No passado dia 1 de abril, o jornal russo Novaya Gazeta, pela voz da premiada - e perseguida - jornalista Elena Milashina, noticiou que as autoridades da Tchetchénia, uma república da Federação Russa, lançaram uma campanha “anti-gay” e reuniram vários homens “suspeitos” de serem homossexuais. Mais de 100 pessoas terão sido detidas, e três terão sido mesmo mortas. Segundo o jornal, entre os detidos estavam personalidades locais de televisão e líderes religiosos.

Alvi Karimov, porta-voz do presidente da Tchechténia, Ramzan Kadyrov, denunciou estas informações como “mentiras absolutas” e acrescentou: “não se podem perseguir e deter pessoas que simplesmente não existem. Se essas pessoas [LGBT] existissem na Tchéchenia as autoridades não precisariam de fazer nada porque as suas próprias famílias os enviariam para um sítio sem retorno”.

“Existem pessoas LGBT em todo o lado, em todas as famílias, e estas declarações devem ser um sinal de alerta. Revelam o quão importante é ajudar estas pessoas, seja para se manterem em segurança, seja para serem recebidas no nosso país”, diz Marta Ramos, Diretora Executiva da ILGA (Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual e Transgénero), em declarações ao SAPO24.

Na mesma linha, Pedro Neto, Diretor da Amnistia Internacional (AI) Portugal vê nestas declarações de oficiais tchetchenos “um indicador da gravidade do que enfrentamos aqui”.

O Escritório Regional da Europa e Centro Ásia da Amnistia Internacional está a analisar estes casos, estando a investigação a ser coordenada pelo escritório de Moscovo. “São eles que vão para o terreno para se certificarem de todas estas informações, para registarem denúncias e pedidos de ajuda”. Dedicados a este escritório estão cerca de 15 funcionários, distribuídos entre Londres, no Secretariado Internacional, Bruxelas, junto das instituições europeias, e Moscovo. “Depois há países com secções nacionais, como é o caso da Ucrânia. Na Tchetchénia não temos uma secção”, diz o responsável português.

Questionado sobre os relatos na imprensa sobre a repressão da comunidade LBGT nesta região, Pedro Neto confirma que a AI já chegou ao contacto com a jornalista Elena Milashina e com três das vítimas, um número ainda provisório considerando que os trabalhos prosseguem no terreno.

“O trabalho da Elena Milashina, da Novaya Gazeta, merece toda a nossa confiança. A Elena já colaborou connosco e também foi sinalizada, por ser vítima de ameaças de morte, pela AI”, conta Pedro, escusando-se porém a avançar detalhes sobre os alegados “campos de concentração” referidos na imprensa internacional e para onde são alegadamente enviadas as pessoas LGBT detidas. Esta informação carece ainda de confirmação pela AI. “Não consideramos ainda esta questão dos campos, mas de facto verificámos que tem havido maus tratos, tortura e raptos de pessoas que são homossexuais ou são identificados como tal”.

Do lado da ILGA, Marta Ramos, a par também destes alegados “campos”, refere que não tem mais informação do que aquela que tem sido veiculada pela imprensa internacional e explica porque é que é tão difícil investigar e verificar estas alegações.

“É cada vez mais difícil trabalhar sobre questões LGBT na Rússia e em regiões sobre influência russa por causa da Lei da Propaganda, que não permite que sejam tratadas questões LGBT em espaço público. Também na Rússia, a lei de agentes estrangeiros - que restringe a atividade de organizações não-governamentais (ONG) porque o seu financiamento vem do exterior - afeta organizações como a nossa, dificultando a atuação no terreno. Portanto, é uma atividade muito undercover”. “Se já existia homofobia nesta região, as leis aprovadas entretanto - dos agentes estrangeiros, em 2012, e a Lei da Propaganda, em 2013 - legitimam este comportamento”, conclui Marta Ramos.

A Lei da Propaganda russa, aprovada e adotada em 2013, proíbe equiparar as relações homossexuais a relações heterossexuais, assim como a distribuição de material sobre os direitos das pessoas LGBT ou qualquer propaganda que promova “relações não tradicionais”, introduzindo multas a indivíduos ou grupos que violem a legislação, havendo inclusivamente coimas especiais para estrangeiros.

No que à lei dos agentes estrangeiros diz respeito, em vigor desde 2012, exige às ONG que recebam donativos de entidades estrangeiras e se dediquem a ‘atividades políticas’ que se registem como agentes estrangeiros.

