Ao longo dos anos, João Céu e Silva tem publicado uma série de longas entrevistas com figuras icónicas da nossa cultura que podem ser lidas como biografias - embora ele prefira não as considere como tal. O facto é que retratam a pessoa como ela realmente é, o que não acontece quando é o próprio a escrever. Este formato é particularmente interessante e revelador, como o demonstra o último livro, “Uma longa viagem com Maria Filomena Mónica”.

Aproveitando a oportunidade, tivemos um longa conversa com o biógrafo não assumido, onde falamos de questões que vão da privacidade das pessoas públicas à hipocrisia das instituições.

Este é um livro que mostra quem é a Filomena Mónica além das autobiografias que ela própria escreveu. É um retrato que apresenta as suas contradições, nomeadamente a fundamental, a de uma mulher que vem da classe alta tradicional e ao mesmo tempo tem ideias políticas muito mais à esquerda do que essa mesma classe.

Sim. Não vou dizer que ela seja uma contradição, mas faz parte duma época do século XX em que, nas pessoas oriundas de famílias mais conservadoras, os filhos descobriram que havia algo mais do que o Salazar ou a “primavera marcelista”. Começaram a descobrir outros mundos.

A Filomena Mónica tem um grande acontecimento na vida que foi ter conseguido ir (estudar) para Oxford. A partir daí, a menina rebelde - talvez por culpa do relacionamento com a mãe - encontra o lugar ideal em Oxford, que na altura era extremamente esquerdista, pró-URSS, pró-Marx, com aquelas ideias que aqui só surgiriam seis anos depois, a partir de 1974. Até essa data, em Portugal talvez se falasse da divisão entre a URSS e a China, havia algumas pessoas maioistas, mas a família dela era extremamente conservadora e ela própria, era, nas suas palavras, “analfabeta”, “estúpida”, e não conhecia essas ideias.

Ela vai ler tudo o que é literatura marxista, estuda “O Capital” como poucos em Portugal estudaram, e até participou num grupo de três ou quatro amigos para estudar o livro. Um deles é alemão, porque eles desconfiam que a tradução inglesa possa estar envenenada.

Resumindo, ela vem de uma família conservadora, tem os ideais conservadores, acaba por fazer um casamento fruto desse conservadorismo (com Carlos Pinto Coelho), e depois a vida é-lhe madrasta (não gosto desta expressão, mas enfim) tem de se fazer ao caminho. Então descobre esses ideais marxistas, que lhe ofuscam o pensamento.

Depois evolui e vai mudando, mas a influência do Marx ainda existe nela hoje em dia.

A influência que se destaca mais, sobretudo para uma pessoa da geração dela (tem hoje 80 anos) é ser anglófila. Porque a geração dela ainda era muito francófona, não só na cultura, mas também nas ideias políticas. A atitude dela em relação à política é uma postura britânica, que é um pouco diferente da esquerda francesa.

Eu acho que ela fica tão anglófila como reação aos valores francófonos da família, e depois é o deslumbramento - uma miúda, que se considerava analfabeta, chega a Oxford e fala com figuras que vai conhecer no futuro como autores de livros determinantes - porque quando lá chega não os conhece bem. Mas quando percebe quem eles são, fica fascinada. É um mundo onde o Vasco Pulido Valente também entra, e também ele se ofusca com a cultura inglesa.

É como se um actor de teatro encontrasse o seu modelo de protagonista em certos clichés da sua formação.

Quando ela vai a França, fica chocadíssima com os franceses! Acha-os muito atrasados em comparação com os ingleses.  E a Inglaterra na década de 1960 não é mais avançada do que a França ao nível de pensamento, vai é por outros caminhos. Talvez mais materialista, mas os franceses é que dominam as ideias.

É interessante que a Inglaterra, apesar de todas essas pretenções, é a sociedade mais estratificada da Europa.  Basta falar com uma pessoa, ao fim de cinco minutos percebe-se imediatamente a classe a que pertence, pelo sotaque, pela entoação.

Isso é uma atitude em que a Filomena Mónica encaixa muito bem. Porque a questão de classe é dos valores que ela tem mais imbuídos.

Bilhete de Identidade de Maria Filomena Mónica
Bilhete de Identidade de Maria Filomena Mónica créditos: DR

Nessa cultura, temos a questão da biografia. Há um princípio, que é o não se poder falar publicamente da intimidade doutras pessoas. É uma indiscrição que não respeita o direito à privacidade que todos têm. Tenho falado com várias pessoas sobre isso e há umas que têm outra visão, que é a britânica, de que é bom “partir a loiça”. Até pode ser visto como uma atitude anti-conservadora, anti-clerical, anti-princípios estabelecidos.

