidade de reunião com a família [têm dois filhos menores], sem possibilidade de trabalhar e de ganhar a vida, porque sem documentos de identificação nem sequer podia assinar um contrato, com uma intenção que se via condenatória de todo o sistema judicial, tomámos esta decisão e passámos o oceano para a Austrália”, declarou hoje Tiago Guerra no parlamento.

O cidadão, acompanhado pelo advogado e pelo seu pai, foi ouvido pelo deputado António Gameiro, relator de uma petição que pedia a extradição do casal para Portugal e que está a ser analisada na comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias.

“Gostaria de lutar para que o nosso nome seja limpo e para que possamos recomeçar uma vida, junto das nossas crianças, família e amigos, e voltar a ser um membro útil da sociedade, que eu sei que não tenho sido nos últimos anos. Isso tem-nos custado bastante a todos”, comentou Tiago Guerra.

O advogado, Pedro Mendes Ferreira, declarou que “aquilo que o Tiago quer não é fugir à justiça timorense”, mas “ter a oportunidade de ter acesso a um julgamento justo, em que consiga preparar a sua defesa e instruir as provas para provar a sua inocência, porque é essa verdade que ele defende”.

Mendes Ferreira justificou o que disse ser a “ausência forçada” do casal de Timor-Leste com “um estado de necessidade”, afirmando que o processo em Timor-Leste “não era um processo judicial, mas politizado” e que os dois portugueses “não tiveram acesso a uma justiça de um país que se diz de um Estado de direito”.

O casal Guerra pretende que o processo seja “transferido para Portugal nos termos em que está e que seja um tribunal português a assumir a condução daquele processo judicial, obviamente numa fase de recurso, e ser sindicada aquela primeira condenação no Tribunal de Relação de Lisboa”, acrescentou.

“O Tiago está cá, não se vai refugiar em nenhum subterfúgio jurídico. Está aqui para enfrentar o que tiver para enfrentar”, garantiu o advogado.

Carlos Guerra, pai de Tiago e primeiro subscritor da petição, que reuniu 4.096 assinaturas, comentou que “não havia tempo para continuar a aguardar”.

“A qualquer momento o assunto poderia ficar mais grave, e não houve outra alternativa senão esta que aconteceu de saírem de Timor e se refugiarem na Austrália. Eu queria agradecer às autoridades portuguesas todas as facilidades legais para que isto fosse possível. Foi uma grande felicidade”, afirmou.

“Numa reunião com o senhor presidente do Supremo Tribunal, pusemos os vários cenários. Um dos cenários foi a possibilidade de haver um golpe de magia e o Tiago e a sua mulher aparecerem cá em Portugal. As palavras do senhor presidente do Supremo foram: gosto dessa magia, gosto dessa perspetiva”, comentou ainda.

A entrega recente de passaportes ao casal pela embaixada portuguesa em Díli foi criticada em Timor-Leste, mas o ministro dos Negócios Estrangeiros português, Augusto Santos Silva, garantiu que a legislação portuguesa foi respeitada, conclusão de um inquérito urgente que tinha ordenado.

O deputado-relator afirmou que há “um caminho para que a Assembleia da República possa interceder, em nome do povo português, mas dirigida aos ministérios dos Negócios Estrangeiros e da Justiça” de Portugal, no sentido de que o processo “tenha o desfecho que o Tiago aqui sublinhou”.

“É dever da Assembleia da República fazê-lo, por uma questão de justiça, de defesa da verdade material da vida das pessoas”, disse António Gameiro, que recordou “relatos, na comunicação social e na sociedade timorense”, com “opinião contrária ao processo”.

O antigo Presidente e Nobel da Paz timorense, José Ramos Horta, apelou à justiça timorense para absolver o casal.

Também presente na audição, a deputada do Bloco de Esquerda Sandra Cunha afirmou a solidariedade “com a situação e com todos os cidadãos em dificuldades noutros países”.

“Parece que há várias incongruências neste processo, não podemos tomar outra posição que não seja a de compreensão e de agradecimento por terem vindo e também uma palavra de coragem”, disse, depois de pedir a Tiago Guerra que faça chegar mais documentação sobre o processo.

A 24 de agosto um coletivo de juízes do Tribunal Distrital de Díli condenou o casal de portugueses Tiago – antigo trabalhador do Banco Mundial - e Fong Fong Guerra a oito anos de prisão efetiva e uma indemnização de 859 mil dólares por peculato.

O tribunal declarou os dois arguidos coautores do crime de peculato e absolveu-os pelos crimes de branqueamento de capitais e falsificação documental de que eram igualmente acusados.

O casal recorreu da sentença, pedindo a absolvição e considerando que esta "padece de nulidades insanáveis" mais comuns em "regimes não democráticos", baseando-se em provas manipuladas e até proibidas.