![Pré-publicação de](/assets/img/blank.png)
Um
Krissy, 1994
Os residentes de Wakarusa, Indiana, teciam intrigas mais depressa do que uma aranha tece a teia. Sempre que um deles fazia algo que não devia – quando Abby Schmuckers foi apanhada a roubar batom na loja dos chineses; quando o filho dos Becker desistiu do clube de voluntários da 4-H; quando o Jonah Schneider adormeceu e ressonou na igreja –; a cadeia de intrigas de Wakarusa dava com a língua nos dentes, mastigando o boato tão exaustivamente que, quando finalmente o cuspiam, a Verdade estava retorcida e irreconhecível, transformada na História. E porque a gente de Wakarusa era gente que ia à igreja, cumpria à lei e temia a Deus com D grande, a História era sempre adornada com pérolas de doçura para cobrir as suas arestas afiadas: Coitadinha, mas… Vou rezar por eles, porque… soubeste…? Deus tenha piedade deles.
Mesmo antes de tudo acontecer, Krissy Jacobs compreendera o poder das más -línguas de Wakarusa, e por isso evitara tão rigorosamente o seu veneno. Ia à igreja todos os domingos, vestia a filha de cor-de -rosa e o filho de azul, usava os sapatos certos e assegurava-se de que o marido tinha as gravatas certas. Não era porque acreditasse que tudo isto importasse; era simplesmente porque tinha muito a perder. Esta vida – a sua família, a quinta e a casa deles – não era o que quisera, não estava sequer perto, mas era mais do que alguma vez tivera, e portanto agarrava-se a ela, de mãos firmes.
No dia em que tudo lhe escapou por entre os dedos, Krissy levantou-se com o som do despertador às cinco da manhã como fizera todas as manhãs da sua vida enquanto mulher de um agricultor. Saiu da cama silenciosamente para não perturbar Billy, embora o despertador também fosse para ele. Depois saiu do quarto escurecido e desceu a velha escadaria de madeira até à cozinha.
Viu os escritos na parede ainda antes de descer o último degrau, com o fôlego a latejar-lhe nos pulmões. Rabiscadas em letras vermelho-sangue gigantes estavam três mensagem horrendas:
QUE SE FODA A VOSSA FAMÍLIA... AQUELA CABRA FOI-SE... TÊM O QUE MERECEM.
O coração de Krissy martelava-lhe forte e dolorosamente contra as costelas. O seu primeiro pensamento – bizarro e desadequado – foi que as palavras pareciam tão… intrusivas ali, nas suas velhas mas imaculadas paredes brancas, na cozinha a cair aos pedaços mas ainda bonita. Aquelas palavras feias, violentas, não tinham lugar na pitoresca vila de Wakarusa, Indiana, cheia de gente boa e devota. Quando a vila soubesse disto, Krissy tinha a certeza, aquelas palavras manchariam todos os membros da sua família para o resto da vida.
Ficou parada no último degrau, a tremer. Embora o sol ainda não tivesse nascido e a sua cabeça estivesse turva, era claro que estas palavras eram o advento de algo terrível. AQUELA CABRA FOI-SE, Krissy leu de novo, e desta vez a vergonha tingia-lhe o pânico. Algo estava terrivelmente mal, e a única coisa que ela conseguira pensar fora: O que é que os vizinhos vão dizer?
Dois
Margot, 2019
Margot parou o carro à porta da casa do seu tio Luke, desligou o motor e recostou-se no seu assento. Pela janela do lado do passageiro, olhou para a casa baixa e ampla dos anos 70, estilo ranch, e o seu corpo arrepiou-se de medo. A última vez que passara a noite ali em Wakarusa, a vila onde crescera, fora há 20 anos. Tinha 11 anos.
