Se Nobel da Literatura houvesse em 2018, certamente todos receberíamos a notícia num instante, através de uma notificação que vibraria em qualquer smartphone guardado no bolso. Muitos iam ignorar e atirar a notificação para o lado — basta o título para saber o que aconteceu — e outros iam querer saber pormenores, ver uma fotografia do contemplado e, quem sabe, partilhar a boa nova nas redes sociais.

Há 20 anos, contudo, não era assim. As push notifications não existiam e o jornalismo online tinha começado a dar os primeiros passos pouco antes. Mas não foi por isso que José Saramago deixou de ser notícia. No geral, os principais jornais portugueses apresentaram a atribuição do Nobel na capa — uns em maior destaque, outros de forma mais discreta - no dia seguinte e alguns prolongaram a celebração por algum tempo. A rádio, meio mais instantâneo, viveu mais entusiasticamente o momento, porque tinha a oportunidade de noticiar na hora a atribuição do prémio.

Olhando para as capas de alguns dos jornais portugueses, percebe-se que o Nobel teve destaque de maneira diferente consoante a publicação. A capa do semanário Expresso, de 10 de outubro, apresenta a chamada para a primeira entrevista a José Saramago depois do Nobel — mas em parceria com o jornal espanhol El País — num espaço lateral. Do mesmo modo, também o Independente de 9 de outubro apresenta na capa um pequeno destaque horizontal abaixo do nome do jornal, com a fotografia do escritor, escrevendo ‘Finalmente!’.

Por sua vez, na mesma data, o Correio da Manhã, o Público e o Diário de Notícias fizeram do tema o principal destaque das suas capas. Também a celebrar o sucedido, o Jornal de Letras criou uma edição extra, lançada a 14 de outubro, sobre José Saramago.

No interior das publicações os tipos de artigos são muitos. Há reportagens, perfis, declarações de várias personalidades quanto ao acontecimento. São recuperadas histórias e polémicas, como o caso da mudança de nome da Escola Secundária de Mafra. Entre outubro e dezembro — mês em que aconteceu o banquete do Nobel —, Saramago esteve nas bocas do país. E os registos ficam e perduram como parte da história nacional.

E quem já fazia  jornalismo em 1998, o que recorda? Para sabermos que memórias ficam, ouvimos alguns dos jornalistas do SAPO24. 

Francisco Sena Santos estava, à data, aos microfones da Antena 1, e recorda o sucedido. “A imprensa portuguesa estava distraída no dia 8 [de outubro de 1998]. Havia quem estivesse atento, mas muito pouco. A rádio estava mais excitada do que os jornais em papel e as televisões”, começa por referir. Mas a distração durou pouco. “A partir daí foram especiais nonstop: ir com o Saramago à Azinhaga, tudo e mais alguma coisa com o Saramago. E até à entrega do Nobel [10 de dezembro de 1998]… Estocolmo foi uma operação gigantesca para as televisões, jornais, rádios”, explica.

O Nobel foi, por isso, algo que colocou todos em alerta. "Escreveu-se e disse-se muita coisa a propósito do Nobel da Literatura, na imprensa e fora dela", começa por explicar Isabel Tavares, que em 1998 estava no Meios & Publicidade. "As memórias que guardo é que se tratou assim de uma espécie de entrada de Portugal no mapa das grandes competições (o que não é verdade, porque já tínhamos sido grandes em áreas como a Medicina, por exemplo, mas há tanto tempo que ninguém se lembrava), diz.

Rute Sousa Vasco escrevia para a revista EXAME e destaca, sim, a ação da rádio. “Lembro-me menos bem do que gostaria [da forma como a imprensa noticiou o Nobel], e curiosamente lembro-me mais de rádio do que tudo o resto. Mas foi muito falado, [viu-se] aquele orgulho da pátria no filho proscrito. Recorde-se que, anos antes [em 1992], o secretário de Estado da Cultura de Cavaco Silva, o Sousa Lara, tinha proposto a eliminação do Evangelho segundo Jesus Cristo para Prémio Literário Europeu”.

Este foi também, para Miguel Morgado, que escrevia no Jornal de Negócios, um dos fatores que veio trazer destaque para o escritor. “O Nobel [atribuído a Saramago] apanhou de surpresa toda a gente e foi bastante noticiado. E mais uma vez o ângulo foi marcadamente político com o episódio que o antecedeu”, diz. Contudo, o jornalista refere não acreditar “ter havido um lobby do governo português, porque era e é comum a atribuição de prémios Nobel a autores que dizem muito a poucos e pouco a muitos”.

As questões políticas acabaram por afastar Saramago do país — e o país de Saramago. Apesar disso, o Nobel foi a engrenagem para uma reviravolta. “Portugal apaixonou-se pelo Saramago no dia do Nobel, o orgulho do Nobel foi tal. O Saramago era detestado por muita gente. Ser comunista em Portugal era uma etiqueta dura e Saramago assumiu-se sempre comunista. Não era menosprezado, mas como o Saramago também nunca parecia afetivo era sempre olhado de lado. Não era amado, é indiscutível. Mas era amadíssimo pelos fiéis. E aqui usar a expressão ‘os fiéis’ faz mesmo sentido, porque há ali uma quase religiosidade em torno do Saramago”, começa por explicar Francisco Sena Santos. “A chegada do Saramago a Lisboa, vindo de Estocolmo, e a receção na Câmara Municipal é um mar de gente, é o país rendido ao Saramago. Naquele 98, depois do grande orgulho da Expo, o Saramago foi herói nacional”.

Por isso, a relação de Portugal com José Saramago foi mudando graças ao prémio. Mas não na totalidade, na perspetiva de Rute Sousa Vasco. “Não que ele tenha passado de proscrito de muitos a filho pródigo, mas os livros passaram a vender-se de outra forma. Gente que não lia passou a ler e os que continuaram a não ler passaram a saber dizer que era por causa de não terem paciência para aquela coisa dele com a pontuação. Continuou a ser um nome da esquerda — mesmo que não de toda a esquerda — mas ganhou aquele manto diáfano que um Nobel traz e que tornou mais difícil aos críticos dizerem tudo o que diziam antes (mesmo pensando)”, remata.


Veja aqui o trabalho especial que o SAPO24 preparou para assinalar os 20 anos do Nobel