“A libertação total da sociedade” pode chegar no fim do verão, anunciou esta terça-feira, dia 20 de julho, o primeiro-ministro português, António Costa.
A notícia veio quase em eco do Reino Unido, que na véspera tinha vivido o (por alguns chamado) “Freedom Day” — ou Dia da Liberdade. A data em que caiu a obrigação da máscara e do distanciamento social, e em que as discotecas se encheram de novo.
Por cá, cada quinta-feira continua a ser uma surpresa — dia de Conselho de Ministros e das atualizações das medidas de confinamento a que já perdemos o rasto —, mas gradualmente também nós vamos saindo mais à rua, para os restaurantes, para os convívios com família e amigos.
Só que este regresso não será exatamente um voltar ao que era. De modo transitório ou permanente, a nossa interação com os outros e com o mundo mudou, mesmo que não estejamos conscientes disso.
Vivemos uma espécie de “institucionalização doméstica” e a nossa memória já não é o que era. Tantos meses sem podermos fazer planos geraram uma preocupante impotência aprendida e a nossa empatia ficou fora de forma — a boa notícia é que depende de nós exercitá-la. Uma boa maneira de o fazer é substituindo os snacks que são as mensagens de WhatsApp por refeições a sério: uma boa conversa ao vivo e a cores.
Falar destas alterações interessa. Não só porque nos ajuda a rir daqueles segundos em que parece que deixámos de saber cumprimentar os amigos (e a perceber o que diz a ciência sobre isto), mas também porque nos explica de onde vem o cansaço que muitos andamos a sentir (e que pode ser sinal de que estamos a pôr as fichas nos sítios certos). Há estratégias para que o regresso seja vivido com equilíbrio e, no final do artigo, deixamos algumas sugestões.
Quais os efeitos do isolamento social no funcionamento do cérebro e nas interações sociais?
Ainda é cedo para conhecermos a fundo o impacto de todos estes meses de distanciamento social por causa da pandemia da covid-19.
“Isto foi uma enorme experiência social e não sabemos os efeitos a longo prazo que muitas coisas vão ter. Nunca na história da humanidade tinha acontecido uma coisa como esta”, é assim que a psicóloga Luísa Lima começa a conversa com o SAPO24. Mas “há coisas que sabemos que estão a acontecer”, continua a professora catedrática de Psicologia Social no ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa.
"Quando estamos muito centrados sobre nós próprios, deixamos de ter a capacidade de querer ir ter com os outros"
Nos Estados Unidos, por exemplo, um relatório da American Psychological Association, de março deste ano, revela que praticamente metade (49%) dos participantes adultos admitiu sentir-se “desconfortável com a adaptação” aos reencontros presenciais pós-confinamento.
Há quem diga que "os nossos músculos sociais atrofiaram". É a opinião de Priya Parker, autora do livro The Art of Gathering (A Arte do Encontro, numa tradução livre), partilhada na revista The New Yorker.
Aqui e ali ouvimos dizer que é um exagero. Ainda assim, os investigadores portugueses apontam para impactos negativos, em particular na empatia. “O nosso principal músculo social”, como lhe chama Luísa Lima, precisa de ser exercitado. Isto é, precisamos de ir sempre treinando o reconhecimento das emoções dos outros.
Ao longo dos últimos 16 meses, reduzimos muito as oportunidades de o fazer. E, “quando estamos muito centrados sobre nós próprios, deixamos de ter a capacidade de querer ir ter com os outros, de querer ajudar as outras pessoas”, diz a psicóloga, que é também autora do livro Nós e os outros: o poder dos laços sociais.
Leonel Garcia-Marques, professor de Psicologia Social e Psicologia Cognitiva na Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa, alerta até, em conversa com o SAPO24, que “a falta de treino na empatia pode levar a uma sociedade mais egoísta, a mais conflitos, a mais agressão”. Pensando no futuro, o psicólogo antecipa: "Não sei se vai desaparecer completamente esta tendência de isolamento, de as pessoas preferirem as relações virtuais — que já existia antes. Mas acho que vai desvanecer".
Para Luísa Lima, rapidamente “vamos voltar ao normal". "Isto que nós tivemos foi um novo anormal. O normal é estarmos com as outras pessoas, tocarmos nas outras pessoas”, continua. “São hábitos que temos há muito tempo, portanto é muito fácil voltarmos para eles. Até pode ser demasiado fácil. Podemos começar logo aos abraços e aos beijinhos. É esse o risco que se corre, mais do que outra coisa qualquer”, acredita a também coordenadora do ISCTE Saúde.
