Todos os anos, em média, as autoridades portuguesas recebem cerca de 4000 participações de pessoas desaparecidas. Na sua maior parte, elas resolvem-se por si só nas horas, ou dias, seguintes. Idosos com problemas de memória que são encontrados na vizinhança, adultos que cederam à tentação de dar uma «facada» no matrimónio, adolescentes que caem em si e regressam a casa, crianças que se perdem e são devolvidas aos pais.

Há alguns anos, responsáveis da Polícia Judiciária estimavam que apenas cerca de um por cento das participações justificava investigação criminal, mas a crescente sensibilidade do público ao tema e a noção cada vez mais aguda da urgência na intervenção por parte das autoridades têm mudado essa realidade: em 2019, por exemplo, foram feitas 1911 participações ao Ministério Público (MP), por suspeitas de que esteja em causa algum tipo de crime. Ou seja, quase metade dos desaparecimentos mereceram algum tipo de diligência que obriga o MP a instaurar um procedimento, para estar atento ao evoluir do caso e poder intervir se e quando necessário – a investigação, nessa fase inicial, compete às entidades policiais. Quando as suspeitas de crime se avolumam, então aí abre-se um inquérito.

Uma percentagem significativa dos alertas não está ligada a qualquer tipo de acção criminosa e nos restantes a investigação policial torna possível obter respostas na maior parte das situações. Homicídios, suicídios, raptos – com boas ou más notícias no fim, muitos casos são encerrados. Há também histórias de quem desaparece voluntariamente e não quer ser encontrado. Nestas ocorrências, e tratando-se de adultos, a sua vontade tem de ser respeitada: quando são encontrados, os agentes da autoridade informam os «desaparecidos» que as famílias os procuram, mas não podem divulgar o seu paradeiro sem autorização do próprio. Muitas vezes, as pessoas nessa situação concordam apenas que os familiares sejam notificados de que estão bem.

É um universo complexo, de difícil caracterização e em constante mutação. As participações podem ser feitas junto de várias forças policiais (normalmente a Polícia de Segurança Pública e a Guarda Nacional Republicana), muitos casos são encerrados num lapso temporal curto, outros transformam-se em investigações de homicídio ou rapto, noutros o cenário de suicídio acaba por se confirmar.

Cada história é diferente – há registo de pessoas que estão dadas como desaparecidas apesar de existir uma confissão não oficial do seu homicida; ou então condenações por homicídio quando o cadáver do desaparecido nunca foi encontrado… E também há cadáveres não reclamados, que esperam décadas por uma identificação. Tudo isto baralha as estatísticas e complica a tarefa de quem quer estudar o tema. Mas neste livro o nosso foco não é a caracterização jurídico-legal do fenómeno. O que procurámos foi olhar para os casos que sobram deste puzzle, as histórias dos que desaparecem para sempre. Sem rasto. Deixando para trás família, amigos, pessoas que sofrem a mais cruel das dúvidas, incapazes de fazer o seu luto, agarradas a esperanças cruéis, vulneráveis à voracidade das redes sociais e perseguidas por oportunistas e pela curiosidade mórbida das multidões e dos órgãos de comunicação social mais sensacionalistas.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Os casos de crianças ou jovens são os que mexem mais profundamente com a nossa consciência colectiva, envoltos no mistério e
horror puro e simples do seu desaparecimento e pelo drama vivido pelos familiares, muitos dos quais passam a dedicar todas as suas energias a uma causa única: descobrir o que aconteceu aos seus filhos. Nada é mais inquietante e destruidor do que uma história sem ponto final. Maddie McCann ou Rui Pedro são nomes que a opinião pública fixou, mas há mais, muitos mais, para alimentar o nosso desassossego.

