Os nocturnos passageiros olham e passam ao largo. As frontes logo se enchem de asco, os humores num instante recaem. Há quem evite olhar. O lixo é uma realidade que perturba, sobretudo quando remexido, transportado, esmagado. O odor fétido revela-se mais ainda e as pessoas anseiam que os fantasmas fluorescentes passem depressa para que a praça R. possa voltar à sua essência fulgurante, quase mística, com as luzes dos candeeiros revelando a calçada limpa, os vultos solitários das árvores, as vitrinas desimpedidas dos restaurantes.
O camião segue agora para a rua A. É uma rua de sentido único com espaço para um veículo apenas. Não demora muito até se formar uma fila de carros. Ninguém apita, mas parece que os faróis dos carros estão luzindo de aflição. Florêncio e Manuel Vítor correm para as portas dos prédios, rasgam os passeios com as sobras do dia. Mais caixotes e mais sacos. Não se podem demorar.
O assobio de Florêncio vai zunindo aqui e além, o acelerador do camião preme-se um tudo-nada logo depois de ele soar. Os homens metem-se nos poleiros, que é como chamam à pequena plataforma metálica, na parte traseira do camião, onde se colocam aquando da deslocação do veículo. Quando aquele pára, saltam do poleiro, que é uma expressão que serve sempre para entreter os novatos nas primeiras vezes. Acham sempre piada quando alguém diz que vai saltar para o poleiro, sabendo que esse salto, o figurado, não o literal, é uma fantasia que poucos irão concretizar.
Sempre que vem um novato, Florêncio gosta de lhe explicar alguns procedimentos básicos. Hoje está com Manuel Vítor, que já não é novato, por isso não precisa de lhe dizer para ter sempre as luvas calçadas. Os cantoneiros devem ter sempre as luvas calçadas porque o lixo possui perigos que os podem ferir gravemente. Florêncio já o sentiu na pele algumas vezes. Vidros, agulhas, seringas. Ao lixo vão parar todo o tipo de objectos cortantes e invasores. As luvas são bastante grossas, de um tecido resistente que impede os cortes. Por isso é essencial tê-las sempre postas, mesmo que muitas vezes, com o calor e o suor, apeteça tirá-las.
Foi isso que aconteceu logo nas primeiras semanas de trabalho de Florêncio como cantoneiro. Era Verão, estava calor. O homem transpirava e sentia as mãos a ferver. Achou que podia muito bem trabalhar sem elas, mesmo que lhe tivessem recomendado o contrário. Meteu a mão num saco e zás, um vidro rasgou -lhe a palma da mão. Foi tão fundo que teve dificuldade em parar a hemorragia. Levaram-no para o hospital e coseram -lhe a ferida com sete pontos. Ainda hoje a cicatriz lá está, tão funda como uma das linhas da palma da mão.
Serviu para lição, é esse o propósito dos erros. Não voltou a ferir-se nas mãos, embora haja, contudo, outros perigos que o lixo guarda. Os líquidos ácidos e corrosivos, por exemplo. Se por acaso caem sobre a pele, podem queimar, provocar alergias ou doenças graves. Florêncio precisa de andar constantemente de olho vivo e mão criteriosa no seu labor. As normas de trabalho que lhe ditaram não foram feitas por mero acaso, servem para proteger a sua integridade, para que esteja disponível e seguro para continuar a sua missão.
Na rua A. já não circulam muitas pessoas. Das janelas vêem-se poucas luzes, a maioria dos estores estão fechados. Os passeios são curtos e o lixo intromete-se na passagem. É uma rua bastante comprida, mas apertada, e a altura dos prédios, de cinco a seis andares, torna-a uma espécie de túnel infindável. Lá atrás, os carros vão acompanhando o ritual lento, como numa procissão. Há mesmo um veículo que buzina. Talvez não tenha percebido que o motivo da fila se deve à recolha do lixo. Ou então percebeu, mas não quer saber. Tem pressa para alguma coisa, até de noite os homens têm horas a cumprir ou anseios imediatos que urgem prontidão.
Finalmente, o camião chega ao fim da rua e vira numa transversal, onde a estrada tem duas faixas e os carros podem ultrapassar. É num monte de lixo mais à frente que Florêncio encontra, pousado sobre um caixote, um livro. Pega nele e verifica que está em perfeito estado. O seu título é Coração das Trevas e o autor Joseph Conrad. Florêncio sabe que não pode guardar o lixo para si, mas, na verdade, custa-lhe deitar os livros fora. Além disso, consegue perfeitamente escondê-lo no bolso interior do casaco e nunca ninguém dará por isso. É precisamente o que faz. Antes de o fazer, porém, abre o livro ao acaso e lê uma pequena passagem.
Esqueci‐me que existia uma coisa chamada sono. A noite pareceu durar menos de uma hora. De tudo! De tudo! De amor também...
Volta a fechar o livro, acondiciona -o no bolso interior do casaco e continua o trabalho. Parou cinco segundos e já Manuel Vítor está a chamá-lo.
