Depois do “Dia da Libertação”, nomenclatura usada pelo presidente americano para designar a nova etapa das relações comerciais, o mundo passou a olhar com novos olhos para as ameaças de Donald Trump.Os mercados retrairam-se, as principais economias visadas reagiram - com destaque para a China - e alguns países tiveram de aceitar ajustar-se às novas regras, face à exposição que têm à economia americana (como é o caso do Vietname). Mas, explica José Alves, investigador no Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa, no fundo, as tarifas impostas são interpretadas como uma tentativa de mascarar e resolver o défice orçamental da economia norte-americana “do dia para a noite”.

“O problema dos Estados Unidos é que têm registado défices externos ao longo dos últimos anos bastante acentuados e isso tem criado enormes problemas à economia norte-americana”, refere. “O presidente Trump poderia fazer uma consolidação orçamental de modo a reequilibrar essas contas externas. Contudo, politicamente, não convém dizer que vai ter de aumentar impostos e reduzir despesas”.

No entanto, segundo o académico, os mais impactados pelas tarifas serão sempre os próprios norte-americanos: “Quem compra os produtos importados mais caros são os próprios americanos e, por isso, a economia do país, bem como toda a economia mundial, vai ressentir a falta de procura”.

Vejamos alguns exemplos. “Um produto que custa 100 euros e tem uma tarifa, por exemplo, de 32%, vai passar a custar  132 euros. E quem vai pagar esses produtos mais caros são os americanos”. Com o mesmo rendimento, ou seja, sem o aumento de salários, vão ter de consumir menos bens e serviços, e lidar com a inflação.

Assim, a atividade económica mundial “vai reduzir, porque a grande procura feita pelos Estados Unidos também vai ser menor” e será necessário equilibrar as relações comerciais. A Guerra Comercial instalada pelos americanos vai resultar, em última instância, no aumento do custo de vida.

Por causa da tarifa universal de 10% sobre importações, é provável que qualquer produto importado fique mais caro nas próximas semanas e meses, à medida que as empresas americanas absorvem as taxas de importação e ajustam os seus preços em resposta.

“Não só os produtos exportados para os Estados Unidos ficam mais caros, mas também os produtos importados, por exemplo, para a Europa, ficam mais caros e, portanto, toda a gente perde”, declara o professor. Passa a haver menos poder de compra, e menos procura, influenciando ainda as relações externas.

Segundo o World Integrated Trade Solution, os EUA importam produtos principalmente da China, do México e do Canadá, sendo os países que se seguem o Japão, a Alemanha e o Vietname.

Trump quer mesmo taxar os produtos chineses a 104%?

Os EUA têm uma relação deficitária com a balança chinesa, importam mais do que exportam, desde roupa e calçado, mobília, a telefones da Apple, televisões, e outros serviços eletrónicos, deixando a China numa posição privilegiada.

Depois da decisão do Governo chinês de impor tarifas de 34% sobre os produtos americanos, a administração Trump anunciou a aplicação de uma tarifa recíproca no mesmo valor à China, o que significa que os produtos fabricados no país e importados para os EUA poderão ter preços mais altos logo após a entrada em vigor das tarifas, no dia 9 de abril.

Esta semana, Trump voltou a ameaçar com uma tarifa de 50% que, se se concretizar, atingiria um total de 104% sobre os produtos chineses. De facto, os novos impostos de 50% seriam adicionados às taxas de 20% anunciadas como punição pelo tráfico de fentanil e às taxas iniciais de 34% .

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O Ministério do Comércio chinês considerou a medida do presidente americano "um novo erro". E, em nota, acrescentou que a medida "expõe mais uma vez a sua natureza chantagista, que a China nunca aceitará”.

Ainda assim, com as novas provocações, os mercados bolsistas de Tóquio a Nova Iorque afundaram nos últimos dias, antecipando o futuro desastroso da economia global.

A resposta da China pode impactar a Europa?

Para José Alves, apesar de os preços aumentarem para os EUA, as tarifas são aplicadas a cada país, e a Europa “não deverá sofrer diretamente com esta medida”. O economista não acredita que a pressão americana leve a China a aumentar o preço dos produtos para outros países.