Em Fevereiro de 2006, Rita Slof, então com 18 anos, entrou para um autocarro em Matosinhos, para se juntar às colegas numa visita de estudo a Serralves. Nunca mais foi vista. Cláudia Silva e Sousa tinha 7 anos e desapareceu em 1994 no trajecto de 400 metros entre a escola e a sua casa, em Lamela, freguesia de Oleiros. Sofia Oliveira tinha apenas 2 anos em 2004, quando desapareceu em Câmara de Lobos, levada pelo pai, que cumpriu pena de prisão, mas nunca divulgou o paradeiro da filha.

Voltemos ao número inicial: 4000 desaparecimentos significam, em média, 11 por dia, quase um a cada duas horas. É um mar de
angústias e sofrimento que nunca cessa de se agitar. Em alguns casos, as histórias têm pontos de contacto e levantam questões mais complexas – é o que se passa na Madeira, por exemplo, onde, nos últimos anos, pelo menos seis pessoas, na sua maioria desportistas em excelente forma física, desapareceram do mapa nos trilhos montanhosos da ilha.

Tal como acontece com as vidas de quem desaparece, também este livro vai deixar muitos pontos de interrogação. Mário Sousinha saiu de casa em 2019 e nunca mais deu sinais de vida. Suicidou-se, foi vítima de homicídio, sofreu um acidente, desapareceu por vontade própria? E o que aconteceu a Rosiney Oliveira, imigrante brasileira em Portugal, que foi despedida do restaurante em que trabalhava, em Condeixa-a-Nova, em 2018, e nunca mais se soube do seu paradeiro? O popular cantor Zé do Pipo suicidou-se, como tudo parece indicar, ou haverá outra explicação para o seu desaparecimento? O que terá levado a irlandesa Jean Tighe a sair para a rua sem o seu telemóvel, quando tinha acabado de tentar contactar a família?

Estes nomes, e tantos outros, têm muito para nos dizer. É isso mesmo que tentámos fazer, ouvindo as autoridades, as famílias, as pessoas próximas. Muitas vezes socorrendo-nos dos registos de notícias da época – em muitos casos a cobertura noticiosa foi reduzida ou mesmo praticamente inexistente. Há uma pessoa real por trás de cada ficha na base de dados dos desaparecidos em Portugal.

E, na sua retaguarda, existem tantas outras que enfrentam diariamente o pesadelo de fazerem parte de tragédias a que não conseguem pôr um ponto final.

Na verdade, nem querem: quanto mais se falar do caso, maiores serão as probabilidades de surgir alguém que possa contribuir para ajudar a esclarecer o mistério. Foi, certamente, essa convicção que levou muitos familiares, amigos e pessoas ligadas aos processos a conversar connosco durante a pesquisa para este livro, mesmo que isso possa ter desenterrado memórias cruéis.

As pessoas de que vamos falar nas páginas que se seguem podem estar desaparecidas, mas nunca serão esquecidas. E contar histórias é a melhor receita contra o esquecimento.

Rui Pedro

Uma narrativa de horrores

É dos casos mais intrigantes e também um dos que mais compromete a Justiça portuguesa. A 4 de Março de 1998 desapareceu
na vila de Lousada, distrito do Porto, o então menino Rui Pedro Teixeira Mendonça. Tinha apenas 11 anos. Hoje, caso esteja vivo, e depois de seguidas mais de mil pistas sobre o seu eventual paradeiro, será uma pessoa marcada por eventuais sevícias praticadas por um grupo de raptores alegadamente integrantes de uma rede internacional de pedofilia. A esperança da mãe em voltar a encontrá-lo tem enchido páginas de jornais em todo o mundo. Uma tragédia que se desenrola com inimagináveis rastos de tristeza e angústia há 25 anos.

O desaparecimento de Rui Pedro é uma pedra no sapato da Polícia Judiciária do Porto. Foram os seus agentes que trataram das primeiras diligências. É sobre eles que ainda hoje incidem os olhares recriminadores dos familiares e amigos do jovem e, até, de alguns colegas. «É incompreensível como se deixaram tantas pontas soltas.