Desde que haja provas, testemunhos, eu sou a favor de que se digam as coisas. Um dos maiores problemas das biografias portuguesas é que não há muitas, nem autobiografias, nem memórias, e as que haviam eram apenas auto-elogios ou panegíricos que interessavam aos próprios.

Agora, nunca se deve atirar as coisas sem provas. Por exemplo, no caso deste livro, um dos episódios que mais polémica deu é a orgia em casa da Helena e do Alberto Vaz da Silva, e que estava presente João Benard da Costa. Isto não vem na autobiografia da Filomena Mónica (“Bilhete de Identidade”, 2005) desta forma explícita. Na altura, não teve coragem para o dizer. E agora, no meu livro, disse. Eu ouvi uma vez, achei “olha, isto é desconhecido e interessante”, e duas sessões depois voltei a perguntar, porque se ela confirmasse, significava que não era contra a publicação. Mas eu também já tinha esta história de outra fonte, muito fidedigna, só que não a pude usar porque nem a pessoa queria, nem desenvolveu até este ponto.

Então, eu só incluí aquilo no livro porque tinha uma dupla confirmação e achei que era importante. A Maria Filomena Mónica quer seguir a abordagem do Lytton Strachey, um biógrafo que destruia os mitos. Mas o meu interesse não era esse. O meu interesse é contar a história da vida dela e aquilo é um pormenor. Hoje em dia nós vemos, perante esta cultura “woke”, como é difícil dizer certas coisas; para ela mais deveria ser, em 2005, quando publicou a autobiografia. Tanto que o livro chocou imensa gente e acabou com a amizade com o Vasco Pulido Valente. Ela explica no meu livro que isso se ficou a dever ao envenenamento do João Benard da Costa junto do Vasco.

Portanto, ela deverá ter querido ir mais longe para esclarecer essa situação. Até poderia dizer que seria um ajuste de contas, duas décadas depois. E não o faz porque os três envolvidos já faleceram, também faz críticas e conta coisas de outras pessoas que estão vivas sem qualquer problema.

Eu não sou contra que se façam essas revelações após a morte das pessoas. Pelo contrário. Ninguém quereria fazer uma biografia do Dom Afonso Henriques se não pudesse juntar novas informações - mesmo que seja muito difícil encontrar novas premisssas sobre uma pessoa que viveu há mais de 800 anos.

Há uns cinco, dez anos, o Domingos Amaral lançou uma trilogia, “Assim nasceu Portugal”, em que dizia que o Dom Afonso Henriques, quando bebé, era muito débil e não ia viver.

E foi trocado por um filho do Martim Moniz, não é?

É. Dizer isto tantos anos depois pode ser uma heresia que não há forma de provar. Ou então é muito difícil, tem de se fazer uma leitura de certos documentos.

Eu fiz uma entrevista com o Domingos e em que estava presente o pai, o Diogo Freitas do Amaral, autor duma biografia do rei. Convidei os dois para poder verificar perante um historiador, o Diogo, e um escritor, o Domingos. O pai confirmou essa versão, era muito possível que isso tivesse acontecido.

Eu só dei voz na entrevista a essa hipótese do Afonso Henriques em pequenino ter sido trocado por um rapaz mais forte, porque tinha a confirmação do Diogo Freitas do Amaral.

Mas eu não estou a por em questão teres publicado (a cena da orgia). Não és tu que estás em questão. Ou seja; ao publicares aquilo que ela disse, estás a cumprir a tua função de jornalista. Não é aí.

Não te esqueças de que o faço porque já tinha essa informação de outra fonte. Apenas confirmei.

As três pessoas que ela cita nessa orgia têm filhos e netos vivos. Morreram, não se podem defender, e os filhos e netos têm de arcar com essa revelação sobre os pais deles. Verdade ou não, a questão é que a privacidade dos pais foi atingida. 

Quando a confrontaste com o facto de não ter contado da orgia no livro, a resposta foi “Quando vou ao museu, umas vezes observo uns quadros, noutras vezes observo quadros diferentes”. Quando falei com ela, na altura do “Bilhete de Identidade”, critiquei por ter posto o nome do Vasco Pulido Valente e ela respondeu-me: “Só se queixaram os que não estão lá”. Ou seja, ela tem sempre uma resposta para justificar o que faz.

Isso é verdade.