A terra natal de Margot chamava-se Salem originalmente, mas o nome tinha sido mudado na década de 1850 para evitar confusão com a outra Salem do Indiana. A etimologia perdera-se na história, mas a sabedoria convencional dizia que a palavra nativo-americana Wakarusa se podia traduzir como «com lama até aos joelhos». Tanto o nome antigo como o novo pareciam a Margot estranhamente apropriados. Um evocava o homicídio de raparigas inocentes, o outro insinuava quanto era difícil partir. Ainda que, para Margot, a lama parecesse mais areia movediça. Quanto mais se lutava contra ela, mais ela nos puxava para baixo. Durante anos, pensou que escapara, e agora aqui estava, mais uma vez de volta.
Mas, mais do que apenas a vila, o que estava a fazer o coração de Margot latejar agora era a versão que o tio ia apanhar naquela noite. A verdadeira. Ou a má.
Respirou fundo, tirou as malas do banco de trás e subiu o caminho. No patamar da frente do tio havia uma lâmpada numa gaiola de arame a iluminar o espaço com uma trémula luz amarela. O som de traças a chocar os seus corpos contra ela lembrou a Margot verãos de infância ali – dias longos e quentes de joelhos esfolados e canelas cortadas nos campos de milho. Levantou um punho
e bateu à porta.
Passado um momento, Margot ouviu o ruído seco de uma lingueta e então a porta entreabriu-se devagar, rangendo. O seu sorriso forçado esmoreceu.
– Tio Luke?
Pela frincha escura da porta, estudou as mudanças no tio desde a última vez que o vira. As rugas do rosto pareciam ter-se aprofundado nos meses passados e o cabelo escuro estava invulgarmente despenteado. Uma coisa que não mudara, porém, era o lenço vermelho à volta do pescoço, aquele que ela lhe dera pelo Natal há 25 anos, e que ele ainda usava muito.
Os olhos dele sondaram-lhe o rosto.
– Rebecca?
Margot engoliu em seco. Apesar de partilhar apenas semelhanças superficiais com a falecida mulher do tio – cabelo castanho curto e uma constituição média –, Margot estava habituada a que o tio a tratasse pelo nome da outra mulher. Ainda assim, doía sempre.
– Sou a Margot, lembras -te? Tua sobrinha, filha do Adam? – Era esta a parte que se retorcia no seu estômago. Filha do Adam não expressava que ele, Luke, era mais um pai para si do que o pai dela alguma vez fora. Sobrinha não dizia que, à parte a sua falecida mulher, ela era a pessoa favorita dele e ele a dela. Mas era melhor começar por baixo, refrescar -lhe a memória, e o resto normalmente vinha atrás.
– Margot… – O tio disse o nome dela como se estivesse a experimentar as sílabas pela primeira vez.
– É o meu nome, mas normalmente chamas -me miúda. – Margot manteve a voz alegre e calma.
Luke piscou os olhos uma, duas vezes, e, finalmente, como se alguém tivesse entrado e varrido com a mão um monte de velhas teias de aranha, os seus olhos desanuviaram -se.
– Miúda! – Ele abriu a porta e estendeu os braços. – Meu Deus, estás aqui! Porque é que demoraste tanto tempo?
Margot forçou uma risada enquanto se precipitava para os seus braços abertos, mas sentia a garganta apertada. Nunca se habituaria ao medo de o perder de vez.
– Desculpa aquilo, miúda – disse quando se soltaram. – Tenho-me esquecido das coisas com a velhice. – Disse-o com indiferença, como se esquecer -se da sua família fosse tão inócuo como perder as chaves, mas uma sombra de vergonha toldava-lhe os olhos.
Ela acenou uma mão.
– Não faz mal.
– Então, como tens andado? Ah, dá cá, deixa-me ajudar -te com essas malas.