Livro: "Sem rasto, Desaparecidos em Portugal"

Autores: Luís Francisco e José Bento Amaro

Editora: Oficina do Livro

Data de Lançamento: 24 de outubro de 2023

Preço: € 15,90

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Não se compreende, por exemplo, como tendo um suspeito a dizer que o melhor seria encerrar as fronteiras, porque podia ser que ainda fossem a tempo, os responsáveis pela investigação tenham descurado essa possibilidade ou até essa informação», confidencia fonte policial que, para não «ferir susceptibilidades e arranjar mais problemas», pede para não ser identificada.

O trauma da investigação supostamente mal conduzida é como uma doença que parece minar a auto-estima de outros investigadores da Judiciária que ainda relembram todas as incidências. «Parece que na zona do desaparecimento até houve um grande evento desportivo no dia imediato. E o que se fez? Pelos vistos nada. Deixaram correr o marfim. Não interrogaram ou avaliaram nenhuma dessas pessoas. Fico quase com a ideia de que tudo, pelo menos nos primeiros tempos, foi tratado de modo muito pouco profissional, com muita leviandade. Talvez na GNR e na própria Polícia Judiciária estivessem convencidos de que tudo se iria resolver. Que o miúdo apenas tivesse ido dar uma volta e que depois fosse a correr para casa», diz outro investigador.

Catalogado em termos policiais como rapto, o denominado «Caso Rui Pedro» fez com que o advogado da família, o não menos mediático Ricardo Sá Fernandes, tenha iniciado um processo contra o Estado português, acusando-o, na pessoa da Polícia Judiciária, de falhas «muito graves durante as averiguações». O causídico apontou o dedo aos polícias, responsabilizando-os por não terem desencadeado uma série de averiguações que, em seu entender, seriam legítimas e normais. No entanto, por parte da polícia, tudo foi rebatido: os indícios sugeridos não se confirmavam ou não tinham consistência.

Foi assim que, por exemplo, nunca foi seguida de imediato a pista da saída do jovem para o estrangeiro e a sugestão, dada pelo implicado comprovado, de fechar as fronteiras.

No dia 4 de Março de 1998 Rui Pedro saiu de casa de bicicleta, como tantas vezes o fazia. Seriam duas da tarde e, quando pediu à
mãe para sair, a ideia inicial seria a de se encontrar com um amigo com o dobro da idade, Afonso Dias. Não terá sido autorizado a
encontrar-se com o suposto amigo, apenas lhe sendo permitido ir brincar um pouco antes de rumar à escola.

O próprio momento do desaparecimento e as horas que o antecederam continuam com muitos nós por desatar, conforme referem os conhecedores do processo. O que se depreende é que Rui Pedro, mesmo contra as ordens da mãe, Filomena Teixeira, se tenha encontrado com Afonso Dias. «Era um indivíduo que não tinha grande credibilidade nem valor moral. Afinal, que tipo de homem é capaz de agarrar numa criança de 11 anos e levá-la a uma prostituta?», interroga uma das fontes policiais.

O rapto começa a ganhar contornos a partir das cinco da tarde. É por essa altura que os pais de Rui Pedro são alertados por um professor da escola que então frequentava, dando-lhes conhecimento que o menino não aparecera nas aulas. Inicia-se então uma busca frenética pelas imediações. Correm-se as matas e verificam-se os poços. Averigua-se uma eventual fuga de casa e procura-se, nas estações de camionagem, alguma pista que possa ajudar a solucionar o caso. Tudo em vão.