"Há uma falta de treino em relação ao dia a dia que acarreta perdas de memória"
Uma investigação com crianças e adolescentes portugueses, espanhóis e italianos entre os 3 e os 18 anos mostra que 85% destes não tiveram problemas em relacionar-se com os colegas no regresso à escola, em setembro do ano passado, conta ao SAPO24 Rita Francisco, coordenadora do CRC-W, centro de investigação para o bem-estar da Universidade Católica portuguesa, que participa neste estudo longitudinal.
No Reino Unido, assistimos ao cenário extremo esta segunda-feira. Em uníssono e ao jeito de passagem de ano, os britânicos fizeram a contagem decrescente para o fim das restrições, como se aqueles 10 segundos os transportassem, por magia, até um mundo pré-pandémico.
Há, contudo, um grupo de pessoas para quem o regresso não será tão fácil. “Naqueles que já tinham problemas de adaptação" e "tendência para preferir as relações virtuais às presenciais, acho que o medo se vai acentuar”, identifica Leonel Garcia-Marques. Também David Dias Neto, psicólogo e psicoterapeuta, avisa que o “isolamento se pode perpetuar” nas “pessoas em que já existam algumas questões afetivas, com alguma ansiedade social prévia, com depressão”. "É importante os serviços de saúde mental estarem preparados", acrescenta Leonel Garcia-Marques.
Sequelas da pandemia? Perdas de memória, impotência aprendida e comunicação dessincronizada
Há “consequências extraordinárias [da pandemia] para grandes segmentos da população”. A frase é de António Damásio, conceituado neurocientista português conhecido pelo estudo das emoções humanas, e foi dita, no início de junho, num encontro da Fundação José Neves. “Há, por exemplo, uma falta de treino em relação ao dia a dia que acarreta perdas de memória. Não nos vamos esquecer dos nomes dos nossos pais […], mas outras coisas que têm que ver com aquilo que fazemos normalmente, com as rotinas num espaço [dá o exemplo das pessoas com quem nos cruzávamos diariamente]. Todas essas coisas precisam de uma reativação constante para que se mantenham no nosso mundo. […] As pessoas ainda não perceberam, porque só agora é que as vão começar a viver”, desenvolve o neurologista.
Dentro do mesmo tema, David Dias Neto põe a hipótese de que soframos uma espécie de institucionalização da memória. “Há muita investigação que mostra que, com a institucionalização (estar num lar ou internado no hospital), como os dias são todos iguais, é muito fácil haver uma perda de orientação temporal e de memória”. “Com o confinamento e teletrabalho, vivemos uma espécie de institucionalização doméstica. Pode eventualmente haver um impacto por essa via”, compara o professor do ISPA-Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida. No entanto, logo a seguir tranquiliza: “É normal. Não é patológico”.
Há ainda a impotência aprendida. Isto é, a sensação de que não “temos controlo sobre o que nos está acontecer”, explica Leonel Garcia-Marques. “Nota-se no facto de as pessoas fazerem menos planos, de terem medo de fazer marcações”, porque não está nas mãos delas cumprir ou não os objetivos. “Esta impotência aprendida tem consequências psicológicas bastante graves de depressão e de perda de capacidades cognitivas, como a falta de poder de concentração”, aponta o investigador em Psicologia Cognitiva. No entanto, “esses défices são naturais e claro que podem ser reversíveis”, acrescenta.
Aquilo que deixa a psicóloga Luísa Lima mais apreensiva é o risco de nos termos habituado “a funcionar de forma dessincronizada”. “Se é verdade que para muitas pessoas que estavam isoladas as redes sociais passaram a ser um companheiro, [também é verdade que] esse tipo de interação é muito pouco natural e não se passa em tempo real. Podemos demorar muito tempo a escrever uma mensagem, que depois fica super-bonita e super-perfeita, mas, se calhar, quando estamos com a pessoa à frente não conseguimos dizer nada”, explica. “Esta dessincronização pode ser um problema. O que me preocupa verdadeiramente é as pessoas terem mais facilidade em contactar com os outros desta maneira ou perderem a capacidade, inata, de descodificar as emoções na outra pessoa e de reagir no imediato”, admite.
A máscara e outros cansaços
Quantas vezes já precisámos de repetir o que dizemos, porque do outro lado não nos entendem? Ou demos por nós a tirar a máscara… para ouvir melhor?
