Já passa da meia-noite. A sede regional do CDS Madeira está praticamente vazia com os últimos militantes e simpatizantes a concentrarem-se à porta do número um da rua da Mouraria, no Funchal,  balançando o corpo com uma bandeira na mão e uma cerveja na outra.

Minutos antes o ambiente era de pura festa. O CDS-PP foi a terceira força política mais votada destas eleições regionais e conseguiu ser aquilo que todos os militantes queriam: a força decisiva.

O partido de Rui Barreto, número um da lista nestas eleições, perdeu quatro lugares no parlamento regional. Mas numa eleição extremamente bipolarizada, conseguiu manter-se forte ao ponto de ser o partido que pode dar uma maioria parlamentar ao governo de Miguel Albuquerque que, pela primeira vez na história democrática da Região Autónoma, não venceu as eleições com maioria absoluta.

Com a faca e o queijo na mão, o candidato centrista diz que vai dar primazia à negociação com o PSD por "respeito com a indicação maioritária do povo", assumindo que defraudaria o eleitorado do CDS se fizesse uma coligação com o Partido Socialista de Paulo Cafôfo.

Surpreendido com uma eleição de tal forma bipolarizada, congratula-se pelo peso do CDS, apesar de reconhecer que o "resultado ficou aquém daquilo que queria que o partido tivesse". Os democratas cristãos são a peça-chave do futuro da Madeira e só têm um guião de negociação, desse, Barreto não abdica. Não abdica da saúde, de discutir o uso monopolizado do porto do Caniçal, das reduções de impostos e de continuar a estudar um financiamento viável para que o ferry viaje entre o Funchal e o continente durante todo o ano e não só nos três meses de verão.

À hora em que fala com o SAPO24, o futuro parece estar delineado e avista-se uma coligação de centro direita com o PSD. Até porque à hora desta entrevista, Miguel Albuquerque ganhava 1-0 a Cafôfo na disputa pelo parceiro de coligação... pelo menos em chamadas atendidas.

Conversa com Rui Barreto, o "bom rebelde", "pouco mansinho" que definirá o futuro político da Madeira.

créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Rui Barreto: Vou dizer uma coisa, esta foi uma noite imprópria para cardíacos.

Então?

Nunca assisti a uma coisa destas. É surreal.Tinha a noção de que esta era uma campanha fortemente bipolarizada, mas não sabia que isso se ia traduzir em tanto ou de forma tão expressiva.

Tinha a noção de que esta era uma campanha fortemente bipolarizada, mas não sabia que isso se ia traduzir em tanto ou de forma tão expressiva

Não estava à espera que PS e PSD ‘limpassem’ os outros partidos do parlamento regional?

Houve uma dizimação da oposição, uma concentração de votos de 75% em dois partidos. O CDS resistiu foi terceiro e tem três deputados que são valiosíssimos para a formação de um governo de maioria absoluta.

É curioso, o CDS perde, passa de sete deputados para três, mas ganha.

Perde, mas ganha é uma boa expressão. O PSD ganhou e respeito a indicação maioritária do povo. O CDS é um partido de centro-direita, por isso representa esse eleitorado, obriga a que o PSD, se quiser ter um governo estável e duradouro, negoceie com o CDS.

Ou seja, dá primazia ao PSD.

Dou porque sempre disse que respeitaria a vontade maioritária do povo. O povo deu uma indicação, quem ganhou as eleições foi o PSD.

O Rui Barreto já foi deputado na Assembleia da República. Esteve lá de quando a quando?

Estive durante três anos, de outubro de 2012 a outubro de 2015.

Apanhou a PaF. Ou melhor, o governo que viria a originar a PaF.

Estive no governo de coligação PSD/CDS e votei duas vezes contra o Orçamento de Estado, para 2013 e 2014 e ainda fiz outra que foi vetar, na generalidade, a Lei de Finanças Regionais 2013, mas pronto. A primeira votação contra no Orçamento de Estado valeu-me um processo disciplinar, aberto pelo partido, e cinco meses de suspensão.

Sou um bom rebelde

É um bom rebelde do partido?