Margot fez menção de protestar, mas Luke já estava a empilhar as malas nos braços. Com apenas 50 anos, a cabeça podia estar a falhar, mas ele parecia tão forte como sempre. Quando ele virou costas, ela lançou um olhar furtivo à pequena casa e sentiu um
aperto no coração. Era a primeira vez que ali ia desde que a mulher dele, Rebecca, morrera de cancro da mama no ano anterior. Sentiu-se culpada por não ter vindo mais cedo. Torres inclinadas de jornais estavam espalhadas pelo chão da sala de estar, a mesa de centro estava atulhada de pratos e copos sujos e ela conseguia ver, mesmo da porta de casa, que uma camada de pó cobria a estante embutida e uma televisão antiga. A cozinha, do lado direito, estava bem pior. O lava-louça e o balcão transbordavam com pilhas cambaleantes de pratos e taças enfiadas em chávenas, tudo incrustado de manchas de comida. O mais inquietante era a coleção de frascos de comprimidos amontoados junto ao telefone fixo. Deviam ser mais de uma dúzia, alguns vazios, outros tombados. Um grande estava cheio com um sortido de comprimidos, uns brancos e redondos misturados com outros, compridos e verde-claros. Até que ponto isto se devia ao diagnóstico dele, ou ao facto de ter ficado viúvo recentemente, Margot não sabia.
– Credo, tens muita coisa, miúda – disse Luke, com os braços carregados de malas. – Até parece que te vais mudar para aqui.
Margot olhou para ele para ver se isto era uma piada – ela estava a mudar-se para ali, afinal –, mas só encontrou um brilho
trocista no seu olhar, e não conhecedor. Riu levemente.
– Já me conheces. – Então, ao ver que ele não se mexia, apontou com a cabeça para a porta ao fundo do corredor. – Estava a
contar ficar no escritório...
Ele inclinou a cabeça com um sobressalto de reconhecimento.
– Claro, claro.
O escritório dos tios nunca fora muito usado, uma vez que ambos trabalhavam em South Bend, Luke como contabilista e Rebecca em part‑time num museu de arte. Nos primeiros 15 anos do casamento deles, o quarto fora de um amarelo alegre, com um berço perpetuamente vazio a um canto. Depois, quando Rebecca fez 40 anos e perdeu a esperança, pintou as paredes de cinzento. Eles tinham comprado uma secretária e um futon e, tanto quanto Margot sabia, o quarto só era usado pelo tio, que por vezes gostava de jogar paciência no computador antes de ir para a cama.
A visão do quarto, agora, deixava o peito de Margot dolorido. Era evidente que o tio tinha, em rasgos de lucidez, começado a preparar o quarto para a sua visita, embora a maioria das tarefas parecessem ter sido abandonadas a meio. O futon estava estendido, com um lençol de baixo preso em três cantos. Duas almofadas despidas estavam pousadas no chão ao lado dele. Ela teria de procurar um cobertor e fronhas.
– Está perfeito. Obrigada, tio Luke. – Ela hesitou. – Bem, eu vim direta do escritório. Por isso, estou faminta. Já comeste?
Depois de Margot avaliar o conteúdo do frigorífico do tio – na maior parte molhos, na maior parte fora de prazo –, ela foi buscar uma piza à única pizaria de Wakarusa e sentaram-se os dois à mesa da cozinha com copos de água da torneira e as suas fatias em cima de papel de cozinha em vez de pratos porque não havia pratos limpos. Margot descobrira, pelos telefonemas deles ao longo dos últimos meses, que as conversas eram melhores quando era ela que falava. Por isso, falava entre dentadas, sempre com saudade dos tempos não tão distantes em que, se estivessem juntos na mesma divisão, ela e o tio podiam falar durante horas.
– Obrigada por me deixares ficar – disse Margot, lançando um olhar furtivo ao rosto de Luke. O que queria realmente dizer era: Sabes porque estou aqui? Lembras‑te do teu diagnóstico? Como é que te estás a aguentar? Mas sempre que mencionava algo relacionado com a doença dele, a voz de Luke endurecia. Margot reconhecia a emoção subjacente – o tio estava a perder o juízo com apenas 50 anos e estava apavorado. Por isso, ela evitava o assunto. Quando se fizera de convidada para se mudar para ali, dissera-lhe que precisava de mudar de rotina e queria estar mais perto dele, invocando uma «nova flexibilidade no trabalho» como uma boa oportunidade, aparentemente, para o fazer.
