"Não tenho memórias de Cabul. Tinha cinco anos quando fugi com a minha mãe para o Uzbequistão, para a cidade de Tachkent, a capital. Vinte e dois anos depois regressámos. Quando aterrei comecei a chorar. Tive um sentimento especial. É o meu país. Recordei o meu momento de saída. Não me lembro da minha casa, onde morava, das ruas, os cheiros, nada... Só recordo o dia da partida. Estava dentro do autocarro, os mujahideen (hoje são os talibãs que estão no poder) entraram à procura de alguém e saíram. O autocarro começou a andar, acelerou, olhei para trás, vi uma criança a correr em nossa direção e a ser morta a tiro. A mãe chorava abraçada à filha".
نام من ویدا زمرى است و من از افغانستان هستم.
"Olá, eu sou a Wida Zemarai e nasci no Afeganistão".
Foi desta forma que a autora da introdução se apresentou. A nota foi enviada a posteriori por e-mail e traduzida do persa afegão (língua conhecida localmente por dari). Hoje, aos 34 anos, vive na Suécia.
Ex-jogadora, veio a Portugal ajudar na integração de um grupo de jovens futebolistas envolvidas na missão de resgate "Missão Bolas de Futebol". Foi neste âmbito que o SAPO24 foi ao encontro, na Pousada da Juventude em Lisboa, do grupo de refugiadas afegãs, de idades compreendidas entre os 14 e os 17.
O ponto de encontro estava marcado para as 18h30. Destino seguinte: Estádio Universitário de Lisboa (EUL) para um treino conjunto com a equipa sub-15 do Sporting Clube de Portugal, marcado para as 20h30.
"São as mesmas memórias destas raparigas", recupera. "A saída ficará para sempre. O que elas passaram, passei o mesmo quando era uma miúda de 5 anos. Sei o sentimento que estão a ter agora", sublinha a antiga jogadora profissional na Suécia, atual treinadora.
"Sou a única mulher em todo o país [Afeganistão] a ter licença FIFA", diz, à margem do tema que a trouxe a Portugal.
"Antes do sucedido, tinha falado no meu país com os responsáveis da Federação de Futebol [do Afeganistão] para promoverem mulheres a treinadoras. Elas sabem do que estas jovens raparigas necessitam. Sabem-no melhor que os homens", clarifica.
Wida está em Lisboa e juntou-se, por estes dias, a Farkhunda Muhtaj. Aos 23 anos, a viver em Toronto, no Canadá, a capitã da seleção nacional afegã foi uma das obreiras da complexa operação de resgate a envolver 80 cidadãos, homens, mulheres e crianças afegãs, onde se incluem as 24 jogadoras.
"Ajudei a evacuar a partir de casa, em Toronto. Falei com entidades nos Estados Unidos da América, grupos humanitários, muita gente, com Portugal; se não fossem as pessoas em Portugal não estariam aqui", confidencia.
"Tinha de ajudar a saírem. Dar-lhes a oportunidade de uma vida melhor. Para terem a possibilidade de sonhar, de jogarem futebol, tal como eu", continua a assistente de treinadora e professora.
Farkhunda não viveu drama idêntico a quem ainda tem presentes os dias de resgate. "Os meus pais fugiram nos anos 90. Nasci num país ao lado do Afeganistão", sem apontar o nome no mapa-mundo. "Não posso partilhar, é segredo", frisa. "Vivo no Canadá há 20 anos", acrescenta instantes antes de o autocarro apanhar o "plantel". O relógio marcava 19h15.
A língua é um entrave na comunicação. Contam-se pelos dedos das mãos quem consegue exprimir-se em inglês além do "thank you" (obrigado) e "hello" (olá). Aventuram-se em português. "Olá", "Bom dia" e "Obrigado" são o passaporte para as primeiras conversas mais gestuais que verbais.
Algumas têm o tradicional lenço na cabeça. Uns pretos, outros coloridos, alternando entre o hijab e a shayla. Os rostos tapados por máscara são por razões sanitárias e nada mais.
“Eu sei que o Ronaldo nasceu no Sporting”
Entram apressadamente para o meio de transporte cedido pelo clube de Alvalade. Durante o trajeto entre a Avenida Fontes Pereira de Melo e o EUL, futebol, Fátima e Nazaré são temas de conversa de Farkhunda e Wida, sentadas na primeira fila.
Uma das jogadoras faz do lugar ao lado do motorista o ponto de partida de uma filmagem até ao banco de trás. Uma a uma. Rosto a rosto. É esta memória que querem doravante transportar, sem esquecer a outra.
Farkhunda Muhtaj mostra imagens no telemóvel da experiência das jovens afegãs uns dia antes, com a equipa feminina do Benfica. Aponta para a camisola 10 que lhe foi oferecida.
Fala de Ronaldo. "Eu sei que o Ronaldo nasceu no Sporting", solta em jeito de provocação para testar preferências clubísticas. Seguiu-se um grito de saudação ao Clube das Águias, para ver se alguém no autocarro respondia.