Sou um bom rebelde, sou de facto, mas fi-lo em nome dos eleitores, dos madeirenses, do povo que me elegeu. Não quis defraudar as expectativas daqueles que me elegeram e tenho isso muito presente em tudo o que faço. Não gosto de promessas vãs, gosto de dizer aquilo ao que vou e aquilo que acho que é possível concretizar, tenho muito brio naquilo que faço. Portanto, face a um Orçamento que era claramente punitivo e penalizador para os madeirenses, decidi votar contra e fi-lo em nome daqueles que me elegeram.

É mais fácil dialogar com o PSD do que dialogar com o Partido Socialista, então se formos à esquerda é muito mais difícil

Mas esteve já numa coligação idêntica a esta que pode ocorrer. Dá-lhe um bom pressentimento sobre o que pode acontecer aqui ou não é comparável?

Os partidos têm espaços políticos e ideológicos que representam e quando vão a votos têm de dizer aquilo a que vão e aquilo que pensam. O CDS é um partido de centro-direita, não é de 2015, nem de 2011. É desde 1974. É mais fácil dialogar com o PSD do que dialogar com o Partido Socialista, então se formos à esquerda é muito mais difícil. Temos uma identidade própria, ideias próprias, um programa próprio e acho que não devo defraudar aqueles que me elegeram, no caso particular em relação àquilo que se desenhou esta noite em que o PSD vence, mas para formar governo precisa necessariamente do CDS. Precisa mesmo, se não não governa na Madeira. O CDS tem uma palavra a dizer em nome do eleitorado que votou, tivemos mais de oito mil votos, e do programa que sufraguei, tentar influenciar o mais possível para que algumas das nossas ideias estejam no programa.

O PS foi claro, preferia um entendimento à esquerda e à extrema esquerda do que o CDS

Defraudava o eleitorado do CDS se se coligasse com o PS?

Acho que defraudava. O PS aqui na Madeira, pelo dr. Paulo Cafôfo, eleito presidente da Câmara em 2013, escolheu os seus parceiros. Foi o BE, o PTP, o Nós, Cidadãos, o PDR... uma coligação alargada. Escolheu os seus parceiros, espatifou duas coligações, mas ainda há uma semana destas eleições, admitiu que queria uma Geringonça na Madeira. A líder nacional do BE, quando veio à Madeira, disse que queria uma Geringonça. O PS foi claro, preferia um entendimento à esquerda e à extrema esquerda do que o CDS. E acho que de facto o povo da Madeira deu uma indicação clara de um governo de centro direita. Como é que era possível apoiar um governo em que o BE defende, por exemplo, que os contratos de associação com o sistema particular e cooperativo, ou seja, nas ajudas do Estado ao ensino particular termine?

Mas não estaria porque o BE não elegeu ninguém.

Está bem, mas acho que o CDS fez o seu caminho também para dizimar a extrema esquerda. O PS fez as suas escolhas e está mais próximo daquilo que aconteceu no continente e nós não concordamos com isso.

Já recebeu alguma chamada?

Ouvi as declarações e recebi um contacto do presidente do PSD. Ele disse que os entendimentos seriam sempre à direita, mas não vou vender isto a patacas.

O CDS é essencial para a formação de um governo da Madeira, o povo também decidiu isso

Qual é o preço?

É o nosso programa e nós lutaremos por ele. Não faço arranjinhos de cadeiras, vou fazer uma negociação de base programática. Gostava que o povo me tivesse dado mais e devo confessar que este resultado ficou aquém daquilo que queria que o partido tivesse, mas o CDS é absolutamente determinante. O CDS é essencial para a formação de um governo da Madeira, o povo também decidiu isso. E eu devo usar esse poder e o respeito daqueles que votaram em nós para que uma parte daquilo que penso esteja vertido num programa de governo que, depois, será um programa de governo de dois partidos e não de um só. Eu e o meu partido temos de nos sentir confortáveis com o programa de governo que não será o programa do PSD.

Isso seria também válido numa coligação com os outros todos.

Volto a insistir: o povo deu uma indicação clara, disse que o PSD é que venceu as eleições. O PSD tem essa vontade e é com o PSD... eu não estou a dizer que vai haver governo! Estou a dizer que é com eles que devo iniciar negociações.

