Sentado na fila da frente, Carlos esforça-se por ler o poema escrito no quadro. Aos 41 anos, é aluno de 1.º ciclo do Estabelecimento Prisional (EP) de Castelo Branco e quer recuperar o que devia ter aprendido em criança, quando abandonou a escola sem o diploma da “quarta classe”.

Carlos podia ser apenas um número da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), segundo a qual em setembro havia 3.454 reclusos em cursos de formação escolar ou profissional nas 48 cadeias portuguesas.

As estatísticas mostram também que a escola é cada vez mais procurada. Aos inscritos em setembro é preciso somar todos os que, ao longo do ano, frequentaram cursos anuais ou formações mais curtas e os que foram saindo do sistema, porque desistiram ou lhes foi devolvida a liberdade.

À Lusa, a DGRSP garante que em 2024 eram mais do que em 2023 e que esta é uma tendência: Em 2021, houve 7.636 inscritos nas diferentes ofertas educativas, no ano seguinte eram mais de oito mil e, em 2023, quase dez mil.

No EP de Castelo Branco, por exemplo, metade dos detidos frequentam a escola: Num universo de quase 150 presos, “76 estão ocupados na parte escolar”, contou a diretora da prisão, Otília Simões.

“Grande parte dos reclusos que chega aos estabelecimentos prisionais, não só aqui como em todo o país, tem baixa escolaridade”, acrescentou.

Na turma de 1.º ciclo há alunos dos 24 aos 58 anos. Nas outras salas, também há reclusos de todas as idades, que lamentam ter abandonado a escola antes do tempo.

Carlos, Emanuel e Vítor são disso exemplo: Carlos não concluiu o 1.º ciclo, Emanuel chegou à prisão com apenas o 9.º ano e Vítor tinha o 10.º. Carregam “histórias de vida e infortúnios” que os levaram “a trilhar um percurso menos correto”, explicou Otília Simões. Para a diretora prisional, é preciso dar-lhes uma nova oportunidade para que acreditem que podem fazer diferente.

O cozinheiro, o agricultor e o músico

Emanuel viveu quase toda a sua vida em França e sonhava ser Chef, Vítor imaginava-se dedicado à agricultura na quinta de família em Castelo Branco e Carlos gostaria de deixar registadas as suas canções. Três sonhos adiados pelos crimes, que os condenaram ao cárcere. Três vidas que se cruzaram na prisão.

Agora, todas as manhãs, durante a semana, fazem o mesmo percurso da cela para a escola. Emanuel e Vítor ficam na sala do secundário, enquanto Carlos segue até ao fundo do corredor, para a sala do 1.º ciclo, atrás do seu novo projeto de vida.

Nascido numa família de artistas, Carlos Silva garante que herdou o gene. O tio era o “Baléle”, dos Ciganos d’Évora, e gostaria de lhe seguir os passos, mas faltam-lhe estudos para deixar escritas as suas músicas.

“Todos os meus colegas sabem ler e escrever bem e eu não, porque fugia da escola”, lamentou, sentado na secretária mesmo em frente ao quadro e ao professor, com quem partilha o primeiro nome.

Carlos Fernandes é professor titular do 1.º ciclo e coordenador da escola. Trabalha ali há quase 30 anos e habituou-se a ensinar adultos analfabetos, que “abandonaram o ensino ou nem sequer por lá passaram”.

A grande maioria dos seus alunos está a recordar matérias esquecidas, mas há histórias complicadas, como a do homem de 32 anos, “sem-abrigo das ruas de Lisboa e que nunca frequentou uma escola: Chegou completamente tábua rasa ao nível da leitura e da escrita”.

Otília Simões também conheceu reclusos “que nem sequer sabiam escrever o seu nome”. Num sítio onde muitas das notícias ainda chegam por carta, mantém-se o hábito de pedir a colegas ou funcionários para lhes lerem a correspondência, tanto sentenças dos tribunais como mensagens familiares mais íntimas.

“Para não precisarem de dar a conhecer a sua vida, tentamos sensibilizá-los a irem à escola”, sublinhou a diretora prisional.

A escola é um pequeno edifício térreo com quatro salas de aula. Basta entrar na sala seguinte para avançar de ciclo. A primeira porta é a 1.º ciclo. A última é a do secundário, onde está uma dezena de alunos, entre os quais Emanuel, Vitor, José e Rafael. Estes dois últimos já concluíram o secundário.

José Cancela era segurança e guarda-costas e acredita que estudar mais poderá fazer a diferença quando sair, em março: “A escola é fundamental para a nossa educação. É uma mais-valia, é uma arma de trabalho lá fora”, disse.

Rafael pediu para ir às aulas para se preparar para os exames nacionais. Está a estudar Economia para se candidatar à universidade e mostrar que é possível tirar um curso superior sem passar os portões da cadeia. Em setembro de 2024, havia 68 reclusos no superior. Rafael quer fazer parte destas estatísticas.

Já Emanuel Henriques quis aproveitar a pena de sete anos e nove meses para concluir o secundário. Criado entre Marselha e Nice, arrepende-se hoje de ter abandonado a escola na adolescência.

Entrou na prisão de Castelo Branco com apenas o 9.º ano. “Agora, tenho quase o 12º ano, só me falta uma matéria de inglês”, contou o luso-francês, de 42 anos, que não quer voltar a “andar com más companhias, nem cometer crimes”.

Emanuel é reincidente. É a segunda vez que está preso e admite que “estava à espera”, porque “nunca quis mudar de vida”. Agora quer aproveitar as aulas e a ajuda dos professores para aprender “a ser mais responsável e a respeitar as regras” para se “conseguir integrar na sociedade”.