A reação da China é “uma posição para mostrar força”, sem efeitos na relação com a Europa. "Mesmo sofrendo algum impacto económico, [a China] não vai deixar de continuar a crescer, porque acumulou muitos rendimentos ao longo dos anos a exportar para os Estados Unidos e para o resto do mundo”, defende.

De qualquer forma, para o académico é claro que “a decisão de taxar as importações por parte dos outros Estados não só vai agravar a situação, como também não ajuda as contas externas”. Inevitavelmente, este jogo comercial terá impacto na economia nacional de cada país e na estabilidade das empresas, "e vai afetar-nos a todos".

A Europa importa "muito mais serviços do que exporta para os Estados Unidos”, devendo também sofrer com esse desequilíbrio.

Um documento de trabalho da Comissão Europeia ao qual a AFP teve acesso sugere que a UE está a preparar tarifas até 25% para os produtos americanos, contribuindo para o aumento dos preços.

Quais são os produtos taxados pelos EUA?

  • 25% de tarifas sobre os produtos automóveis, acrescidas aos 10% universais.
  • Na indústria de roupa e do calçado, vão ser aplicadas tarifas aos principais países que exportam estes produtos: 34% para a China, 46% para o Vietname e 37% para o Bangladesh.
  • Os vinhos e bebidas alcoólicas importadas de Itália, França e Escócia vão ser taxadas em 20%, e do Reino Unido a 10%. Estas medidas vão afetar toda a indústria, inclusive portuguesa.
  • A mobília também é importada da China e do Vietname, de acordo com a CNBC, com tarifas altas para todos os produtos.
  • As tarifas de 10% para o Brasil e a Colômbia vão reduzir as importações de café e chocolate. O mesmo se aplica em relação aos produtos da Costa do Marfim, taxados a 21%, e do Equador, a 10%.
  • Os relógios da Suíça, como os da marca Rolex, vão ser sujeitos a tarifas de 31%.
  • Todos os produtos importados da Europa vão ser taxados a 20%.
  • Todas as importações de aço, alumínio, automóveis e peças de automóveis vão ser taxadas a 25%.

Os produtos mais exportados para os EUA são:

  • Óleos de petróleo e petróleo bruto.
  • Produtos médicos e farmacêuticos.
  • Gás natural.
  • Automóveis e veículos a motor.
  • Recursos humanos.

As exportações da UE representam mais de 15 % das exportações mundiais. Em 2023, 13,7% das importações dos EUA vieram da Europa. Em contrapartida, 14,3% das exportações americanas tiveram como destino o continente europeu.

Os principais produtos americanos importados pela Europa são:

De acordo com dados de 2022, da Trading Economics, os principais produtos importados incluem:​

  • Combustíveis minerais e óleos: aproximadamente 108,94 biliões de dólares.​
  • Máquinas e reatores nucleares: cerca de 50,13 biliões de dólares.​
  • Produtos farmacêuticos: em torno de 37,89 biliões de dólares.​
  • Aparelhos ópticos e médicos: aproximadamente 27,29 biliões de dólares.​
  • Equipamentos elétricos e eletrónicos: cerca de 19,91 biliões de dólares.​
  • Aeronaves e material de astronomia: em torno de 17,49 biliões de dólares.​
  • Produtos químicos orgânicos: aproximadamente 15,22 biliões de dólares.​
  • Veículos automóveis: cerca de 12,85 biliões de dólares.

Porque estão a ser impostas estas tarifas?

“O grande problema dos EUA não é a balança dos serviços, que é altamente excedentária. O grande problema dos Estados Unidos é a balança de bens, que é altamente necessária e, portanto, importa mais bens do que exporta”, esclarece José Alves.

As tarifas são impostas aos bens importados do exterior, para desincentivar os norte-americanos a comprar produtos ao estrangeiro. Esta medida só resultaria se os EUA se tornassem “mais competitivos face ao resto do mundo, investindo em mais tecnologia, com maior valor acrescentado para permitir não só não importar tanto, como exportar mais”. Mas “isso não acontece do dia para a noite”.

Trump quer acelerar esse processo, mas sem efeitos.

Artigo editado por Rute Sousa Vasco