"É preciso investir mais não sei quanto esforço mental para comunicar coisas para que dantes chegava um sorriso"
A comunicação ficou mais complicada, e até mais cansativa, por causa deste novo adereço que trazemos colado à cara.
"A máscara dificulta a interação e a perceção das emoções, a empatia, a formação de impressões”, afirma Leonel Garcia-Marques, em linha com estudos que têm vindo a ser publicados nesta área.
O psicólogo dá um exemplo: “Vamos imaginar que chego a uma caixa de supermercado que tem uma fila enorme. Posso dizer [à pessoa que está a atender]: ‘Nunca fica farta de não ter nada que fazer?’. Se disser isso com sorriso, a pessoa percebe que é uma piada, que é o contrário do que está a acontecer. Se não vir o meu sorriso, pode achar que estou a dizer que é muito lenta”.
“É preciso investir mais não sei quanto esforço mental para comunicar coisas para que dantes chegava um sorriso, um movimento da boca”, reitera o investigador. A boca é um dos elementos que mais ajudam na leitura das expressões faciais, e agora temos precisado de aumentar a nossa capacidade de ler a parte superior da cara.
Isto pode parecer trivial, mas, ao mesmo tempo, faz diferença na nossa vida — como tão bem expressa Naomi Fry, num artigo da The New Yorker sobre o uso das máscaras.
Até com os amigos mais próximos o cumprimento deixou de ser evidente, nota Leonel Garcia-Marques. Já não sabemos “se é punho com punho, braço com não sei quê, aperto de mão, abraço... Há toda uma panóplia de possibilidades [risos]. E há o embaraço entre as pessoas para perceberem qual o estilo de interação com que se sentem à vontade”, desenvolve.
“Numa determinada cultura, as pessoas nascem e aprendem a cumprimentar-se intuitivamente. Nem pensam duas vezes. Agora não. Agora é preciso pensar”, continua o psicólogo, para reforçar a ideia de que, até nos movimentos mais simples do quotidiano, há um esforço que não existia antes.
Ainda assim, a máscara e os cumprimentos não chegam para justificar o cansaço que muitos de nós andamos a sentir.
"Uma pessoa aprendeu [as medidas] na ponta da língua no princípio, mas agora todas as semanas mudam. Estamos a gastar energia mental que não é secundária"
Leonel Garcia-Marques aprofunda: temos desenvolvido respostas típicas de momentos de maior stress, pelo “medo que se tem instilado, as notícias más, a limitação da nossa liberdade”. “A nossa atenção foca-se no imediato. É uma reação altamente adaptativa”, continua, “porque nos permite reagir rapidamente e mobilizar os recursos fisiológicos e cognitivos”. No entanto, torna mais difícil “ver o quadro mais completo, o longo prazo”. Este esforço tem-se estendido no tempo e, neste momento, estamos a sofrer o cansaço de duas fases que se sobrepõem: continuamos com medo e em alerta para os números diários, mas a perspetiva de regresso exige-nos tarefas que implicam fazer planos para o futuro. “E ficamos mais esgotados com isso”, explica o professor de Psicologia Cognitiva.
Acresce, ainda, “estarem sempre a mudar as regras. É um esforço incrível. Uma pessoa aprendeu [as medidas] na ponta da língua no princípio, mas agora todas as semanas mudam. Estamos a gastar energia mental que não é secundária. ‘Hoje é sexta-feira. Tens certificado? Há esplanada? É preciso marcar…’”, concretiza o psicólogo.
Sete estratégias para um regresso saudável
“O ser humano é muito flexível. Por isso é que nos conseguimos adaptar a esta situação de confinamento”, afirma David Dias Neto. “Isso não quer dizer que as coisas não tenham impacto. Mas a maioria das pessoas tem recursos para continuar a viver, sem entrar no campo da patologia a longo prazo”, afirma, fazendo questão de diferenciar que "podem existir questões do foro económico ou social que agravam substancialmente estas coisas de que estamos a falar. Pessoas que passam por situação de desemprego, de precariedade...".
Pensando no regresso, o psicólogo acredita que nos foi “mais difícil adaptar ao isolamento e ao confinamento do que vai ser adaptarmo-nos ao desconfinamento”. E dá uma margem temporal como referência: “Para a maior parte das pessoas, estaremos a falar de semanas [de adaptação]. Se a dificuldade de ajustamento for igual ou superior à que foi no confinamento, então se calhar pode ser um indicador de que as coisas podem não estar bem” e pode ser preciso procurar ajuda.