"Ainda provoco uma guerra, um incidente", sorri. "Meninas (girls), alguém tem por debaixo camisolas do Benfica?", questiona. Resposta negativa. O manto encarnado, cor da seleção do Afeganistão, com a qual estavam vestidas, poderia induzir em erro, mas mais nada do que isso.
Fátima foi o capítulo seguinte da conversa. Um cartaz ao filme mereceu perguntas às quais foram dadas respostas que entraram pelo 12 de outubro adentro. "Um milagre, ok", resumiu em inglês.
Dali saltou para o dia a dia das refugiadas. "Amanhã [sexta-feira] vamos às ondas da Nazaré. Queremos ver as ondas grandes", diz de olhos vidrados naquilo cuja imaginação não antecipa o que poderá ver.
“Ao verem a relva artificial lembraram-se dos campos, pequenos, onde treinavam”
Chegadas ao Estádio Universitário, uma a uma saem do autocarro. Como se de uma partida oficial se tratasse.
Alguns telemóveis em punho filmam o momento. Tal como já o haviam feito à partida. Falam com a família. Os aparelhos servem para essa ligação a quem ficou para trás. Registam onde estão e o que vão fazer.
Caminham em direção aos campos de futebol, do parque das piscinas aos relvados sitos no lado oposto. Chegadas às portas do tapete verde, o "teatro dos sonhos", os olhares dos pais que assistiam aos treinos viram-se para as raparigas de encarnado.
As letras que compõem "Afeganistão", escritas na parte dorsal do casaco verde de Wida e os lenços na cabeça, denunciam a pátria.
Ao primeiro aplauso, seguem-se outros cada vez mais sonoros. Algumas das atletas choram. Abraçam-se. Outras não escondem o sorriso. "Ao verem a relva artificial lembraram-se dos campos, pequenos, onde treinavam", explica Wida, antiga jogadora.
"Antes da tomada do poder pelos talibãs, tínhamos jogos transmitidos na televisão. Ao vivo, as miúdas podiam ver os jogos masculinos, mas os homens não podem ver jogos femininos", esclarece.
São recebidas por responsáveis leoninos. Paulo Conceição, treinador da equipa leonina sub-15 e Tomaz Morais, diretor do departamento de futebol jovem.
A cultura e a religião levou-as para um balneário fora da concentração de atletas e de quem espera por eles. Regressaram vestidas de verde. Vestidas à Sporting. Passam pelo túnel dos pais. Mais aplausos. Mais audíveis.
“Meninas, estamos a fugir de Cabul. É uma boa memória. Fugir de Cabul é uma boa memória.”
Sadaf Sharifzada é rápida no verbo. "Quando jogo futebol, sinto-me livre. Sinto-me uma rapariga normal como noutras partes do mundo", atira. "Quero prosseguir este objetivo", remata.
16 anos de idade, 4 de futebol em Cabul. Começou a dar os primeiros pontapés aos 12. "Era a mais experiente do meu clube", afiança. Recorda as noites a ver o "El Clásico", Real de Madrid-Barcelona ou vice-versa, diz a adepta madrilista. "Nós, raparigas, olhávamos para o que os jogadores faziam e tentávamos imitar depois".
A partida do Afeganistão é para Sadaf uma "boa memória", assegura.
"A nossa jornada (aventura) de saída é uma memória para sempre. No aeroporto, todas as raparigas sentadas, procurámos pensar positivo. Meninas, estamos a fugir de Cabul. É uma boa memória. Fugir de Cabul é uma boa memória", repete a jovem futebolista que veio para Lisboa acompanhada do irmão, irmã e pai ficando para trás o irmão mais pequeno e a mãe.
Omul Banin Ramzi, embarca na mesma tática. Fala a uma velocidade como se estivesse a correr isolada para a baliza. O Real Madrid-Barcelona era um prato consumido anualmente, noite fora. "Vi, pela primeira vez, aos 12 anos e adorei", relembra, hoje com 17. "Foi à meia-noite", detalha.
"Quando jogo futebol sinto-me livre. Feliz", remata. Tal como a compatriota, viu a família divida por dois países, dois regimes. "Estou cá com o meu pai, irmão e tio. A minha mãe e mais metade da família ainda vive no Afeganistão", notifica. "Eu quero viver aqui. Quero ficar aqui, ir à escola e jogar futebol", remata.
"Elas podem sonhar, mas a decisão é delas. Não é tarde começar aos 15"
"Ser mulher é mais fácil singrar no desporto. Espero que o façam”, intrometeu-se Wida Zemarai. Farkhunda Muhtaj aproveitou o palco e deixa um pedido e uma promessa:
"Gostávamos de ver o jogo da seleção nacional de futebol. Onde podemos comprar bilhetes?", questiona.
"Queremos ir ao Algarve. E quando o Ronaldo marcar um golo entro em campo e peço para falar com ele", sorri.
(Artigo atualizado às 16h07 de 09 de outubro)
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