Mas eu acho que os filhos não têm de arcar com o que os pais fizeram. Penso que essa história da orgia está a ter uma repercussão exagerada, porque é do gosto de muitos leitores. Mas a situação não seria assim tão desconhecida na época. Ninguém fala, mas não teria sido só a Filomena a ir lá, aliás, como o Vasco Pulido Valente. Eu acredito que isso é sabido por muitas pessoas,

Aliás, eu tive um editor, o Manuel S. Fonseca, da “Guerra e Paz”, que escreveu uma crónica no “Correio da Manhã” em que diz que isso seria uma coisa muito normal na altura. E mais: que o João Benard da Costa era um católico ferveroso, lia a Bíblia, ia à missa, lia as encíclicas de todos os papas, mas que estava no seu espírito essa perversão dos valores. Não é perversão do sexo; é perversão dos valores; “eu sou católico, mas posso perverter”. E isso é um ambiente muito próprio daquela época, da década de 1970. Não tenho qualquer dúvida que possa ter acontecido.

Vamos a uma figura diferente: o Salazar. Durante muitos anos, ninguém escrevia sobre ele, porque seria considerado fascista, e a direita mais conservadora não queria que se falasse mal do senhor. No entanto, pouco a pouco, foi-se falando de outra forma; e aquele Salazar mais mítico não deixou de existir, mas foi-se tornando mais real.

Ainda agora saiu um livro que é só dedicado às cunhas que o Salazar recebia (“Salazar confidencial”, de Marco Alves) e mostra que ele era muito receptivo a essas cunhas e as usava para depois cobrar os favores.

Alias, a própria Filomena Mónica dá o exemplo de uma família nobre que tinha uma quinta no local onde passava um dos pilares da ponte sobre o Tejo e que o Salazar mandou desviar - por isso é que o acesso sul faz uma curva à saída, para não lhes estragar os jardins.

Assim, começamos a conhecer o Salazar de outra forma. Acho importante que se conheça as pessoas em todas as suas dimensões. Porque quando entram para a vida pública - o Benard da Costa, ou até a própria Helena Vaz da Silva, porque o Alberto era mais reservado - eles têm uma exposição constante, portanto os valores que defendem têm de ser sempre confrontados com a realidade que viveram.

Posso dizer que com esta série de “longas viagens”, que já vai no sétimo livro, tive muitas vezes desabafos, confissões e, mesmo de propósito, alguns deles disseram coisas sobre pessoas que estavam vivas ou coisas que, no meu entender, não  poderiam ainda ser publicadas. E eu auto-censurei-me; há dois ou três livros que poderia ter dez páginas cheias de casos interessantíssimos para o leitor/voyeur. E fi-lo porque realmente não posso estar a destruir a privacidade e a memória das pessoas. Principalmente quando estão vivas.

Uma longa viagem com Maria Filomena Mónica
Uma longa viagem com Maria Filomena Mónica créditos: DR

E como foi o processo no caso desta biografia?

Aqui, a situação não me pareceu complicada, primeiro porque não tenho qualquer dúvida que seria fácil o João Benard da Costa tivesse esse tipo de comportamentos, menos padronizados, mais inovadores para a época. Aliás, quem viveu os anos setenta em Portugal sabe de milhares de situações . Ainda no outro dia estava a falar com militar de Abril que me contou pormenores de outro, um dos grandes heróis da Revolução, sobre as noites que eles passavam em Lisboa - e eu nunca revelei isso porque não tinha provas, não tinha obtido uma dupla confirmação. Portanto, essa parte foi retirada.

Nesta parte aqui, não vi problemas. A família reagiu, mas não foi um direito de resposta, porque não há uma resposta, há só um repúdio por aquilo que a Filomena disse, e inclusive acusaram-me a mim de usar aquilo para promover a venda do livro. Os meus directores no “Diário de Notícias” foram muito eloquentes; quem escolhe o que vai ser publicado não é o autor, é a direcção que escolhe a parte publicada.

Mas eu não respondi, acho que não valia a pena. Agora, quem viveu os anos setenta sabe de certeza muitas mais destas histórias que nunca foram contadas. Aqui, ela está enquadrada numa situação que até é interessante se fizermos a comparação com o presente caso da pedofilia na Igreja. O escândalo é a Igreja e os seus praticantes se mostraram como pessoas respeitáveis, quando, na verdade, uma grande parte deles não o são. Porque os crentes não abandonaram as igrejas quando souberam que os padres que lá estavam a dar as homilias eram alegadamente pedófilos.

Esta questão não é sequer discutível. Existe uma enorme hipocrisia. E não é só na Igreja católica; provavelmente no Islão e noutras religiões também existirá essa falsidade. Aliás, um dos grandes debates sobre o terrorismo é como é que os seguidores do Islão cometem tais actos.

Agora, se há cinquenta anos não podíamos dizer que alguns crentes islamistas alegadamente eram terroristas, hoje em dia isso pode ser dito sem qualquer problema. Os tempos mostraram que, tal como a hipocrisia da Igreja católica, também existe hipocrisia nas outras religiões. O 11 de Setembro confirmou essa realidade e o mundo passou a ter outra visão.