Entretanto, há algumas estratégias que podemos adotar:
- Aceitar que a adaptação leva tempo e pode acontecer com percalços. É preciso “aceitar e compreender estas nossas idiossincrasias como parte daquilo que faz de nós seres humanos e pessoas que se vão adaptando a coisas difíceis”, lembra David Dias Neto.
- Distinguir o que é transitório daquilo que é permanente. “O impacto das coisas transitórias no nosso funcionamento e na nossa relação com as outras pessoas não é demasiado grande. E não mexe com outras dimensões mais profundas em nós, como a autoestima. Se estivermos a falar da segunda opção, pode fazer sentido procurar ajuda para arranjar formas mais eficientes de adaptação”, esclarece o psicólogo.
- Partilhar mais com os outros o que vamos sentindo. “Sentirmo-nos iguais aos outros pode facilitar a troca de experiências”, afirma Leonel Garcia-Marques. “Eu tenho falado de emoções com pessoas que conheço mal, precisamente por causa disso. Porque há um sentido de partilha de identidade”, exemplifica. Contudo, “as nossas sociedades convivem muito mal com a expressão de sentimentos negativos. Se existisse essa normalização [de partilha mais aberta de emoções], era uma boa coisa”, concorda David Dias Neto.
- Identificar aquilo que nos protege dos embates (fatores protetores) e aquilo que nos fragiliza (fatores de risco). As experiências traumáticas de larga escala do passado mostram que “um dos melhores fatores protetores é a qualidade das relações e o apoio social que as pessoas têm. Isso pode passar por estar integrado numa comunidade, por ter um bom grupo de amigos — muitas vezes a religião também tem esse papel”, explica o David Dias Neto. Importa ativar essas redes. Um fator de risco é o consumo de álcool como refúgio, “porque faz que não tenhamos espaço para desenvolver outras formas de lidar com os problemas”. Mas são também fatores de risco ter tido “familiares próximos com covid-19” e, "numa situação ainda mais extremada, ter estado em unidades de cuidado intensivo”. É importante estarmos mais atentos aos sinais manifestados por estas pessoas, que “podem estar mais suscetíveis”.
- Alimentar as conversas ao vivo. A comunicação por WhatsApp “está para uma comunicação real como um snack está para uma refeição a sério: mata a fome, mas não alimenta”, alerta a psicóloga social Luísa Lima. “Acho que os níveis cada vez mais elevados de solidão que estamos a detetar têm que ver com isto”, com as relações viverem de “snacks, e não de refeições”, conjetura a psicóloga. Para contrariar isso, é preciso investir novamente nas conversas presenciais e em tempo real.
- O futuro pode não ser assim tão desconhecido. “O que sabemos do passado é que tendemos muito rapidamente a esquecer comportamentos anteriores”, lembra Luísa Lima. “Quando foi, por exemplo, o 11 de Setembro, punham-se questões relativamente a as pessoas deixarem de viajar. É verdade que houve esse medo, mas também houve depois estratégias para lidar com isso. Por parte quer das pessoas, quer das instituições, quer da legislação”. E, passado um tempo, “mantivemos basicamente o mesmo estilo de vida”.
- Regressar gradualmente. “No caso da ansiedade social, uma pessoa que esteja habituada nestes tempos a contactar por meios indiretos vai ter mais dificuldade em voltar ao presencial, a voltar a interagir”, sublinha o psicoterapeuta David Dias Neto. Rita Francisco, professora auxiliar de Psicologia na Universidade Católica, adverte que não será benéfico "de repente passarmos o dia inteiro fora de casa". "Os pequenos passos e as interações vão provocar emoções positivas que contribuem para que as pessoas se sintam melhor com elas próprias", evidencia Rita Francisco, sugerindo que o retorno poderá ser mais fácil se estivermos atentos a estes pequenos sinais.
(Créditos ilustração: Piyapong Saydaung | Pixabay)
Sente receios no regresso à vida social? Surgem-lhe reações que gostava de perceber melhor? Iremos convidar um psicólogo para falar sobre o tema deste artigo e a conversa será publicada em versão áudio (podcast). Envie-nos as suas perguntas, para que as possamos incluir na discussão (24@sapo.pt). Fique atento à publicação do podcast. Encontramo-nos lá!
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