Perante uma sala de audiências em silêncio, um ecrã mostra um avião A330 a voar entre o céu e o oceano. No terceiro dia do julgamento que visa apurar as responsabilidades de Air France e da Air Bus no acidente com o voo Rio-Paris, em 2009, os especialistas recriaram os minutos fatídicos que antecederam a queda da aeronave, que atingiu o mar a 300 km/h, quase na horizontal.

Durante o julgamento que decorre em Paris, presidido pela magistrada Sylvie Daunis, quatro membros do primeiro colégio de especialistas nomeados para investigar o acidente começaram por detalhar o trabalho levado a cabo durante este longo processo.

Estes homens foram responsáveis por estudar todas as informações que as caixas negras, descobertas dois anos após o acidente, a 3.900 metros de profundidade, recolheram sobre aquele momento.

Só esta quinta-feira será decidido se o áudio do Cockpit Voice Recorder (CVR), solicitado pelas famílias das vítimas, será ouvido durante o julgamento, mas ontem os especialistas descreveram ao tribunal de Paris os últimos minutos do voo AF447.

Incompreensão

Na noite de 31 de maio de 2009, o A330 descolou do Rio de Janeiro com 228 pessoas a bordo, e o voo decorria normalmente até a aeronave entrar na Zona de Convergência Intertropical (ZCIT), uma área meteorológica perigosa naquela época do ano, caracterizada por nuvens de grandes dimensões, trovões e chuvas violentas.

Nesse momento, já de madrugada, o avião estava na mão de dois copilotos, uma vez que o comandante tinha ido descansar. Pelas 2h10 (horário universal), três toques curtos sinalizam que o piloto automático está desengatado. Após uma série de procedimentos, um dos copilotos declara: "tenho os comandos".

Todavia, segundo o relato de um dos especialistas durante a sessão, "seis alarmes sucederam-se" em apenas dez segundos. Os copilotos perceberam rapidamente que estavam a perder velocidade, mas as indicações que estavam a receber através dos aparelhos estavam erradas. Subitamente, a altitude estava cerca de 122 metros abaixo dos 10.700 metros exibidos anteriormente.

"Mas tal não correspondia à realidade", explicou o especialista. "Foi um efeito do congelamento dos tubos de Pitot [sondas de medição de velocidade da aeronave], que, obstruídos por cristais de gelo, deixaram de funcionar em apenas um minuto. Em resposta, o copiloto fez com que o avião subisse, passando a ganhar altitude e a oscilar para os lados". Então soou outro alarme, que alertava para a perda de sustentação da aeronave "e desestabilizou a tripulação".

Segue-se o alarme de desvio de altitude, que já tinha soado antes, por causa de uma falsa perda de altitude. Desta vez, todavia, o motivo era contrário, a aeronave atingira uma altitude superior ao que seria normal, relatou. Na escuridão da madrugada, "podemos imaginar que o piloto não percebe" a diferença, explica o especialista.

Entretanto, o alarme de perda de sustentação começa a soar novamente, desta vez por 54 segundos. E quando o avião atinge uma altitude de 11.600 metros, deixa de ter sustentação. "Tivemos uma navegação agitada, totalmente desordenada". O capitão, chamado pela tripulação, regressa à cabine. “Perdemos o controlo do avião”, transmitiram-lhe.

O avião "estava a cair a 4,5km por minuto, o que era uma velocidade considerável", explicou o especialista. "Nos dois minutos seguintes até ao impacto, a incompreensão dominou, a situação era confusa", relatou.

Soa então o alarme de proximidade do solo e os pilotos respondem tentando fazer subir a aeronave. "Houve diálogo entre a tripulação até ao fim para tentar perceber o que se estava a passar", disse o especialista ouvido na sessão desta quarta-feira.

O avião atingiu o mar a 300 km/h, quase na horizontal, conclui.

Depois das explicações, os especialistas divulgaram uma reconstituição digital, e nesses quatro minutos e meio o silêncio tomou conta da sala, relata o repórter da AFP.

Apesar de divergências em algumas das conclusões entre um dos especialistas e os restantes, todos questionam claramente o papel da Air France e da Airbus no que diz respeito ao congelamento dos tubos de Pitot.

Mitigar a dor

Entre as 489 acusações particulares neste julgamento, que se estenderá até 8 de dezembro, está a apresentada por Carl de Vivo, de 32 anos, e pela sua irmã, que perderam a mãe neste acidente.

"O que queremos é que a Airbus e a Air France aceitem que são culpadas neste caso. O nosso objetivo é mitigar um pouco a nossa dor, que reconheçam que não administraram de maneira correta a situação, que não fizeram as modificações [técnicas] necessárias [para evitar o acidente]", disse De Vivo à agência de notícias EFE, minutos antes da abertura do julgamento.

Para De Vivo, que perdeu a mãe na adolescência, não se trata de uma indemnização, uma vez que a Air France já lhes concedeu uma, mas sim do reconhecimento da culpa de ambas as empresas para permitir à família avançar. "O que sinto hoje é tristeza, porque é um retorno a um passado doloroso", acrescentou Carl de Vivo.

Este julgamento ocorre 13 anos depois do acidente, devido a um longo período de investigação que terminou em 2019, após várias peritagens, em que o processo contra as duas multinacionais acabou por ser arquivado.

Os juízes de instrução determinaram, na altura, que a culpa do acidente se deveu a uma interpretação errónea da situação pelos pilotos e, portanto, não era apropriado levar a companhia aérea [Air France], proprietária do dispositivo acidentado, ou o seu construtor [Airbus] a tribunal.

No entanto, os recursos apresentados pelas famílias e pelo Ministério Público francês permitiram invalidar o arquivamento do caso graças a uma decisão do Tribunal de Recurso de Paris e colocar a Air France e a Airbus no banco dos réus.

As duas empresas vão defender a sua inocência em tribunal.

De acordo com as conclusões do Departamento de Investigação e Análise de Segurança da Aviação Civil (BEA), o acidente do Airbus A330, na madrugada de 1 de junho de 2009, poucas horas depois de ter descolado, quando o avião sobrevoava o Oceano Atlântico, ocorreu após as sondas de medição de velocidade da aeronave congelarem, assim, os pilotos não obtiveram essa informação [sobre a velocidade do aparelho] enquanto passavam por uma zona de turbulência.

Os pilotos não aplicaram o protocolo adequado e elevaram a posição do aparelho até este perder a horizontalidade, deixar de ter sustentação e ter sido colocado em situação de queda livre a 1.150 quilómetros da costa do Recife (nordeste do Brasil).

Os pilotos pensaram que estavam a subir quando na verdade estavam a perder altitude.

A catástrofe causou a morte de 228 pessoas (216 passageiros e 12 tripulantes) de 33 nacionalidades diferentes - entre as quais um bebé e sete crianças -, das quais 73 eram francesas e 58 brasileiras.

*Com Lusa e AFP