– Claro – disse Luke, de olhos postos na sua piza. – Sabes que és sempre bem-vinda.
– E lembra-te de que tenho todo o gosto em ajudar, por isso se precisares de alguma coisa…
Luke, sorriu, mas era um sorriso tenso.
– Obrigada, miúda.
Margot abriu a boca para dizer outra coisa, mas ele já mudara de assunto.
– Ei, como vai o Adam? E a tua mãe?
Margot reprimiu um suspiro. Tinham acabado de saltar de um tema difícil para outro, e ela não sabia como lidar com aquilo. Até
há seis meses, nunca hesitara em contar ao tio a verdade – sobre o irmão dele ou qualquer outra coisa. Mas, com o diagnóstico dele, ele parecia frágil e, pelo que pesquisara, Margot sabia que essa fragilidade podia levar a mudanças de humor e acessos de fúria. Só acontecera algumas vezes ao telefone até agora, mas a ideia de Luke perder as suas faculdades mentais assustava-a.
– Ele…
– Continua um bêbedo mal-humorado que recusa procurar ajuda?
Margot desatou a rir, surpreendida.
– Então, posso estar a perder o juízo, mas nunca me ia esquecer disso – disse ele, e ela riu ainda mais.
Não era que achasse piada ao facto de o pai gostar mais de whiskey do que do seu único irmão e da sua única filha, mas este era o tio Luke de que ela sentia falta. A única pessoa numa vila de fingidos que dizia sempre a verdade. A pessoa cujo sentido de humor era exatamente igual ao seu, que uma vez a fizera rir tanto a meio de um gole, que lhe saíra refrigerante pelo nariz. Além disso, a ausência do afeto do pai, e do da mãe, já agora, não estava fresca em Margot. A sua casa de infância fora uma casa de discussões aos gritos pontuadas por copos arremessados a estilhaçarem-se contra paredes. Por isso é que era tão próxima de Luke. Todos os dias depois das aulas, ia a pé para casa do tio, em vez da sua. Aos fins de semana, ficava lá a dormir. Teria ido viver com ele e Rebecca – tinham-lho proposto muitas vezes –, mas a mãe preocupava-se com o que as pessoas diriam.
A sua reação fora semelhante umas semanas antes quando Margot lhe dissera que ia voltar para Wakarusa.
– O que vais dizer às pessoas quando te perguntarem porque voltaste? – dissera a mãe.
– Como assim? Vou-lhes dizer a verdade, que vou ficar com o Luke para o ajudar.
– Ninguém tem nada a ver com isso, Margot. Seja como for, o teu pai diz que não pode ser assim tão grave. O Luke é o irmão mais novo dele.
– Como é que o pai havia de saber? Quando foi a última vez que eles falaram, 2010?
– Se estás mesmo preocupada, porque é que não contratas um enfermeiro ou algo do género? Não queres voltar àquela vilazinha triste onde aquela coisa horrível aconteceu.
Margot tirara o telefone do ouvido para olhar incrédula para o ecrã.
– Um enfermeiro? Com que dinheiro?
– Meu Deus, Margot. Às vezes pareces tão tosca. – Quando voltou a falar, a voz dela passara a um sussurro, como se tudo aquilo fosse indigno. – Tens um bom emprego. Tenho a certeza de que vais arranjar uma solução.
Agora, para Luke, Margot disse:
– E a minha mãe está como sempre. Delirante.
Luke bufou de desdém.
– Com que é que a Bethany está a delirar desta vez?
– Pensa que sou milionária porque escrevo para um jornal.
– Espera. Não és milionária?
Ela sorriu.
– Como vai o jornal, já agora?
Margot baixou os olhos.