«Quando desaparece uma criança, há sempre uma primeira possibilidade a ser averiguada. Tenta-se saber se não será, como de facto acontece na maior parte dos casos, mais um caso de fuga devido a eventual insucesso escolar e medo do que a família possa dizer e fazer. Nesta situação nada disso se terá confirmado. Rui Pedro seria um estudante que não apresentava problemas e o seu ambiente familiar não deixava supor que tivesse complicações no caso de ter más notas», refere fonte policial. «Não sei ao certo quantas pessoas terão sido interrogadas e quantas delas poderão ter dito algo de relevante para a investigação. Pelos vistos, apenas o testemunho de um primo do Rui Pedro terá aberto uma porta. Foi esse testemunho de um primo, também muito novo, que conduziu até ao tal Afonso Dias.»

Sim, é um facto provado que Afonso Dias transportou no seu automóvel o jovem Rui Pedro e que lhe apresentou na Lustosa, uma
localidade de Lousada, uma prostituta com quem deveria manter relações sexuais. Essa mulher haveria de ser identificada pela polícia. No depoimento que prestou terá mesmo chegado a dizer que a criança, no momento do encontro, se encontrava muito nervosa, chorosa. Não terá, no entanto, conseguido identificar o homem que lhe levou a criança. Conhecia-o, mas não sabia o seu nome. Nos interrogatórios a que foi sujeita disse sempre que a criança estava muito assustada e que Afonso Dias lhe terá garantido que pagava para que ela tivesse sexo com o menor. Afirmou também que foi Afonso Dias quem levou o menino de volta, de carro. Para onde? Não sabe. Com mais alguém? Não. Naquele último momento não terá visto mais ninguém.

Alcina Dias, assim se chama a mulher que terá sido uma das últimas pessoas a ver Rui Pedro antes de o rapto ter sido consumado, garantiu nos interrogatórios policiais que o menino estava muito assustado, contrariado, e que a sua mãe não sabia onde se encontrava.

Este depoimento foi o suficiente para indiciar Afonso Dias. No entanto tal só veio a ter efeitos efectivos em 2011, quando por fim o identificou na sala do tribunal.

Entre o desaparecimento e o julgamento passaram 13 anos. Foram tempos de busca incessante por parte dos pais, que se agarraram a todas as histórias relatadas na imprensa de todo o mundo, que seguiram todos os murmúrios, todas as impressões, todas as pistas que lhes eram sopradas.

Nesse interregno a família fez apelos públicos, bateu a todas as portas da Justiça, rodeou-se de pessoas dispostas a ajudar, vasculhou todos os recantos e buracos, recolheu versões e coleccionou um imenso rol de decepções. «O sofrimento é indescritível. Não sei como se pode descrever em palavras», diz um dos inspectores contactados lembrando o vaivém constante da mãe, «sempre à cata de novidades, de uma esperança».

Relatos da imprensa portuguesa dão conta do desespero de Filomena Teixeira quando depôs em tribunal acusando as autoridades policiais de não terem investigado o caso de modo profissional. Entre outras acusações, a mãe de Rui Pedro dizia que na Judiciária, apesar de já existirem computadores, não havia quem com eles soubesse trabalhar.

«Durante 13 anos chamaram-me louca. Agora, passado este tempo todo, vêm dar-me razão. Afinal não estava louca, estava certa. Sempre disse que eles [os investigadores] não estavam a ir pelo caminho certo», disse então Filomena Teixeira, referindo-se aos agentes e às diligências que, eventualmente ficaram por cumprir.

Estas mesmas recriminações seriam, de resto, replicadas pelo advogado Ricardo Sá Fernandes, que sobre o facto de a Judiciária, supostamente, não ter recolhido um depoimento formal atempado da prostituta Alcina Dias, lamentou que a única justificação que lhe apresentaram tivesse sido... «o esquecimento».