– Então, você fica para trás!
Felizmente que o homem não o viu a abrir o livro, poderia julgar que estava menosprezando o trabalho. Ler não é coisa que se coadune com a profissão de cantoneiro. Não há lembrança de que alguma vez os caixotes e contentores se tenham carregado com recurso às palavras. Por isso, Florêncio volta à carga e rapidamente alcança o outro. Nesta rua não há carros estacionados, o que facilita o transporte dos caixotes.
A noite está fria e começa a cair uma névoa húmida que enregela os corpos dos cantoneiros. Florêncio lembra-se de que é este o verdadeiro frio, o frio que atravessa a pele e a carne, que se aloja impiedosamente nos ossos. Mesmo correndo, mexendo -se o corpo, exercendo os músculos a sua força, o calor produzido parece insuficiente para combater o gume gélido da noite. Há que continuar. O frio não é razão bastante para os homens desistirem do trabalho que têm em mãos.
O camião vai percorrendo lentamente a teia intrincada de ruas da Baixa, rasando milimetricamente os carros e as esquinas. Parece que foi feito de uma medida escrupulosa, se tivesse mais dois centímetros já não passaria em certos sítios. Isto é a experiência do condutor, que controla o veículo com perícia, que sabe como o enfiar nos menores buracos.
***
***
Sei que o meu pai não leu este livro. O meu pai encontrou este livro no lixo, mas nem parece possível, de tão bom estado que aparenta. Quando passei na livraria do senhor Peres, o homem ainda se lembrava da passagem que o meu pai guardou.
Apontou-a num pedaço de papel e deu-mo.
«Com o avançar da noite, do vale escuro voltava a subir o sopro do medo. Com o avançar da noite, Drogo sentia‐se pequeno e só.»
O senhor Peres diz que o meu pai escolhe passagens ao acaso dos livros e guarda-as na memória. Diz que lhe custa ler. Custa-lhe meter tantas palavras na cabeça. O senhor Peres diz que o meu pai fica contente por guardar essas palavras, mesmo que sejam poucas. Que essas ninguém lhas tira. O meu pai guarda as palavras como se fossem conchas do mar e as pudesse carregar nos bolsos. Tal como as conchas do mar, as palavras têm peso, chocalham ao embaterem umas nas outras e não têm utilidade além de se olhar para elas em momentos de maior lucidez.
Eu, pelo contrário, gosto de ler, mas tenho dificuldade em memorizar o que quer que seja. Duvido mesmo que seja capaz de recordar esta passagem daqui a umas horas. Talvez devesse fazer como o meu pai, escolher algumas palavras e guardá-las como quem guarda conchas do mar. Só as suficientes para caberem no bolso, para levar para qualquer lado, para mostrar a alguém que revele interesse.
Não falo com o meu pai há quase um ano. A última vez que falámos foi ao telefone, depois de a minha mãe lhe ter passado a chamada, no dia de Natal. Uns meros segundos. Eu tentando revelar a alegria, ele tentando engolir o orgulho. A vergonha. O meu pai não consegue conceber que eu ganhe a vida através do meu corpo. É isso que diz à minha mãe, que a filha ganha a vida com o corpo. Esquece-se que todos ganhamos a vida com o corpo. Estamos confinados a ele, nada podemos fazer sem recorrer a ele. Todos vendemos o corpo, de uma forma ou de outra.
O meu pai julga que há mais dignidade em recolher o lixo dos outros do que servir os seus desejos. Há muito que deixei de ver as coisas assim. Não sacralizo o sexo nem julgo os que buscam o prazer. Não me julgo. Há muito que essa batalha cessou para mim. Não me censuro por dar prazer aos homens. Por lhes dar um momento de paz. Quantos não choram no meu regaço, quantos não se prostram aos meus pés como crianças?
Recebo-os, amo-os, alimento-lhes uma fantasia. Eles precisam de mim tanto quanto eu preciso deles. Há forças insondáveis dentro de nós que necessitam deste acordo. Amamo-nos nesta força e nesta fraqueza, no ódio que guardamos ao mundo, a nós mesmos. Existimos na dobra do mundo, no quarto das traseiras, na sombra esquecida. Sem a nossa invisibilidade, tudo estaria perdido. Somos as conchas partidas que o mar dá à costa, as conchas feias que ninguém quer levar no bolso. Mas existimos, continuamos a vir lamber a areia na esperança de que alguém nos veja. O mar vai-nos batendo e fustigando, o tempo ensina-nos a compreender o mundo.
O livro começa com a partida do tenente Drogo para a Fortaleza Bastiani. Drogo é um homem solitário, um sonhador, mas a Fortaleza Bastiani não parece o lugar ideal para alguém assim. Drogo dorme sozinho num quarto frio e despido. Olha para o horizonte com uma melancolia triste. Quanto não daria Drogo para passar a noite com uma mulher como eu?
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