– Vai bem, sim. – Ela odiava esconder coisas ao tio, mas não suportava a ideia de o fazer sentir-se culpado por algo que ele não podia controlar. Não lhe podia dizer que o seu trabalho há já seis meses que sofria porque a cabeça dela estava em Wakarusa, com ele, em vez de em Indianápolis, com o jornal dela. Não lhe podia falar na relutância com que a sua editora aprovara a passagem de Margot para trabalho remoto. – A sério – acrescentou com mais ânimo desta vez. – Está ótimo.
Mas, quando levantou a cabeça, o tio estava a fitá-la com um ar estranho. Os olhos dele saltaram da fatia de piza que tinha na mão para o rosto de Margot, enquanto um vinco severo lhe raiava a testa.
– Rebecca?
Margot engoliu em seco.
– Sou eu, tio Luke. A tua sobrinha, a Margot.
Ele pestanejou por um momento e depois a sua expressão desanuviou-se e um sorriso surgiu-lhe no rosto.
– Miúda! Estou tão contente por estares aqui.
– Sim. – Ela acenou em concordância. – Eu também.
Nessa noite, depois de Luke ir para a cama, Margot lavou louça até um lado da banca ficar vazio e depois sentou-se à mesa da cozinha a fazer uma lista. Precisava de fazer uma cópia da chave de casa de Luke para si e organizar os medicamentos dele. Precisava de limpar a cozinha e a sala de estar e comprar papel higiénico e papel de cozinha, que pareciam estar quase a acabar. Lera em algum lado que pôr etiquetas nas coisas, como o que estava dentro dos armários da cozinha, o ajudaria a orientar-se na casa quando a memória lhe faltasse, portanto também queria fazer isso. Além disso, com todo o tempo que demorara a mudar-se para Wakarusa, estava cerca de uma semana atrasada com o trabalho e precisava de escrever uns artigos que não fossem lixo. Acrescentou Faz o teu trabalho à lista. Depois, no fundo, escreveu um lembrete para telefonar ao subarrendatário que arranjara para o apartamento de Indianápolis. Ele mostrara uma hesitação preocupante da última vez que tinham falado e ela precisava que ele se mudasse, que pagasse a primeira renda. Caso contrário, ficaria a dever metade de uma renda por uma casa onde já não vivia. Margot ficava cansada só de olhar para a lista, mas teria mais tempo amanhã.
Mas no dia seguinte já a vila estava em polvorosa com o que acontecera – a notícia alastrara por Wakarusa como uma nuvem negra – e foi difícil fazer o que quer que fosse.
Margot percebeu pela primeira vez que alguma coisa estava mal na manhã seguinte, na farmácia. Deixara Luke uns minutos antes a tomar uma chávena de café e a fazer o livro de palavras-cruzadas que trouxera de Indianápolis porque lera que o podiam ajudar a manter a destreza mental. Uma campainha por cima da porta da loja anunciou a sua chegada, pelo que, embora não houvesse ninguém por trás do balcão quando entrou, presumiu que o farmacêutico aparecesse em breve. Ficou parada junto ao balcão, a passar os dedos distraidamente pelos sacos de rebuçados para a tosse que estavam expostos, enquanto ouvia os sons indistintos de uma televisão, vindos das traseiras.
– Desculpe? – chamou depois de um minuto sem ninguém aparecer. – Está aí alguém? – Ela esperou. Continuava a não haver sinais de vida. – Está aí alguém?
Finalmente, ouviu um movimento nas traseiras, e então um homem espreitou de trás de um dos corredores.
– Ah! – exclamou, pegando num par de óculos pendurados num fio em volta do seu pescoço. Pousou-os na cana do nariz, piscou os olhos, e veio a correr até Margot. – Desculpe lá. Fiquei absorvido nas notícias. Terrível, o que aconteceu, não é? – Mas antes que Margot pudesse responder, ele sacudiu a cabeça para trás como se só agora a estivesse a ver pela primeira vez. – Não é costume ver uma cara desconhecida aqui.
Margot sorriu.