«A esperança a que a família se agarrou, e que talvez ainda permaneça, tem a ver com a possibilidade de o rapaz não ter sido assassinado. Pelo menos nada garante que tal tenha acontecido, quer no dia do desaparecimento, quer nos tempos que se seguiram. O que foi estabelecido é que se tratava de um rapto. Havia alguém que dizia para que se fechassem as fronteiras, mas não indicava por que motivo e por causa de quem tal deveria ser feito. Estávamos, portanto, perante uma investigação de rapto. Depois, importa não esquecer que uns dias antes, na zona de Famalicão, outra criança terá desaparecido em circunstâncias igualmente misteriosas e também ainda não esclarecidas. Não sei se alguma vez se fez o cruzamento entre os dois casos. Acredito que sim, mas não conheço as conclusões a que os meus colegas chegaram», referiu a mesma fonte policial.

Uma das muitas pistas que foram investigadas pela família de Rui Pedro acabou por conduzir a mãe à Suíça. Naquele país, de acordo com investigações de diversas polícias europeias, estaria a operar, numa zona mais remota e de difícil acesso, uma rede de pedófilos a quem teriam sido apreendidos alguns vídeos e inúmeras fotografias. Eram documentos onde seria possível identificar várias crianças. Uma delas seria o menino de Lousada. A busca incessante e desesperada da mãe haveria mesmo por a conduzir a um hospital, extenuada por uma luta onde parecia que os criminosos andavam sempre um passo adiantados em relação aos polícias.

«Houve uma ocasião em que, de facto, se pensou que seria possível deter algumas pessoas supostamente ligadas a uma rede de pedofilia internacional e que estaria relacionada com o desaparecimento de Rui Pedro. Houve buscas em florestas e até se disse que em alguns locais teriam sido encontrados vestígios da presença de crianças. Infelizmente nunca foi possível encontrar nenhum jovem desaparecido ou deter os suspeitos», disse ainda uma das fontes contactadas.

A complexidade das investigações levou também a que, na Europa, as diferentes fontes policiais chegassem a uma violenta conclusão: algumas redes de pedófilos assassinavam os jovens raptados quando estes atingiam uma determinada idade. «Essa pode ser uma explicação. Ganham consciência de que uma fuga pode vir a ter êxito e, para acabarem com qualquer dúvida, executam-nos.»

Como? «Falou-se muito em caçadas. Os raptados seriam largados em zonas muito isoladas, em florestas. Depois seriam perseguidos e abatidos a tiro. Estas descrições, tanto quanto sei, nunca terão sido apresentadas como verdadeiras à polícia portuguesa.»

São «cenas de filme» as que foram sendo relatadas e, de facto, alguns filmes foram realizados tendo com base o desaparecimento de Rui Pedro. Também se escreveram alguns livros, um deles intitulado Levaram-me, da autoria do antigo inspector da Polícia Judiciária, Paulo Pereira Cristóvão, que anos mais tarde viria a ser associado e condenado por integrar uma rede que se dedicava a roubos e sequestros. Em toda a panóplia de documentos fica sempre a ideia da impotência familiar alimentada por uma repetida incompetência policial. «A família terá gastado o que tinha e o que não tinha. Muitas vezes terão assumido as despesas que competiam ao Estado. Só assim se compreende que a mãe tenha viajado para locais onde, em boa verdade, deveriam ter ido polícias portugueses. Também é verdade que as desgraças atraem sempre gente com poucos escrúpulos e que, mais do que procurarem a verdade, tentam tirar proveitos», diz fonte judicial.

O fraco desempenho dos inspectores da Judiciária do Porto a quem o caso foi entregue haveria de ser reconhecido. Em tribunal, um dos investigadores chegou a assumir que mentira quando em 2005 disse à imprensa que a família de Rui Pedro escondera que este sofria de epilepsia e que essa doença poderia, supostamente, ter-se declarado em qualquer momento do rapto. «O que disse, de só em 2005 saber da epilepsia, não é verdadeiro. Dei essa entrevista animado por alguma revolta que sentia por aquilo que se ia dizendo contra a nossa equipa de investigação», revelou então o mesmo polícia, que terá sido punido internamente.