“A lei dos ‘agentes estrangeiros' foi criada para agrilhoar, estigmatizar e, no fundo, silenciar ONG críticas. Apanhou nas suas redes uma grande variedade de ONG, com um custo muito significativo para os direitos individuais e para a qualidade da discussão cívica na Rússia. Em última análise, os maiores derrotados não são só as ONG mas a sociedade russa”, escrevia o diretor da Amnistia Internacional Rússia, Serguei Nikitin, a 18 de novembro de 2016, numa análise realizada após quatro anos com a lei em vigor.

Pedro Neto confirma esta dificuldade em aceder a informação. “Há uns meses o nosso escritório na Rússia [em Moscovo] foi fechado. Os nossos colegas chegaram de manhã e tinham um aviso de porta fechada, no sentido de impedir que pudéssemos trabalhar, fazer o nosso trabalho normal. Há uma contra-propaganda por parte de órgãos oficiais contra as ONG, sobretudo organizações como a nossa, que denunciam muitas situações de desrespeito pelos direitos humanos por parte de entidades oficiais. Faz parte, não é isso que nos vai deter ou impedir de fazer o que temos de fazer, que é defender aqueles que estão em situação de fragilidade”, garante. “Em muitos casos, se não formos nós estas vítimas não terão voz e os seus casos cairão no esquecimento. Sendo esquecido, o problema persiste e nunca é resolvido”, remata.

O facto é que a repressão das pessoas LGBT não é um dado novo nesta região do mundo, confirma Marta Ramos, adiantando que a ILGA “recebe quase todos os dias pedidos de informação provenientes da Rússia ou de regiões sob influência russa sobre a possibilidade de asilo em Portugal”.

Por outro lado, diz, “é cada vez maior a atenção que os meios internacionais dão a estes casos, que já aconteciam, mas que agora são mais mediáticos. O shaming internacional [crítica internacional] é importante porque nos permite abordar o tema com países onde existe um lock down relativo a questões LGBT”, diz a responsável, dando como exemplo o Conselho da Europa, onde a Rússia também se senta, e onde estas questões, com a devida visibilidade, podem ser abordadas, no âmbito de debates sobre a defesa dos direitos humanos.

E é aqui que entra também a ação da Amnistia Internacional, que hoje apelou às autoridades russas para que investiguem as alegadas práticas de rapto e tortura de homossexuais na Tchetchénia, tendo lançado uma petição a exigir que os responsáveis sejam levados à justiça.

“Vários homens estão a ser raptados, torturados e até mesmo mortos na Tchetchénia por serem identificados como homossexuais. (…) Em pleno século XXI não podemos deixar que as pessoas sejam agredidas e mortas pela sua orientação sexual e que os perpetradores fiquem impunes. Ajude-nos a pedir a que seja feita justiça apelando ao Presidente da Comissão de Investigação russa, Aleksandr Ivanovich Bastrikin e ao Diretor Interino da mesma instituição, Serguei Sokolov, para que estes crimes sejam investigados e as pessoas em risco protegidas. Ao assinar a petição será enviado um e-mail em seu nome”, pode ler-se na nota da organização.

“Este comunicado é para dar início a uma petição, no sentido de apelar ao envolvimento das pessoas. A AI não tem força por si própria, tem força porque são muitas pessoas, são muitas vozes a apelar para o mesmo”, reforça Pedro Neto ao SAPO24.

“As campanhas têm sempre duas vertentes: uma de envolvimento público, que prevê petições e visa alertar para o assunto; e outra de trabalho jurídico, fazendo pressão sobre aqueles que são responsáveis pelo problema que estamos a denunciar, para que o revertam e resolvam”, explica.

A par, Sarah Kate Ellis, presidente da GLAAD, ONG que monitoriza os temas LGBT nos media, apelou à embaixadora norte-americana para as Nações Unidas, Nikki Haley, que condenasse a repressão do governo da Tchetchénia. Chad Griffin, presidente da organização para a defesa dos direitos humanos HRC, apelou ao secretário de estado norte-americano Rex Tillerson que tomasse uma posição. Ações que são reflexo da dimensão internacional deste caso.

Pedro Neto resume: “Não podemos admitir que isto continue a a acontecer e que estas pessoas sejam discriminadas, torturadas, raptadas e mortas. Temos de alertar o mundo para isto porque estas pessoas têm todo o direito de serem como são e de gostarem de quem gostam, tal como toda a gente, não há nenhuma diferença. O que está a acontecer é inaceitável”.