– Vim buscar uns medicamentos para o meu tio. – Rodou a mochila para a frente, para poder tirar os dois frascos cor de laranja do bolso. Antes, tinha vasculhado a confusão de frascos que Luke acumulara e, para seu alívio, a maioria eram do mesmo medicamento, mas de meses diferentes. Tinha organizado todos em três receitas atuais, das quais duas precisavam de ser reabastecidas: um medicamento que parecia ser uma estatina, um para a tensão arterial e um para a glicemia.
– Quem é o seu tio? – perguntou o farmacêutico.
Margot pousou os dois frascos no balcão.
– Luke Davies.
As sobrancelhas do homem alçaram-se de repente na sua testa.
– Tu és a sobrinha do Luke e da Rebecca? Isso deve querer dizer que és a Margot.
A expressão dele era mais curiosa do que amigável, mas ainda assim Margot respondeu -lhe com um sorriso.
– Sim, sou eu.
– Lamento o que aconteceu à tua tia, querida. Aquele cancro foi tão rápido. E, meu Deus, não vejo os teus pais há séculos. Mas
são boa gente, boa gente. Como estão?
O sorriso dela retesou-se, mas apenas um pouco. Soubera que isto ia acontecer desde o momento em que decidira voltar. A expressão incerta em relação a Luke e Rebecca, a aduladora para os pais. Os pais dela tinham sido os residentes de Wakarusa perfeitos até ao momento em que se mudaram, aparentemente pelo entusiasmante emprego novo do pai em Cincinnati, mas na realidade para ele poder ir para um centro de recuperação, o que não só não resultou, como o deixou ressentido e mais amargo do que antes.
– Estão ótimos – disse ao farmacêutico. – Acha que me pode ajudar com estas receitas? Já ouvi falar em estatina, mas é para o coração ou para o colesterol?
Margot esperou o que lhe pareceu demasiado tempo para o homem aviar duas simples receitas e, quando ele voltou, parecia agitado e ansioso, franzindo o sobrolho com um ar perturbado enquanto lhe agrafava o saquinho branco. E depois, quando Margot estava sair, passou por uma mulher que fazia o caminho inverso, com o telefone colado ao ouvido. A mulher estava tão absorta na sua conversa que aparentemente não viu de todo Margot. Mas, mesmo antes de a porta se fechar, Margot ouviu a mulher dizer:
– Eu sei. Eu disse-te. Os Jacobs estão inocentes.
Margot virou a cabeça de repente para olhar para a mulher pelo vidro, de sobrolho franzido. Provavelmente tinha-a ouvido mal. Era provável que estivesse no pensamento de Margot por ter regressado depois de tanto tempo. Era impossível estar em Wakarusa e não pensar na família Jacobs. Além disso, a voz da mulher parecera urgente e a história dos Jacobs tinha duas décadas. Ainda assim, Margot teve vontade de voltar a entrar e perguntar à mulher de que estava a falar, mas a ideia de se entregar voluntariamente às más-línguas daquela vila deteve-a. Podia simplesmente pesquisá-lo no telemóvel.
A pesquisa do Google que fez no carro não trouxe novos resultados, por isso ela afastou o assunto de parte. Já tinha muito em que pensar, de qualquer modo.
O resto do dia passou num vendaval de limpezas. Lavou louça e esfregou balcões e encheu um saco do lixo com latas de refrigerante, papel de cozinha usado, embalagens de comida. Quando entrou no quarto do tio nessa tarde enquanto ele foi dar um passeio, tapou o nariz e a boca com a mão. Os lençóis dele tinham um cheiro acre, não só do odor acumulado a ser humano, mas também de suor e urina. Nem se deu ao trabalho de lavá-los. Deitou-os fora e comprou lençóis novos no Walmart de Elkhart, uma vila vizinha.
Estava tão distraída, na verdade, que se tinha esquecido completamente do episódio da farmácia até entrar no Shorty’s Bar & Grill nessa noite para ir buscar o jantar para si e para Luke. Teria de tirar o tio da dieta de piza e hambúrgueres, mas ainda não conseguira ir ao supermercado, por isso ir buscar comida teria de servir por enquanto.
