No espaço da Grande Entrevista da RTP3, Augusto Santos Silva começou por ser questionado quanto ao processo de vacinação e aos seus atrasos na União Europeia, quer pela incapacidade das farmacêuticas de cumprir os prazos estipulados, quer pela recente suspensão da administração das vacinas da AstraZeneca.

Admitindo que este é um "processo muito importante que está a decorrer com alguns percalços" que conta "superar nas próximas semanas", o ministro dos Negócios Estrangeiros recusa ver a vacinação na UE como um fracasso. "Temos um objetivo, que é ter 70% da população adulta na UE vacinada até ao fim do verão e não revimos esse objetivo, continua a ser atingível", disse.

O processo, recorda, iniciou-se com uma compra conjunta, tendo a Comissão Europeia adquirido "centenas de milhões de doses às empresas e laboratórios que tinham condições para as fabricar e essa compra antecipada permitiu que essas empresas desenvolvessem e produzissem uma vacina naquilo que foi a mais rápida invenção e produção de uma vacina na história da humanidade". Para além disso, foi decidido que dessa compra "seriam afetas quantidades a cada um dos estados membros segundo um só critério: não a sua riqueza, não o seu poder de compra, mas sim a sua população".

No entanto, se a Pfizer (que num primeiro momento teve um atraso, já equilibrado) e a Moderna têm cumprido com os prazos, o ministro dos Negócios Estrangeiros apontou baterias à AstraZeneca.

"A AstraZeneca tem um problema grave de capacidade de produção que tem resultado no facto de estar a atrasar as suas entregas e a dizer que vai fazê-las substancialmente inferiores ao que está acordado. Nós estamos a exigir que o contrato seja cumprido e a procurar que a capacidade de produção que existe na UE seja toda ela mobilizada para que este atraso seja superado", garantiu Santos Silva.

Em causa está o facto do laboratório em causa ter-se comprometido a entregar 90 milhões de doses no 1º trimestre do ano e 180 milhões no 2º, mais tarde revendo essas entregas para 30 milhões e 90 milhões, respetivamente.

A este respeito, Santos Silva diz que não só a Comissão Europeia está a exigir que a AstraZeneca "cumpra o contrato que assinou", como estão a ser tomadas "algumas medidas, como a presidente da Comissão Europeia explicou", nomeadamente ameaçando com "o mecanismo de controlo das exportações de vacinas da UE para fora do seu espaço".

"Não é admissível que as duas fábricas da AstraZeneca instaladas no Reino Unido não tenham nenhum problema de produção e a empresa esteja a usá-las para vender apenas ao Reino Unido e não para compensar a quebra de produção que tem na fábrica da Bélgica", atirou.

Ir mais longe do que limitar as exportações, como levantar as patentes para que outras empresas produzam vacinas, é uma opção que Santos Silva não descarta, mas que é extrema, até porque "a propriedade intelectual destina-se a proteger aqueles que investiram muito e com um risco grande na produção de produtos como vacinas". No entanto, "se as coisas ficarem bloqueadas durante muito tempo, podemos ter de recorrer a todos os instrumentos e à luz das regras da Organização Mundial do Comércio, podemos recorrer a esse", avisou.

No entanto, o ministro recordou também que "o problema neste momento não é das licenças para produzir, é capacidade de produção". "As fábricas que fazem as vacinas e a cadeia que as distribui não estão a responder à dimensão da procura", sublinhou, lembrando que "ao nível mundial é ainda mais dramático".

Quanto à suspensão que ainda vigora quanto à administração doses da AstraZeneca como medida de precaução baseada em relatos de casos de formação coágulos sanguíneos em pessoas que receberam a vacina, Santos Silva rejeitou que tal seja uma represália contra a empresa, falando em "contrasenso".

"Então estamos a pressionar a AstraZeneca para cumprir o contrato e aumentar o fornecimento e ao mesmo tempo íamos suspender a administração das vacinas? Só se fôssemos masoquistas", defendeu, dizendo que foi uma questão de "política pública" cujo único fundamento foi "perícia técnica" enquanto se aguarda nova decisão da Agência Europeia do Medicamento (EMA), que deverá ser revelada amanhã.

De resto, Santos Silva até referiu que já foi vacinado com a dose da AstraZeneca e foi perentório quanto aos possíveis sintomas: "não sinto nada".