O «Caso Rui Pedro» teve o condão de, em 2007, levar à criação da Associação Portuguesa de Crianças Desaparecidas (APCD). Foi a necessidade de dar resposta a situações de angústia, mas também de injectar esperança a familiares e amigos, que levou ao surgimento de uma instituição que se preocupou em encontrar modelos preventivos para jovens em risco de rapto, sequestro, abusos sexuais e outros crimes. Criou-se, a nível nacional, uma rede de especialistas capazes de atender quem mais necessitava. «Foi uma iniciativa nascida da necessidade. Uma iniciativa que também foi muito importante para os órgãos de investigação criminal, porque nestas coisas das averiguações nem toda a gente sabe de tudo. Há sempre novas variáveis que devem ser consideradas e há sempre contributos que podem ajudar a prevenir situações dramáticas como a de Rui Pedro e de diversas outras crianças», explicou um investigador da Judiciária, lembrando que «com os casos que infelizmente foram surgindo, também nós, os polícias, fomos progredindo». «Isso não significa que tenhamos, os polícias portugueses ou os de outro qualquer país, atingido a perfeição. Ninguém pode garantir que os crimes não se repetem, mas podemos sempre retirar ensinamentos para o futuro», adiantou.

A presidente da APCD, Patrícia Cipriano, fez há alguns anos declarações públicas referindo que «a polícia teve a humildade de assumir que houve no passado algumas falhas, o que é de uma grande importância para que se alterem as mentalidades de quem investiga e os procedimentos utilizados. Há uma atitude mais sensibilizada, mais empenhada e mais cautelosa das autoridades, mas ainda há polícias que persistem no erro de dizer aos pais das crianças desaparecidas que apenas poderão aceitar a denúncia 48 horas depois do desaparecimento. É uma atitude que é inadmissível, errada e irresponsável.»

Após 20 anos desaparecido e não havendo nenhuma prova válida de que se encontre vivo, Rui Pedro passou a ser para o Estado português uma pessoa que terá efectivamente morrido. Mas será que essa é também a convicção da Justiça? «Nenhum crime está definitivamente esquecido. Nenhum processo está definitivamente encerrado. O eventual surgimento de novos indícios pode sempre determinar a reabertura de qualquer caso», diz um dos investigadores, explicando que na história presente tudo pode passar por Afonso Dias.

«É ele a chave de todo este drama. Entregou-se na cadeia em 2015, depois de condenado por rapto num segundo julgamento,
e saiu em liberdade em 2017. O que transpareceu do julgamento foi que nunca contou sequer metade do que sabe. Ficou provado que se encontrava com Rui Pedro e que a criança até teria medo de o contrariar. Exercia sobre ele grande influência, ao ponto de o levar a desobedecer à mãe. Esteve com ele no dia em que desapareceu e, nos tempos que se seguiram, até surgiu com mais dinheiro do que normalmente andava. Não era pessoa recomendável e a sua presença junto de menores não era bem vista. São inúmeras as pistas, os sinais, de que terá participado em algo ilícito... Foi condenado [a três anos de prisão e acabou por cumprir dois] por rapto, mas sabe bem mais do que aquilo que disse. Talvez um dia seja possível encontrar novas pistas...»

«O silêncio de Afonso Dias faz-nos pensar no pior. A única explicação que encontro para ele continuar sem falar é a de estar a esconder algo pior do que está aqui em causa. O Afonso tem o direito jurídico de estar calado, mas não tem o direito moral. Ele ainda está a tempo de se arrepender. Temos a esperança remota de que Afonso Dias caia em si como homem e diga o que aconteceu», disse Ricardo Sá Fernandes em 2012, após um primeiro julgamento, que acabou com a absolvição do suspeito.

O desfilar do que é conhecido deste caso e a narrativa dos horrores a que a família tem sido submetida parecem deixar desarmados os interlocutores policiais contactados. «Pode ser que um dia se descubra tudo. Não é justo que o Rui Pedro seja vingado com uma condenação que tem todo o aspecto de ser uma fantochada…