Eu calculo que os descendentes do Osama bin-Laden devem ter ficado chocados com certas revelações que se fizeram e que, em Portugal, muitas pessoas devem ter ficado chocadas com as revelações deste escândalo da pedofilia, mas nós temos de saber as coisas para agir em conformidade.

Não se pode deixar de considerar o que seria um equilíbrio entre o direito de privacidade e o valor de desmascarar a hipocrisia.

Eu não vou por aí. Este livro, não digo que ultrapasse as revelações da autobiografia da Filomena, porque eu estava mais preocupado em fazer um retrato da obra dela. Na série das “longas viagens” o cenário de fundo é a obra do autor. No caso do Álvaro Cunhal, não queria o Álvaro Cunhal político, mas sim o Manuel Tiago escritor, é isso que me interessa.

A pessoa aparece nos livros não com o intuito de se fazer uma biografia, mas a biografia surge naquilo que interessa à obra. Há uma divisão entre toda a obra escrita pela pessoa e a sua biografia. Os factos biográficos apenas ajudam a compreender certas coisas.

Por exemplo, a ida da Filomena Mónica para Oxford molda-lhe o pensamento. Então isso interessa, vamos colocar no livro como era a vida dela lá. Ela diz que nunca se sentiu assediada; então vamos lá saber, pois se todas as mulheres se sentem assediadas, porque é que ela nunca se sentiu? Vamos tentar apurar. Ela não fala muito dos homens que teve na sua vida, mas revela nos livros que teve certos amores. Mas o mais importante para mim é saber como ela chega aquelas teses na área da educação. Como é que ela faz aquelas crónicas a criticar a Justiça, porque é que ela faz o relato da visão dos estrangeiros que vêm a Portugal, como vê a situação do país. Essas são as questões principais.

A Maria Filomena Mónica é muito crítica em relação a Portugal e também emite opiniões sobre algumas figuras conhecidas, como a Sophia de Mello Breyner Andresen. Por um lado, é uma ousadia muito salutar, porque não se sente na obrigação de venerar ninguém. A Sophia, por exemplo, é um ícone praticamente intocável e a Filomena diz que não a acha interessante. Mas, sobre si própria, é menos crítica. Perdi a conta de quantas vezes diz que era “uma miúda, gira, loira, de mini-saia”. E, quando diz que era estúpida, está a dizer precisamente o contrário.

Isso é bem verdade. Ela diz que, para fazer a autobiografia, se inspirou no livro da Mary McCarthy, “Memories of a Catholic Girlwood”. Eu fui ver a crítica que o “The New York Times” publica em 1957; elogia muito, diz que é um livro revolucionário, escrito de uma forma diferente; mas a autora caucionou imediatamente todos os seus biógrafos às suas próprias opiniões. Ou seja, tal como a Filomena, cauciona (assegura-se de que) todos os que escrevem sobre ela confirmem as opiniões que ela deu de si própria. O próprio Miguel Torga escreveu uma espécie de auto-biografia (“A criação do Mundo”) e outros livros em que já defendia a sua pessoa. Ninguém pode dizer no futuro que ele não era assim.

No caso da Sophia, que eu respeito muito, quando a Filomena disse aquilo fiquei ligeiramente chocado. E ainda fiquei mais chocado quando ela disse que não conhece a poetisa Ana Luísa Amaral . No entanto lembrei-me de uma escritora portuguesa que já me tinha feito queixas sobre a forma de ser da Sophia. O que a Filomena diz é apenas um ínfima parte do que esta mulher, escritora, madura, me contou em off. Também aí, tal como no caso da orgia, eu estava escudado numa informação de extrema confiança.

As biografias, quando vêm trazer algo de novo, são muito importantes. Porque a ideia que temos da Sophia é de uma mulher fantástica. Quando ela se esquece dos filhos no supermercado e os deixa sozinhos porque está a conceber um poema, é uma história divina, mas hoje em dia seria presa e os filhos retirados pela Segurança Social!

O perfil que nós temos da Sophia faz parte de uma época; se alguem vier a fazer uma biografia séria dela, se calhar vai-se descobrir coisas menos simpáticas. Há uma biografia da Susan Sontag, do Benjamin Moser, em que ele a “descasca” de uma forma que as pessoas já não a conseguem ver como um ícone. Mas isso não quer dizer que desrespeitemos o pensamento dela; foi muito importante, abriu-me os olhos.

As pessoas são frutos do seu tempo. Vivem, pensam e criam a sua cabeça naquele tempo. Nós, hoje, noutro tempo olhamos para as coisas de  maneira diferente, mas temos de perceber as circunstâncias em que elas viveram.