Entretanto estive aqui em muitas entrevistas... tenho duas chamadas de Paulo Cafôfo

Não recebeu nenhuma chamada de Paulo Cafôfo depois de ele ter lançado o repto?

Não recebi nenhuma chamada de Paulo Cafôfo a menos que não tenha reparado. (olha para o telemóvel)  Entretanto estive aqui em muitas entrevistas... tenho duas chamadas de Paulo Cafôfo.

Não atendidas?

Não atendidas porque está a ser uma noite... estava aqui a falar convosco. Tenho aqui as tentativas de contacto, ouvi as declarações dele, mas não foi possível estabelecer contacto.

E ele disse que estava disponível para fazer coligação com todos os partidos para além do PSD.

Sim, mas o ponto é, e volto a repetir: respeito a indicação maioritária do povo madeirense.

Mas mudar não seria, se calhar, fazer uma frente contra o PSD?

Acho que isso estaria a violar, entre aspas, aquela que foi a indicação maioritária do povo. Sempre disse isso e não vou prescindir disso.

créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Uma coisa que disse ao longo da noite era que o seu programa eleitoral era o guião para a negociação. Do que é que não abdica?

A área da saúde não está bem. Os indicadores de desempenho e resultados do PSD entre 2015 e 2019, aquilo que o Miguel Albuquerque recebeu e deu até ao final da legislatura é muito pior, nas listas de espera para cirurgias, tratamentos e consultas externas. O sistema está capturado por interesses, não produz os resultados face à capacidade que tem para responder, há uma promiscuidade entre o sistema público e o privado. É preciso coragem para gerir melhor e para que de facto não exista uma saúde para pobres e para ricos. Aqueles que têm dinheiro vão ao sistema privado, mas aqueles que não têm, têm de recorrer a um sistema que tem de responder e não responde. As listas de espera aumentaram de 15 mil, para 21 mil pessoas, quase. Isto é um dado gritante, não pode ser.

Aqueles que têm dinheiro vão ao sistema privado, mas aqueles que não têm, têm de recorrer a um sistema que tem de responder e não responde

E na economia?

Na economia consideramos que é preciso rever o modelo de operação portuária que é monopolista, que tem um operador há mais de 20 anos em que não paga absolutamente nada pelo uso da infraestrutura. Nós achamos que tem de pagar, deve pagar e que esse valor deve-se refletir no tarifário da APRAM e assim reduzir os custos das mercadorias para todos os madeirenses. Temos também de investir na requalificação dos recursos humanos, repare, estamos na era da robótica, da inteligência artificial, do digital, mas nós temos uma população ativa em que quase dois terços dela tem apenas até ao nono ano de escolaridade. Nós não podemos ter gente preparada para os desafios do futuro com índices de escolaridade tão baixos.

Na economia consideramos que é preciso rever o modelo de operação portuária que é monopolista, que tem um operador há mais de 20 anos em que não paga absolutamente nada pelo uso da infraestrutura

Quando fala do porto, o PSD tinha uma proposta...

… O PSD tem em vigor um sistema de licenciamento, e eu não estou contra o sistema de licenciamento, mas ele utiliza o porto e não paga pelo uso da infraestrutura. É monopolista e defendo um sistema de concorrência. É possível, reservando um espaço para outro operador, poder operar no porto de mercadorias do Caniçal e quem utiliza a infraestrutura pagar pelo uso do porto. O governo lançou o concurso internacional, o operador contestou e foi para tribunal, mas ficou-se por aí, em banho maria. Não teve coragem de rever o sistema.

Foi uma dos grandes temas de campanha, a ligação do PSD aos grandes grupos económicos da ilha.

Pois, mas eu sou independente dos grandes grupos económicos.

Acha que vai ser um ponto forte na discussão com o Partido Social Democrata?

Sim, vai ser um ponto forte com o PSD.

O PSD teve hoje uma maioria relativa e se quiser ter maioria absoluta vai ter que ceder uma parte ao CDS

Aliás, esse foi um dos pontos que fez rolar algumas cabeças neste último governo.