Santos Silva descarta culpa das Comissão Europeia nos atrasos

Confrontado com as perguntas quanto às possíveis responsabilidades da Comissão Europeia em ter contribuído para os atrasos, quer por ter celebrado contratos aparentemente pouco vantajosos na margem negocial, quer pelas críticas de que terá poupado na hora de comprar vacinas face a concorrentes como o Reino Unido, Israel ou os EUA, Santos Silva defendeu a atuação do executivo europeu, lembrando que o preço foi menor porque o volume de compra foi grande.

"União Europeia é credora dos nossos agradecimentos por esta decisão que corporiza. Pense num país como Portugal. Estaríamos muito pior se estivessemos num mercado a disputar com a França, com a Alemanha, com o Reino Unido. Temos todo o interesse em estar nesta estratégia de vacinação", disse o ministro.

No seu entender, a estratégia de compra da Comissão Europeia seria ainda mais criticada se "a UE estivesse a pagar mais do que poderia" e frisou que "as empresas não cumprem contratos em nome de eventuais privilégios que vão dar", sendo que fazê-lo cria "opções ilegítimas à luz do contrato".

Para além disso, Santos Silva justificou também alguma lentidão dados os padrões de segurança da União Europeia, que "são bastantes exigentes". "Nós só aplicamos as vacinas que são previamente aprovadas pela Agência Europeia do Medicamento, que é uma autoridade técnica que não está sujeita a influência política", sendo este um “processo blindado do ponto de vista técnico”.

Todavia, perante um cenário em que países como a Sérvia ou Marrocos têm demonstrado mais rapidez na vacinação, Santos Silva admitiu que haja "aqui e ali uma sensação de desapontamento", mas disse ser necessário "pôr isto na devida escala". "Estamos a falar de um processo absolutamente gigantesco de vacinação”, referiu, afirmando também que “450 milhões de vacinas não se fazem nem se aplicam num dia" e que "temos de ir com a prudência necessária para a salvaguarda, é uma questão de saúde pública".

Perante a vontade de alguns estados-membro de celebrarem acordos bilaterais para a compra de vacinas, como é o caso da Hungria com a compra da vacina Sputnik V, criada e produzida na Rússia, Santos Silva lamentou que tal aconteça, não só por uma questão de "solidariedade", mas também de "segurança", já que esse fármaco — e o produzido na China — ainda não foram devidamente verificados pela EMA.

"Nunca nos devemos esquecer que pertencemos ao mesmo espaço com quatro grandes liberdades, uma delas é a de circulação de pessoas. Por isso, as medidas que eu tomo têm de ser coordenadas com os outros", disse.

Portugal tentará implementar Certificado Verde Digital até ao verão. Iniciativa “não serve para discriminar pessoas”

A criação de um livre-trânsito digital para comprovar a vacinação, testagem ou recuperação da covid-19 anunciado hoje pela Comissão Europeia foi outro dos temas em discussão durante a entrevista, sendo que Augusto Santos Silva garantiu que Portugal apoia a iniciativa.

"Aliás, temos uma responsabilidade como presidência do Conselho Europeu, que é tentar que este regulamento seja aprovado pelos Governos e pelo Parlamento Europeu a tempo de ser eficaz já no próximo verão, o que significa comprimir imenso o processo legislativo na União Europeia, que é muito lenta”, frisou o ministro dos Negócios Estrangeiros.

A medida assume um esforço do executivo europeu de criar uma forma de permitir o livre-trânsito entre os estados-membros, mas tem sido alvo de algumas críticas, como o facto de se basear numa pretensa desigualdade a favor de quem já foi vacinado.

Santos Silva, todavia, rejeitou esta visão, lembrando que não abrange apenas quem foi vacinado, mas também quem testar negativo. Por isso mesmo, a vacinação "não é uma condição sine qua non" para entrar noutro país e “não serve para discriminar pessoas”.

Quanto às dúvidas quanto à proteção de dados e ao armazenamento dos mesmos, o ministro dos Negócios Estrangeiros disse que essa é uma autoridade competente de cada Estado nacional. "A pessoa que controla o meu certificado ao entrar num país não sabe mais nada senão o meu nome, talvez o meu número do SNS e a referência de que testei negativo ou que fui vacinado", defendeu.

O ministro, todavia, quis sublinhar que esta tentativa de permitir que até ao verão seja possível haver alguma forma relativamente livre de circulação está dependente de como as pessoas respeitam as regras de combate à pandemia. A este respeito, Santos Silva disse ter saído à rua para dar uma volta "como o Governo permite" e lamentou ter visto "muita gente sem máscara". “Se queremos salvar o verão, temos de ser estritos agora”, alertou.