“O dia é demasiado longo”

Mas a escola não é exclusiva de quem quer aprender mais. Há quem encontre ali uma forma de passar o tempo, porque o “dia é demasiado longo”, acrescentou a psicóloga clínica da cadeia, Inês Martins.

Também há quem aproveite para tirar mais do que um curso, como Vitor Galvão. O tráfico de droga atirou-o para a prisão e ser reincidente no crime fez com que a pena subisse para dez anos. Com 47 anos, dos quais cinco já passados em Castelo Branco, tenta ocupar o tempo a estudar.

O plano é aprender para conseguir desenvolver um projeto de agricultura na quinta de família, em Vila Velha de Ródão. Hoje, em vez de contar os dias para sair, foca-se na escola, até porque quando está na aula consegue “sair do estabelecimento prisional”, consegue estar “para lá das grades”.

"Oh professor, está com medo?"

 Nas prisões há também professores que lutam contra o abandono escolar dos condenados com projetos que os ajudam a esquecer, por momentos, que estão presos e os fazem acreditar que “não são assim tão más pessoas”.

Anualmente, 12% dos estudantes- reclusos desistem de estudar, mas há quem não desista destes alunos, como Paulo Serra. Enviado para dar aulas na prisão de Castelo Branco, o professor de informática admite que, no primeiro dia, estava receoso. Entrou na sala, onde não havia computadores nem guardas-prisionais, e perante uma turma de condenados, foi “levado pelo preconceito”.

“Fiquei uma hora e meia encostado ao quadro até que um aluno me diz: oh professor, está com medo? Digam ao professor que não vale a pena, nós não fazemos mal. Passadas umas horas já convivia”, conta o docente de 1,78 de altura, garantindo que eram medos “infundados”.

A diretora do estabelecimento prisional, Otília Simões, garante também que nunca teve problemas, até porque os reclusos sabem que o bom comportamento é condição para permanecerem na escola.

Os dados da DGRSP confirmam que os casos de indisciplina em ambiente escolar são pontuais: Em 2023, por exemplo, nas 48 cadeias onde há ofertas educativas foram expulsos 24 reclusos e, no ano anterior, tinham sido 12.

A rotina da escola é muito importante para os reclusos, defende a psicóloga Inês Martins, explicando que permite ocupar o tempo e manterem-se em “contacto com o mundo lá fora”.

Da janela gradeada da sala de Paulo Serra vê-se apenas um muro com arame farpado, mas o professor garante que aquele é “um espaço de liberdade”. E os alunos confirmam. Dizem que naquelas aulas “conseguem passar para fora das grades”.

Consciente de que estes alunos desistem de estudar com mais facilidade, Paulo Serra gosta de desafiar a turma a participar em projetos, porque acredita que lhes “fará acreditar que são capazes”.

Vitor foi um desses casos de sucesso. Condenado por tráfico de droga, chegou à cadeia revoltado e sem motivações, mas uns tempos depois decidiu focar-se no desenvolvimento de um equipamento para ajudar pessoas com problemas motores. Concorreu ao Apps For Good, um programa educativo que incita os alunos a desenvolver uma app que ajude a comunidade, e ficou entre os selecionados.

Autorizado a sair da cadeia e ir até Lisboa, apresentou o seu projeto ao lado de adolescentes de escolas secundárias de todo o país. Venceu o primeiro prémio da melhor app desenhada por reclusos e o segundo prémio na categoria de ensino secundário.

Vitor garante que o prémio não é o mais importante: “É estarmos aqui a cumprir a nossa pena, a pagar o nosso crime à sociedade e, ao mesmo tempo, podermos ajudar os outros”.  Na sala de aula do professor Serra está agora em desenvolvimento um tabuleiro em braille que vai permitir que também os cegos possam jogar xadrez ou damas, conta, entusiasmado, Vitor.

No EP de Castelo Branco há um outro prémio monetário para os melhores alunos e Otília Simões diz que os resultados estão à vista: Aumentaram os alunos nas aulas, “diminuiu o absentismo” e restaurou a autoestima dos reclusos.

“Vistos como pessoas que fizeram algo de mal na sociedade, o reconhecimento mostra que não são tão más pessoas quanto, em algum momento, foram. É muito bom para eles, mas também para as suas famílias que percebem que, embora tenham falhado em algum momento da sua vida, querem reabilitar-se e modificar o seu comportamento”, salientou a Otília Simões.

A ideia é corroborada por Vitor, que conta que a família cortou relações quando foi preso pela segunda vez pelo mesmo crime. Depois de três anos em silêncio, “eles viram o percurso que estava a levar e perdoaram-se”. Naqueles momentos mais solitários, contou com o apoio dos professores e encontrou motivação para não desistir.

"Todos levam o meu número de telefone, o meu e-mail e o meu Facebook. Gosto de saber o que é que está a acontecer"

Paulo Serra acredita que a escola pode ajudar a reduzir os casos de reincidência. A sua fé baseia-se nas histórias de vida dos seus ex-alunos. Quando terminam a pena, o professor tenta manter uma ligação: “Todos levam o meu número de telefone, o meu e-mail e o meu Facebook. Eu gosto de saber o que é que está a acontecer e posso dizer, sem dados oficiais, que aqui a percentagem de reincidência é bem mais reduzida”.

A Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais diz não conhecer estudos sobre o impacto da formação escolar e profissional na reincidência, mas sublinha que “qualquer formação que os reclusos recebam constitui uma mais-valia para o seu processo de integração e para a ajuda aos processos de decisão individual”.