O restaurante estava à pinha, mesas cheias de gente com as cabeças curvadas em conversa animada. A televisão do canto estava sintonizada num canal de notícias, mas o barulho coletivo abafava o que os dois pivôs no ecrã estavam a dizer. Margot aproximou-se do bar, cheio de clientes, e tentou chamar a atenção da empregada. Mas a mulher estava concentrada no homem em frente a si, de braços cruzados e olhos arregalados, a acenar a cabeça enquanto ele falava e gesticulava desvairadamente com a sua cerveja.
– … exatamente o que sempre pensei! – Margot ouviu-o dizer.
Ela acenou na direção da empregada.
– Desculpe?
A mulher por trás do balcão virou a cabeça e olhou para ela.
– Aguenta um segundo, Larry – disse ao homem, e depois veio até Margot. – O que queres, querida? – perguntou a Margot. Parecia ter 50 anos, mas Margot desconfiou que provavelmente estava mais perto de uns 40 calejados. A pele dela era como couro gasto, o cabelo da consistência de palha.
– Olá, venho buscar um pedido para levar em nome…
– Caramba! – exclamou a empregada, tão de repente que sobressaltou Margot. – Um pedido para levar em nome da Margot! Tu és a Margot Davies. – Na sua periferia, Margot viu uma linha de cabeças a rodarem na sua direção. Forçou o seu esgar a dar lugar a um sorriso. O farmacêutico fora rápido. Tinham passado menos de sete horas desde que ela lhe dissera o seu nome.
– Olá.
– Como estão os teus pais? Meu Deus, não vejo o Adam e a Bethany há séculos! – O rosto da empregada esmoreceu com dramatismo. – Tenho saudades deles. Dizes -lhes que a Linda manda cumprimentos?
Margot acenou a cabeça.
– Sim, claro.
– Oh, meu Deus! – exclamou Linda, e então a voz dela caiu uma oitava quando disse:
– É por isso que estás aqui?
– Hum. – Margot abanou a cabeça. – É por isso que estou aqui?
– Bem, a notícia, claro. És jornalista, não és?
– Sim… – Margot estava tão perplexa com tudo o que a desconhecida parecia saber sobre si, que estava a ter dificuldade em seguir a conversa. – Qual notícia? O que se passa?
As sobrancelhas de Linda arquearam -se de repente.
– Quer dizer que não sabes? – Ela rodou, à procura de alguma coisa, e finalmente o seu olhar pousou num comando de televisão que estava ao lado de um frasco aberto de cerejas em conserva. Pegou nele e apontou para a televisão. No ecrã, a barra do volume
cresceu.
– … num episódio recente que aconteceu em Nappanee, Indiana – dizia um pivô. O nome da vila provocou um sobressalto no peito de Margot. Nappanee ficava ao lado de Wakarusa. Se se metesse no carro agora, podia estar lá em menos de um quarto de hora. – Hoje de manhã – continuou o pivô –, foi comunicado o desaparecimento de Natalie Clark, de cinco anos, pelos pais. Segundo a mãe, Samantha Clark, a menina desapareceu de um parque infantil local com bastante movimento. A senhora Clark estava a amamentar o seu filho mais novo, um bebé, quando levantou a cabeça para dar uma olhadela a Natalie e ao filho, mas Natalie tinha desaparecido.
Uma foto da menina desaparecida surgiu no ecrã, de sorriso rasgado e cabelo castanho revolto, e de repente tudo fez sentido: a expressão ansiosa no rosto do farmacêutico, o telefonema da mulher e a referência dela à família Jacobs. Margot não a tinha ouvido mal, afinal. E agora sabia o que Linda ia dizer mesmo antes de a mulher se virar para si para o dizer.
– Está a acontecer outra vez. January Jacobs. O assassino dela está de volta.
Comentários