Eu vou negociar naquilo que é o maior interesse para as pessoas da Madeira e do Porto Santo. O PSD teve hoje uma maioria relativa e se quiser ter maioria absoluta vai ter que ceder uma parte ao CDS.

Alguma pasta em concreto?

Não, primeiro negociamos a base programática, depois desenhamos a orgânica do governo e depois avançamos.

o PS é um partido que, enfim, tem enganado as pessoas porque diz que defende o ferry, mas depois o governo nunca apoiou a ligação de ferry

Voltando aqui ao guião. O ferry está no seu programa e era uma das grandes bandeiras do Partido Socialista.

Era uma medida do PS, mas também é uma medida nossa. Eu tenho uma nuance, o PS é um partido que, enfim, tem enganado as pessoas porque diz que defende o ferry, mas depois o governo nunca apoiou a ligação de ferry. Temos uma ministra do Mar, que é a Ana Paula Vitorino, que disse que o princípio da continuidade territorial estava garantido por transporte aéreo. E agora vem prometer o ferry pago pela República. Isto é enganar as pessoas, é atirar areia para os votos. Eu defendo uma coisa mais moderada, que o princípio da continuidade territorial deve ser para o transporte aéreo e marítimo, mas devemos encontrar outras formas de financiamento não exclusivamente à conta do Orçamento Regional, que são três milhões para três meses, mas uma coisa tripartida: Governo Regional, Orçamento da República e União Europeia.

Acha que o ferry vai ser assim tão utilizado, um meio com uma taxa de ocupação de 60% durante o verão?

Um algarvio e um transmontano podem ir até Lisboa de carro particular, comboio, de avião. O madeirense só pode ir para Lisboa de avião. Ainda por cima, a Madeira e os Açores são as únicas ilhas insulares na Europa que não têm ligações ferry ao continente europeu.

Então acha que iriam usar.

Acho que se for todo o ano, entre mercadorias e passageiros é possível.

A redução fiscal que propõe é grande. São números ao alcance de um entendimento do PSD quando põe em cima da mesa uma redução de 30% das taxas de IRS, uma descida do IRC para 17% e uma diminuição do IVA?

A economia está a crescer há 70 meses consecutivos. É um dado que o PSD diz e eu confirmo, mas também temos uma taxa de risco de pobreza de 27,4%, que é a segunda maior de Portugal. Somos os portugueses que pagam mais impostos em Portugal. Os açorianos têm melhores condições fiscais do que nós. Os bons resultados da economia têm que ser para combater as desigualdades e falhas nas distribuição da riqueza.

Somos os portugueses que pagam mais impostos em Portugal

Com estas medidas, os madeirenses vão ser os portugueses a pagar menos impostos de todos.

Isto tem de ser feito com gradualismo. Os bons resultados da economia parte deles tem de ser para devolver rendimento e parte deles para investimento. Isto tem de ser feito com razoabilidade.

Ou seja, estes números são metas.

São metas para a legislatura. Mas deixe-me dar um exemplo. O IVA é o maior gerador de receita da região. É um IVA de capitação nacional, ou seja, todo o IVA que é produzido na Madeira, Açores e continente entra no mesmo bolo. Depois ao abrigo da Lei de Finanças Regionais é redistribuído para a Madeira em 2,35%. Se eu reduzir as taxas de IVA, passar a mínima de 5% para 4%, de 12% para 9% e 22% para 18%, a redução nominal destas taxas não é o mesmo da arrecadação. Se eu reduzir 10% nas taxas de IVA, não se reflete 10% na arrecadação de receita. Como entra no bolo nacional e é distribuído a 2,35%, quanto muito teria uma redução de 2,35%. Mas, há um efeito na economia: quando se reduzem impostos há mais rendimento e mais investimento, a base tributável aumenta. Portanto esse efeito vem diminuir. Tem de ser feito com progressividade e com segurança, mas é possível fazê-lo.

vão ser negociações muito difíceis porque eu não sou mansinho

Espera fechar governo esta noite?

Não, vão ser negociações muito difíceis porque eu não sou mansinho.

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